quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Os discípulos de Goebbels contra a Síria

Por Domenico Losurdo


Qual a natureza do conflito que desde há meses assola a Síria? Com este artigo é meu intuito suscitar em todos os que defendem a causa da paz e da democracia nas relações internacionais algumas perguntas elementares. Pela minha parte, tratarei de responder dando a palavra a órgãos de imprensa e jornalistas insuspeitos de qualquer cumplicidade com os dirigentes de Damasco.


1) Ocorre antes de mais nada perguntar qual a situação deste país do Médio Oriente antes da chegada ao poder, em 1970, dos Assad (pai e filho) e do regime actual. Pois bem, antes daquela data, «a república síria era um estado débil e instável, um palco para as rivalidades regionais e internacionais»; os acontecimentos dos últimos meses significam de fato o regresso à «situação anterior a 1970». Quem se expressa nesses termos é Itamar Rabinovich, ex-embaixador de Israel em Washington, no International Herald Tribune de 19-20 de Novembro. Podemos extrair uma primeira conclusão: a rebelião apoiada em primeiro lugar pelos EUA e pela União Europeia pode fazer a Síria retroceder a uma situação semicolonial.


2) As condenações e sanções do Ocidente e a sua aspiração a uma mudança de regime na Síria estão inspiradas na indignação pela «repressão brutal» de manifestações pacíficas, uma repressão exercida pelo poder? Na realidade, já em 2005 «George Bush pretendia derrubar Bashar al-Assad». Continuam a ser palavras do ex-embaixador israelita em Washington, o qual acrescenta que agora o governo de Telavive se juntou a esta política de regime change na Síria: há que acabar de uma vez por todas com o grupo dirigente que a partir de Damasco apoia «o Hezbollah no Líbano e o Hamas em Gaza» e estreita relações com Teheran. Sim, «profundamente preocupado pela ameaça iraniana, Israel é de opinião de que, se retirar o tijolo sírio do muro iraniano, a política regional poderia entrar numa nova fase. É evidente que o Hezbollah, tal como o Hamas, se movem agora com mais cautela». De modo que o alvo da rebelião e das manobras com ela relacionadas não é apenas a Síria, são também a Palestina, o Líbano e o Irã: trata-se de desferir um golpe decisivo na causa do povo palestinio e de consolidar o domínio neocolonial de Israel e do Ocidente numa região de crucial importância geopolítica e geoeconómica.


3) Como atingir este objectivo? Guido Olimpio, no Corriere della Sera de 29 de Outubro, explica-o claramente: em Antakya, uma região da Turquia confinante com a Síria, opera já o «Exército Livre Sírio, uma organização que pratica a luta armada contra o regime de Assad». É um exército que recebe armas e instrução militar da Turquia. Além disso (continua Guido Olimpio no Corriere della Sera de 13 de Novembro), Ankara «ameaçou criar uma faixa tampão de 30 quilómetros em território sírio». Vemos pois que o governo sírio tem de fazer frente não apenas a uma rebelião armada, mas a uma rebelião armada apoiada por um país que dispõe dum dispositivo militar de primeira ordem, que é membro da NATO e que ameaça invadir a Síria. Quaisquer que sejam os erros ou as culpas dos seus dirigentes, este pequeno país está a sofrer, de facto, uma agressão militar. A Turquia, que tem tido um período de forte crescimento económico, desde há algum tempo dá mostras de impaciência relativamente ao domínio de Israel e dos EUA no Oriente Médio. Obama responde a essa impaciência empurrando os dirigentes de Ankara para um sub-imperialismo neo-otomano, controlado evidentemente por Washington.


4) Da análise e dos testemunhos trazidos depreende-se que a Síria se vê obrigada a lutar em condições muito difíceis para a manutenção da sua independência, fazendo face a um formidável bloqueio económico, político e militar. Além disso, a OTAN ameaça direta ou indiretamente os dirigentes de Damasco com a possibilidade de lhes reservar o mesmo fim que teve Khadafi, o assassínio e o linchamento. A infâmia da agressão devia pois ser evidente para todos os que estão dispostos a fazer ao menos um pequeno esforço intelectual. E, todavia, o Ocidente, valendo-se da sua terrível potência de fogo mediático e das novas técnicas de manipulação proporcionadas pelo desenvolvimento da Internet, apresenta a crise síria como um exercício de uma violência brutal e gratuita contra manifestantes pacíficos e não-violentos. Não há quaisquer dúvidas de que Goebbels, o pérfido e brilhