quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Sair do círculo cego em direção à metapolítica

Giorgio di Capitani
Pároco na Diocese de Milão
Adital
 
Tradução: Pe. José Nacif Nicolau

Exatamente há 10 anos, 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos da América sofriam o maior atentado terrorista de sua história. Dois aviões golpearam sucessivamente as Torres Gêmeas, os dois mais altos arranha-céus de Manhattan, Nova York. Resultado: morreram 2.752 pessoas de 70 nacionalidades, entre eles 343 bombeiros e 60 agentes policiais. O presidente dos EUA era George W. Bush, um dos mais estúpidos presidentes americanos e, justamente por isso, era o amigo preferido do nosso Berlusconi. O que dizer?

1ª observação: quem se faz muito de prepotente antes ou depois paga, mas quem paga são, invariavelmente, os inocentes, como sempre.

2ª observação: Existe terrorismo e terrorismo. Existe o terror do imperialismo em nome da democracia e existe o terror do fundamentalismo por detrás de motivações também religiosas, verdadeiras ou presumivelmente verdadeiras. Ambos os terrorismos procuram vítimas: os mortos são mortos e, por isso, não existe distinção. Não sei se são mais numerosos os mortos por causa do terrorismo ou por causa do antiterrorismo!!

3ª observação: Não existe nenhum País, por mais superpotente que seja, que possa garantir segurança a seus cidadãos e, muito menos, mostrar-se garantidor da segurança do mundo. Não é o dinheiro e muito menos as armas que garantem a paz. Os equilíbrios fundados sobre a força das armas não produziram nunca a harmonia entre os povos. Dizer paz e dizer segurança não é a mesma coisa.

4ª observação: Quem tem meios inferiores para contra-atacar o inimigo recorre a uma particular estratégia de maneira a compensar as próprias carências quantitativas e qualitativas. Fala-se então de uma assimetria. Não é uma invenção de hoje: é a estratégia de Davi, que usou uma funda com um dardo entre as mãos para matar Golias, um gigante revestido de uma armadura de bronze. Tudo isso para dizer que basta pouco –a astúcia e poucos meios– para colocar em crise um império aparentemente intocável. Golias era forte; porém, estúpido. Não me parece que os países mais potentes sejam sempre guiados por pessoas sábias.

5ª observação: Depois de episódios dramáticos como aquele de Manhattan não se deve reagir com o instinto da força bélica. Um mês antes do atentado, Bush havia declarado guerra ao Afeganistão. Resultado? O Afeganistão, 10 anos depois, é ainda um campo de batalha que produz a cada dia vítimas inocentes. A história ensina que enganando chega-se a criar as ocasiões para se fazer guerra e, estejamos atentos, se faz a guerra não para libertar uma população das mãos de um tirano, mas para liberar poços de petróleo em próprio proveito. A Líbia é o último exemplo evidente.

Não entro na complexa hipótese se por detrás dos atentados de 11 de setembro estivesse o mesmo imperialismo ou capitalismo superliberal americano. No entanto, essa é uma tese que está crescendo apoiada em provas que parecem cada vez mais convincentes. O verdadeiro terrorismo é o de casa ou é produzido em casa. O engano é a arte do poder. E, por isso, é fácil fazer acreditar que o inimigo é aquele de fora; é o estranho, o estrangeiro. Nós somos os nossos verdadeiros inimigos. Os Estados Unidos da América sempre criaram inimigos para obter aquilo que queriam.

Não estou aqui, nesta homilia, a lhes dizer, com provas, o quanto se gastou em dinheiro para combater um presumido terrorismo. Dinheiro que depois provoca, como está acontecendo, crises financeiras. Cifras alucinantes. Débitos astronômicos que depois são despejados sobre países já endividados. Também isto é terrorismo.

6ª e última observação: Ainda hoje se teme o comunismo, mesmo que, na realidade, ele não se encontre em nenhum lugar do mundo. Nem mesmo as melhores ideias de Karl Marx sobreviveram ao progresso feroz de um capitalismo desenfreado. Mas, o capitalismo liberal ou superliberal, ou mais precisamente selvagem, não parece morrer jamais. Sobrevivemos ao comunismo mais criminoso, isto é, aquele soviético; mas, não sobreviveremos ao capitalismo que continua a semear vítimas, mesmo porque o capitalismo sabe assumir o rosto de benfeitor, daquele que não só dá alguma coisa para comer, mas nos oferece um mundo de prazeres mesmo que sejam somente desejos, necessidades que não se realizam plenamente. E mesmo que se realizem em parte, não nos satisfazem; mas, criam outros desejos, outras necessidades, e assim por diante. Também isto é terrorismo.

Exame de consciência! Mas, quem o deve fazer? Por que esperá-lo de quem se faz terrorista por vocação? Devemos ser nós, cidadãos, que devemos nos rebelar e não a chorar diante das duas torres gêmeas reduzidas a cinzas, como se por trás estivesse o diabo islâmico. As duas torres gêmeas representam a Torre de Babel: o poder que quer reunificar as várias línguas, os vários povos, sob o mesmo domínio. Não falo de punição de Deus, mas de punição da História.

A Humanidade a caminho tem as suas recuperações. Mais cedo ou mais tarde qualquer tipo de imperialismo é destinado a acabar, forçado pelo desafio de uma Humanidade que é convivência, mas convivência das diferenças.

O imperialismo é o verdadeiro inimigo da Humanidade. A luta será dura, porque o capitalismo, diferentemente do fundamentalismo ou do comunismo, se apresenta com rosto manso e suave.

O século, o secular, as estruturas espaço-temporais participam realmente da vida do mundo, e esta vida é sagrada, tem o valor do divino. A salvação do homem passa também pela dimensão pública, política.

Escutamos muito que o divino está dentro de nós; mas, na realidade, não acreditamos nisso.

A religião deve interessar-se pelo político; o político humano, imanente é também experiência do transcendente: protesto, rebelião, utopia, transformação, dedicação até a morte para defender os direitos dos oprimidos; tudo isto são presenças do transcendente na política.

Devemos ter a coragem de sair deste círculo cego...

Nós padres devemos ajudar as pessoas a compreender que há uma saída, que é possível romper o cerco...; uma alternativa existe... Sair... Ir ao encontro da alternativa que existe.

Agora, quero fazer um discurso sério, isto é, empenhativo. Mesmo porque não quero reduzir o problema a um aspecto puramente econômico, desejo falar da política usando um termo que aparentemente parece difícil: METAPOLÍTICA. Não é uma palavra inventada recentemente: ela foi usada nos inícios do século XIX. Inicialmente sabemos que a palavrinha ‘meta’, que significa ‘depois’; porém, é empregada no sentido de ‘além’, ‘mais para lá’, tal como quando dizemos ‘metafísica’: a metafísica vai além dos elementos contingentes da experiência sensível; se ocupa dos aspectos contidos mais autênticos e fundamentais da realidade, segundo a prospectiva mais ampla e universal possível.

Da mesma forma, a METAPOLÍTICA vai além do contingente, do banal, do aparente, do momentâneo: uma política que, sem se tornar metafísica, esteja aberta à transcendência. Assim sonhava Raimon Panikkar, filósofo e teólogo espanhol, nascido de mãe catalã e de pai indiano, que faleceu aos 90 anos no ano passado (2010). Um personagem interessante: pertencia a quatro religiões: a católica, a hinduísta, a budista e a secular. Foi um inimitável mestre do diálogo intercultural e do diálogo inter-religioso. Seu pensamento é um pouco complexo, embora muito fascinante pelas suas aberturas. Por ocasião de sua morte, Enrico Peyretti assim sintetizou seu pensamento a propósito da política: "há uma ligação indestrutível entre política e sentido profundo da vida; entre atividade política do homem e o seu destino final” (cada um é livre de pensar o que quiser sobre isto).

Na dimensão METAPOLÍTICA aparece uma alternativa à atual situação planetária, marcada por três agitações: 1. Crise ecológica; 2. Monetarização da economia; 3. Império tecnocrático. A estas três agitações se opõem três princípios positivos: A. Revelação ecosófica (sabedoria e espiritualidade da terra); B) Desmonetarização da economia; C) Emancipação da tecnologia.

A. Revelação eco-sófica: O homem não somente mora na terra; mas, somos terra; somos polis. Terra e polis somos nós. Esta é uma nova sabedoria, eco-sófica: a terra é sábia e o homem é portador de tal sabedoria, que é um dom e não um artifício.

B. Refutação da ideologia pan-econômica que impregnou a cultura, a política, a ética. Reconhecer os estragos que tal ideologia provocou a lógica do dinheiro que tudo pode. Isto não é utopia: pois não propõe a supressão do dinheiro e do mercado, mas sim a tutela dos valores humanos sobre o predomínio do dinheiro. Ações e valores gratuitos existem, devem ser reconhecidos e afirmados. ‘Eco-nomia’ quer dizer ‘regra para morar’, ‘lei da casa’; não quer dizer astúcia para explorar a humanidade e o mundo pelo gigantismo imperial do dinheiro e o domínio dos ricos (pluto-cracia).

C. Emancipação da tecnologia: é preciso se livrar de uma tecnologia que invade tudo, mas sem cair num ascetismo negativo regressivo ou anticientífico. Significa, sim, construir estruturas em que se possa exprimir a plenitude do humano.

A alternativa que Panikkar propõe não é um ‘sistema-antissistema’, mas porque ‘ser é ser junto’ é necessária uma ‘fecundação recíproca das culturas’. A fecundação recíproca supõe escuta e diálogo profundo com as culturas não dominantes, por muito tempo silenciadas. Portanto, uma nova convivialidade internacional, confederação de povos não achatada sob um único modelo.

A METAPOLÍTICA deve se dedicar a construir esta obra alternativa, que Panikkar chama ‘secularização sacra’, ou fusão indissolúvel do plano religioso e do político. Também Gandhi colocara em relação estreita o religioso e o político. O que é religioso é pensado mais como inspiração, interioridade e menos como instituição, como estrutura. A história europeia do Cristianismo constantiniano real-papal ( aliança entre trono e altar, mesmo nos países da Reforma Protestante) nos deixa basicamente suspeitos quanto a avizinhar a religião e a política, e isto nos deixa muitos motivos para temer a consagração do poder político e a politicatização do espírito religioso.

Panikkar quer dizer que o século, o secular, as estruturas espaço-temporais participam realmente da vida do mundo, e esta vida é sagrada, tem o valor do divino. A salvação do homem passa também pela dimensão pública, política; Escutamos muito que o divino está dentro de nós, mas na realidade não acreditamos nisso. A religião deve interessar-se pelo político; o político humano, imanente, é também experiência do transcendente: protesto, rebelião, utopia, transformação, dedicação até a morte para defender os direitos dos oprimidos, tudo isto são presenças do transcendente na política.

Devemos ter a coragem de sair deste cerco cego... As lideranças religiosas devem ajudar as pessoas a compreender que há uma saída, que é possível romper o cerco...; uma alternativa existe...; sair... encontrar a alternativa que existe.

No seu pequeno livro ‘ECOSOFIA: a nova sabedoria, por uma espiritualidade da terra’ (1993), encontramos uma síntese essencial do pensamento de Panikkar. Eis em síntese as suas propostas para uma nova projeção ética, social, política planetária:

1.Desmonetizar a cultura, contra a quantificação dos horizontes humanos pela sua qualificação.

2.Demolir a torre de Babel: toda cultura deve ter confiança em si mesma, não se deve ajustá-la aos modelos dominantes.

3.Superar a ideologia dos países nacionais; favorecer as autonomias menores e as relações multilaterais entre eles.

4.Recolocar a ciência em seus limites, porque ela não esgota o conhecimento do mundo.

5.Substituir a tecno-cracia por valores criativos da arte, do amor e da beleza, máximos valores em muitas culturas.

6.Superar a demo-cracia por uma nova cosmologia (kosmos: mundo, ordem, ordenamento).

7.Recuperar o animismo: a vida em comunhão com a natureza e com todo fragmento vivo.

8.Fazer paz com a terra, renunciando a dominá-la, sugá-la como objeto de conquista.

9.Recuperar a dimensão divina: ‘liberdade e infinitude que permeia tanto a matéria como o espírito tanto os sentidos como o intelecto’; dimensão mística ‘mystika’), isto é: interior, direta, não dependente de intermediários. "Este é o ‘espaço’ em que nos movemos, percebemos e pensamos, no qual vivemos e existimos”.

Panikkar trabalha, então, para desmontar a raiz de toda violência, que é a violência cultural.

O mundo ao revés: Brics discutem ajuda para Europa

Paco Ibánez cantava. Vocês se lembram? Um príncipe mau, uma bruxa formosa e um pirata honrado. O mundo ao revés com o qual sonhava o poeta José Augustín Goytisolo talvez exista. O ministro da Fazenda do Brasil, Guido Mantega, anunciou que o grupo Brics se reunirá na semana que vem em Washington para discutir as formas de ajudar a Europa. A rotina da crise mundial é cheia de surpresas. Cuidado com a rotina.

Brics é a sigla do grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Há dez anos, Jim O’Neill, do Goldman Sachs, descobriu que havia uma segunda linha por trás dos países mais ricos a chamou de Bric. A África do Sul, país chave que faltava, é uma incorporação recente.

Washington não é a capital de nenhuma das cinco nações, mas sim dos Estados Unidos. Os representantes dos cinco Brics estariam, então, de visita. Ou nem tanto. Washington é também a sede do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial.

Como fato em si mesmo, falar de uma ajuda a Europa supõe uma preocupação. Os Brics temem que a queda europeia e a estagnação norteamericana (ontem foi divulgada a cifra de 15% de pobres nos EUA, ou seja, 46 milhões de pessoas, em 2010) provoquem uma etapa de contração mundial que prejudique também a África do Sul, Ásia e África.

Como a Argentina sabe bem, não há ajuda sem condições. Entre 1982 (crise da dívida externa) e 2001 (default) o Fundo ajudava, se é que se pode usar essa palavra, em troca de estratégias de transferência de renda em favor dos mais ricos, de desregulação de Estados e mercados. Essa “ajuda” do FMI era parte do que, no último domingo, o pesquisador Alain Rouquié definiu como “financeirização da economia”.

Os Brics poderiam dizer que se a Europa aceitar sua ajuda, eles não imporão condições. Seria divertido que o dissessem. Mas também falso. As condições de um empréstimo não são só uma ideologia, mas uma consequência da natureza de quem empresta. Elas existem sempre. Com suas diferenças de regime político, China e Brasil baseiam sua política no estímulo à demanda interna e externa e não na flexibilização do trabalho e na eternização do trabalho temporário, como acaba de fazer, por exemplo, a Espanha. O ex-presidente do governo espanhol Felipe González (1982-1996) impulsionou essas medidas, mas ontem disse amargamente que os países da Europa “são como galgos que correm atrás de uma lebre mecânica que ninguém sabe quem move e que nunca conseguem alcançar”.

A amargura é porque a Europa estaria carecendo de política comum, mas segue sendo, em conjunto, a principal economia do mundo.

Segundo o jornal Valor, uma das ideias dos ministros de Economia ou Fazenda e dos presidentes dos bancos centrais seria o aumento da porcentagem das reservas dos cinco Brics em títulos lastreados em euros. Um modo de desafiar o dólar. A presidenta brasileira, Dilma Rousseff, tem reclamado que a guerra cambial mundial, impulsionada pelos Estados Unidos, obriga o resto dos países a armazenar reservas em um dólar cujo valor é fixado em Washington.

Dilma aproveitou ontem para fazer alguns ajustes na proposta de Mantega. Em Araçatuba, São Paulo, onde assinou convênios de ajuda financeira para fortalecer hidrovias de transporte de grãos, disse que “a melhor forma de resistir à crise no Brasil é continuar consumindo, produzindo, investindo em infraestrutura, plantando e colhendo, protegendo nossas indústrias e seu componente nacional”.

Ao falar sobre os países europeus, Dilma foi menos poética que Felipe e seus galgos. “Enquanto eles discutem o que ocorre com a crise da dívida de seus bancos, aqui nós gastamos nosso dinheiro em parcerias público-privadas, em sociedades entre o governo federal e o estadual, com o objetivo de criar desenvolvimento, emprego e renda para o país”, afirmou.

De acordo com os números da revista The Economist, as economias da União Europeia representam um pouco menos de 24% da economia global. Os Brics representam 21%. Mas os europeus têm 32% dos votos no FMI e os Brics só 11%.

Desafiar o dólar e a Europa sem apostar na sua quebra, e estabelecer outra correlação de forças no Fundo, é o que está por trás da oferta de ajuda lançada por Mantega em seu papel de Paco Ibáñez.

(*) Martin Granovsky é analista internacional argentino, colunista do jornal Página12.

Entrevista com Eric Hobsbawm: Trocando mitos por história

Eric Hobsbawm é um historiador merecedor de todo o respeito. Num tempo em que a atividade central da grande maioria dos historiadores burgueses consiste na reescrita da história de acordo com as conveniências da ideologia dominante, a sua fidelidade à matriz marxista na investigação e no método serve de exemplo, independentemente das discordâncias que este ou aquele aspecto da sua obra suscitem.


Discordâncias que ele próprio assume frontalmente: “O que busco é o entendimento da história, e não concordância, aprovação ou comiseração”. Esta interessante entrevista é um exemplo da importância da reflexão de alguém que conta 94 anos, ou seja, de alguém que nasceu no ano da grande revolução socialista de outubro.
Estadão:
No livro Globalização, Democracia e Terrorismo, de 2007, o senhor passa para os leitores certo pessimismo ao lhes colocar uma perspectiva crucial e ao mesmo tempo desconfortante: ''Não sabemos para onde estamos indo'', diz, referindo-se aos rumos mundiais. Olhando as últimas décadas pelo retrovisor da história esse sentimento parece ter se intensificado. Em que outros momentos a humanidade viveu períodos marcados por essa mesma sensação de falta de rumos?
Eric Hobsbawm: 
Embora existam diferenças entre os países, e também entre as gerações, sobre a percepção do futuro - por exemplo, hoje há visões mais otimistas na China ou no Brasil do que em países da União Europeia e nos Estados Unidos -, ainda assim acredito que, ao pensar seriamente na situação mundial, muita gente experimente esse pessimismo ao qual você se refere. Porque de fato atravessamos um tempo de rápidas transformações e não sabemos para onde estamos indo, mas isso não constitui um elemento novo em tempos críticos. Tempos que nos remetem ao mundo em ruínas depois de 1914, ou mesmo a vários lugares daquela Europa entre duas grandes guerras ou na expectativa de uma terceira.

Aqueles anos durante e após a 2ª Guerra foram catastróficos, ali ninguém poderia prever que formato o futuro teria ou mesmo se haveria algum futuro. Cruzamos também os anos da Guerra Fria, sempre assustadores pela possibilidade de uma guerra nuclear. E, mais recentemente, notamos a mesma sensação de desorientação ao vermos como os Estados Unidos mergulharam numa crise econômica que até parece ser o breakdown do capitalismo liberal.

Estadão: Nações saíram empobrecidas, arruinadas mesmo, das guerras mundiais, mas é adequado pensar que havia naqueles escombros o desenho de um futuro?
Eric Hobsbawm: Sim. Se de um lado o futuro nos era desconhecido e cada vez mais inesperado, havia por outro lado uma ideia mais nítida sobre as opções que se apresentavam. No entreguerras, a escolha principal de um modelo se dava entre o capitalismo reformado e o socialismo com forte planejamento econômico - supremacia de mercado sem controle era algo impensável. Havia ainda a opção entre uma democracia liberal, o fascismo ultranacionalista e o comunismo.

Depois de 1945, o mundo claramente se dividiu numa zona de democracia liberal e bem-estar social a partir de um capitalismo reformado, sob a égide dos EUA, e uma zona sob orientação comunista. E havia também uma zona de emancipação de colônias, que era algo indefinido e preocupante. Mas veja que os países poderiam encontrar modelos de desenvolvimento importados do Ocidente, do Leste e até mesmo resultante da combinação dos dois. Hoje esses marcos sinalizadores desapareceram e os "pilotos" que guiariam nossos destinos, também.

Estadão: Como o senhor avalia o poder das imagens de destruição nos ataques do 11/9 a Nova York, tão repetidas nos últimos dias? Tornaram-se o símbolo de uma guinada histórica, apontando novas relações entre Ocidente e Oriente? Por que imagens do cenário de morte de Bin Laden surtiram menos impacto?
Eric Hobsbawm: A queda das torres do World Trade Center foi certamente a mais abrangente experiência de catástrofe que se tem na história, inclusive por ter sido acompanhada em cada aparelho de televisão, nos dois hemisférios do planeta. Nunca houve algo assim. E sendo imagens tão dramáticas, não surpreende que ainda causem forte impressão e tenham se convertido em ícones.

Agora, elas representam uma guinada histórica? Não tenho dúvida de que os Estados Unidos tratam o 11/9 dessa forma, como um turning point, mas não vejo as coisas desse modo. A não ser pelo fato de que o ataque deu ao governo americano a ocasião perfeita para o país demonstrar sua supremacia militar ao mundo. E com sucesso bastante discutível, diga-se. Já o retrato de Bin Laden morto (que não foi divulgado) talvez fosse uma imagem menos icônica para nós, mas poderia se converter num ícone para o mundo islâmico. Da maneira deles, porque não é costume nesse mundo dar tanta importância a imagens, diferentemente do que fazemos no Ocidente, com nossas camisetas estampando o rosto de Che Guevara.

Estadão: Mas além da chance de demonstrar poderio militar, os Estados Unidos deram uma guinada na sua política externa a partir de 2001, ajustando o foco naquilo que George W. Bush batizou como "war on terror". Outro encaminhamento seria possível?
Eric Hobsbawm: Eu diria que a política externa americana, depois de 2001, foi parcialmente orientada para a guerra ao terror, e fundamentalmente orientada pela certeza de que o 11/9 trouxe para os EUA a primeira grande oportunidade, depois do colapso soviético, de estabelecer uma supremacia global, combinando poder político-econômico e poder militar.

Criou-se a situação propícia para espalhar e reforçar bases militares americanas na Ásia central, ainda uma região muito ligada à Rússia. Sob esse aspecto, houve uma confluência de objetivos - combate-se o inimigo ampliando enormemente a presença militar americana. Mas, sob outro aspecto, esses objetivos conflitaram. A guerra no Iraque, que no fundo nada tinha a ver com a Al-Qaeda, consumiu atenção e uma enormidade de recursos dos EUA, e ainda permitiu à organização liderada por Bin Laden criar bases não só no Iraque, mas no Paquistão e extensões pelo Oriente Médio.

Estadão: Os Estados Unidos lançaram-se nessa campanha sabendo o tamanho do inimigo?
Eric Hobsbawm: O perigo do terrorismo islâmico ficou exagerado, a meu ver. Ele matou milhares de pessoas, é certo, mas o risco para a vida e a sobrevivência da humanidade que ele possa representar é muito menor do que o que se estima. Exemplo disso são as importantes mudanças que ocorreram neste ano no mundo árabe, mudanças que nada devem ao terrorismo islâmico. E não só: elas o deixaram à margem.

Agora, o mais duradouro efeito da war on terror, aliás, uma expressão que os diplomatas americanos finalmente estão abandonando, terá sido permitir que os Estados Unidos revivessem a prática da tortura, bem como permitir que os cidadãos fossem alvo de vigilância oficial. Isso, claro, sem falar das medidas que fazem com que a vida das pessoas fique mais desconfortável, como ao viajar de avião.

Estadão
: Diante dos problemas econômicos que hoje afligem os Estados Unidos, ainda sem um horizonte de recuperação à vista, o senhor diria que seguimos em direção a um tempo de declínio da hegemonia americana?
Eric Hobsbawm: Nós de fato caminhamos em direção à Era do Declínio Americano. As guerras dos últimos dez anos demonstram como vem falhando a tentativa americana de consolidar sua solitária hegemonia mundial. Isso porque o mundo hoje é politicamente pluralista, e não monopolista. Junto com toda a região que alavancou a industrialização na passagem do século 19 para o século 20, hoje a América assiste à mudança do centro de gravidade econômica do Atlântico Norte para o Leste e o Sul.

Enquanto o Ocidente vive sua maior crise desde os anos 30, a economia global ainda assim continua a crescer, empurrada pela China e também pelos outros Brics. Ainda assim, não devemos subestimar os Estados Unidos. Qualquer que venha a ser a configuração do mundo no futuro, eles ainda se manterão como um grande país e não apenas porque são a terceira população do planeta. Ainda vão desfrutar, por um bom tempo, da notável acumulação científica que conseguiram fazer, além de todo o soft power global representado por sua indústria cultural, seus filmes, sua música, etc.

Estadão: Não só por desdobramentos político-militares do 11/9, mas também pela emergência de novos atores no mundo globalizado, criam-se situações bem desafiadoras. Por exemplo, o que o Ocidente sabe do Islã? E dos países árabes que hoje se levantam contra seus regimes? Qual é o grau de entendimento da China? Enfim, o Ocidente enfrenta dificuldades decorrentes de uma certa superioridade cultural ou arrogância histórica?
Eric Hobsbawm: Ao longo de toda uma era de dominação, o Ocidente não só assumiu que seus triunfos são maiores do que os de qualquer outra civilização, e que suas conquistas são superiores, como também que não haveria outro caminho a seguir. Portanto, ao Ocidente restaria unicamente ser imitado. Quando aconteciam falhas nesse processo de imitação, isso só reforçava nosso senso de superioridade cultural e arrogância histórica.

Assim, países consolidados em termos territoriais e políticos, monopolizando autoridade e poder, olharam de cima para baixo para países que aparentemente estavam falhando na busca de uma organização nas mesmas linhas. Países com instituições democráticas liberais também olharam de cima para baixo para países que não as tinham. Políticos do Ocidente passaram a pensar democracia como uma espécie de contabilidade de cidadãos em termos de maiorias e minorias, negando inclusive a essência histórica da democracia.

E os colonizadores europeus também se acharam no direito de olhar populações locais de cima para baixo, subjugando-as ou até erradicando-as, mesmo quando viam que aqueles modos de vida originais eram muito mais adequados ao meio ambiente das colônias do que os modos de vida trazidos de fora. Tudo isso fez com que o Ocidente realmente desenvolvesse essa dificuldade de entender e apreciar avanços que não fossem os próprios.

Estadão: Essa superioridade do Ocidente pode mudar com a emergência de uma potência como a China?
Eric Hobsbawm: Mas mesmo a China, que no passado remoto era tida como uma civilização superior, foi subestimada por longo tempo. Só depois da 2ª Guerra é que seus avanços em ciência e tecnologia começaram a ser reconhecidos. E só recentemente historiadores têm levantado as extraordinárias contribuições chinesas até o século 19.

Veja bem, ainda não sabemos em que medida a cultura, a língua e mesmo as práticas espirituais da Pérsia, hoje Irã, enfim, em que medida aquele fraco e frequentemente conquistado império influenciou uma grande parte da Ásia, do Império Otomano até as fronteiras da China. Sabemos? Temos grande dificuldade em compreender a natureza das sociedades nômades, bem como sua interação com sociedades agrícolas assentadas, e hoje a falta dessa compreensão torna quase impossível traduzir o que se passa em vastas áreas da África e da região do Saara, por exemplo, no Sudão e na Somália.

A política internacional fica completamente perdida quando confrontada por sociedades que rejeitam qualquer tipo de estado territorial ou poder superior ao do clã ou da tribo, como no Afeganistão e nas terras altas do sudoeste asiático. Hoje achamos que já sabemos muito sobre o Islã, sem nem sequer nos darmos conta de que o radicalismo xiita dos aiatolás iranianos e o sonho de restauração do califado por grupos sunitas não são expressões de um Islã tradicional, mas adaptações modernistas, processadas o longo século 20, de uma religião prismática e adaptável.

Estadão:
Com todos esses exemplos de ''mundos'' que se estranham, o senhor diria que a história corre o risco das distorções?
Eric Hobsbawn: Apesar de todos esses exemplos, sou forçado a admitir que a arrogância histórica ocidental inevitavelmente se enfraquece, exceto em alguns países, entre eles os EUA, cujo senso de identidade coletiva ainda consiste na crença de sua própria superioridade. Nos últimos dez anos, a história tomou outro curso, muito afetada pelas imigrações internacionais que permitem a mulheres e homens de outras culturas virem para os "nossos" países.

Dou um exemplo: hoje a informação municipal na região de Londres onde vivo está disponível não apenas em inglês, mas em albanês, chinês, somali e urdu. A questão preocupante é que, como reação a tudo isso, surge também uma xenofobia de caráter populista, que se propaga até nas camadas mais educadas da população. Mas, inegavelmente, numa cidade como Londres ou Nova York, onde a presença dos imigrantes de várias partes é forte, existe hoje um reconhecimento maior da diversidade do mundo do que se tinha no passado.

Turistas que buscam destinos na Ásia, África ou até mesmo no Caribe costumam não entender a natureza das sociedades que cercam seus hotéis, mas jovens mulheres e homens que hoje viajam, a trabalho ou estudos, para esses lugares, já criam outra compreensão. Em resumo, apesar da expansão de xenofobia, há motivos para otimismo porque a compreensão abrangente do nosso tempo complexo requer mais do que conhecimento ou admiração por outras culturas. Requer conhecimento, estudo e, não menos importante, imaginação.

Estadão: Imaginação?
Eric Hobsbawm: Sim, porque essa compreensão abrangente é frequentemente dificultada pelo persistente hábito de políticos e generais passarem por cima do passado. O Afeganistão é um clamoroso exemplo do que estou dizendo. Temo que não seja o único.

Estadão: Na sua opinião, estaríamos atravessando um momento regressivo da humanidade quando fundamentalismos religiosos impõem visões de mundo e modos de vida?
Eric Hobsbawm: O que vem a ser um momento regressivo? Esta é a pergunta que faço. Não acredito que nossa civilização esteja encarando séculos de regressão como ocorreu na Europa Ocidental depois da queda do Império Romano. Por outro lado, devemos abandonar a antiga crença de que o progresso moral e político seja tão inevitável quanto o progresso científico, técnico e material. Essa crença tinha alguma base no século 19.

Hoje o problema real que se coloca, o maior deles, é que o poder do progresso material e tecnocientífico, baseado em crescente e acelerado crescimento econômico, num sistema capitalista sem controle, gera uma crise global de meio ambiente que coloca a humanidade em risco. E, à falta de uma entidade internacional efetiva no plano da tomada de decisão, nem o conhecimento consolidado do que fazer, nem o desejo político de governos nacionais de fazer alguma coisa estão presentes.

Esse vazio decisório e de ação pode, sim, levar o nosso século para um momento regressivo. E certamente isso tem a ver com aquele "sentido de desorientação" que discutimos no início da entrevista.

Estadão:
 Apoiado na sua longa trajetória acadêmica, que conselhos o senhor daria aos jovens historiadores de hoje?
Eric Hobsbawn: Hoje pesquisar e escrever a história são atividades fundamentais, e a missão mais importante dos historiadores é combater mitos ideológicos, boa parte deles de feitio nacionalista e religioso. Combater mitos para substituí-los justamente por história, com o apoio e o estímulo de muitos governos, inclusive. Se eu fosse jovem o suficiente, gostaria de participar de um excitante projeto interdisciplinar que recorresse à moderna arqueologia e às técnicas de DNA para compor uma história global do desenvolvimento humano, desde quando os primeiros Homo sapiens tenham aparecido na África oriental e como elas se espalharam pelo globo.

Agora, se eu fosse um jovem historiador latino-americano, daí eu poderia ser tentado a investigar o impacto do meu continente sobre o resto do mundo. Isso, desde 1492, na era dos descobrimentos, passando pela contribuição material desse continente a tantos países, com metais preciosos, alimentos e remédios, até o efeito da América Latina sobre a cultura moderna e a compreensão do mundo, influenciando intelectuais como Montaigne, Humboldt, Darwin. E, evidentemente, eu pesquisaria a riqueza musical do continente, fosse eu um latino-americano. Isso é tudo o que eu quero dizer.

A Roda Bélica da História, por Hobsbawn

1ª Guerra, o banho de sangue

O tempo histórico era outro, avalia Hobsbawm. O mundo ficara quase um século sem um grande conflito e o conceito de "paz" fez-se sinômico de "antes de 1914", ano em que Francisco Ferdinando, da Áustria, foi morto. Detonava-se o conflito que iria sangrar a Europa.

2ª Guerra, o mistério

O mundo sabia o que era uma guerra maciça, mas não uma guerra global. Eis a amarga contribuição da 2ª Guerra, conflito sem limites. Hobsbawm indaga: por que Hitler, esgotado na Rússia, declarou guerra aos EUA, permitindo que se associassem à Grã-Bretanha?

Guerra Fria, o absurdo

Como explicar 40 anos de tensão pela crença de que o planeta poderia explodir a qualquer momento e, contra a destruição total, só haveria a chance da dissuasão mútua? Para Hobsbawm, a Guerra Fria dos tempos de Kruchev carregou a inconclusão da Era da Catástrofe.

Guerra do Golfo, o lucro

Ao findar da Guerra Fria, lembra o historiador, a hegemonia econômica americana já estava abalada. E sua superioridade militar teve que ser financiada por apoiadores de Washington. Na guerra contra o Iraque, em 1991, a potência presidida por Bush pai realizou lucros.

Fonte: O Estado de S.Paulo

Internet assusta os poderosos

Por Laurindo Lalo Leal Filho, na Revista do Brasil:

Numa noite de sábado o Jornal Nacional surpreendeu os telespectadores. Depois de um intervalo comercial, os apresentadores titulares do programa (que geralmente não trabalham aos sábados) passaram a ler o princípios editoriais das Organizações Globo. Muita gente ficou intrigada. Porque aquilo naquela hora? Não havia mais nenhuma notícia importante no mundo a ser dada? E porque só agora, depois de 86 anos de existência, a empresa resolveu divulgar na TV suas normas de trabalho?

Milhões de telespectadores em todo o Brasil ficaram sem respostas. Só quem tem acesso à internet soube do que se tratava. A explicação para o inusitado texto lido no Jornal Nacional estava no blogue “O Escrevinhador”, de Rodrigo Vianna. Nele eram reproduzidas informações de um jornalista da Globo sobre como a emissora pretendia cobrir a indicação do embaixador Celso Amorim para o Ministério da Defesa.

Durante os oito anos do governo Lula em que esteve à frente do Ministério das Relações Exteriores, Amorim sempre foi visto com desagrado pelas Organizações Globo. A empresa não engolia as posições do ministro em defesa da soberania nacional, principalmente quando elas não coincidiam com os interesses dos Estados Unidos.

A volta de Amorim ao primeiro escalão do governo foi uma afronta para a Globo. Segundo o jornalista mencionado no blogue a orientação da empresa era clara: “os pauteiros devem buscar entrevistados para o Jornal Nacional, Jornal da Globo e Bom dia Brasil que comprovem a tese de que a escolha de Celso Amorim vai gerar ‘turbulência’ no meio militar. Os repórteres já recebem a pauta assim, direcionada: o texto final das reportagens deve seguir essa linha. Não há escolha”.

Pena que só internautas atentos ficaram sabendo disso. Jornais e revistas não repercutiram o assunto e muita gente acabou achando que, finalmente, a Globo havia tomado a iniciativa magnânima de expor à sociedade seus princípios editoriais partindo de vontade própria.

Mas mesmo atingindo um público relativamente muito menor do que o da televisão, a internet prestou um bom serviço à sociedade. Inibiu um pouco a ação nefasta armada contra o novo ministro e mostrou que a poderosa organização não consegue mais fingir que denúncias e criticas não a atingem. A Globo sentiu o golpe e tentou responder recorrendo a princípios por ela violados várias vezes ao longo de sua história.

Esperava-se uma mudança de conduta a partir daquele momento. Não foi o que ocorreu. Na mesma edição a apresentadora do Jornal Nacional disse o seguinte: “está foragida a merendeira que pôs veneno de rato na comida de crianças e professores numa escola pública de Porto Alegre”, mostrando uma foto da moça de 23 anos.

Poderia até ser verdade, mas o Jornal Nacional baseava-se apenas numa versão da policia, negada pela acusada. Seu advogado havia divulgado a palavra dela, através da Rádio Guaíba, oito horas antes do JN ir ao ar. Mas para não perder uma notícia espetacular – envenenamento de crianças – nada disso foi levado em conta. Nem os tais princípios editoriais.

Se não fosse outra vez a internet, fatos como esse não estariam sendo contados aqui em detalhes. Foi o blogue do Mello que registrou a violação dos princípios editorais da Globo, na mesma edição em que eles foram divulgados, acompanhados da gravação do desmentido da merendeira feito através do rádio.

Dessa forma vão sendo levantados os véus de interesses que recobrem o noticiário divulgado por grandes meios de comunicação, não só no Brasil mas em várias outras partes do mundo. Parece ser um caminho sem volta.

A medida em que um número maior de pessoas vai tendo acesso à internet, fica cada vez mais difícil para os meios tradicionais de comunicação realizar desvios desse tipo.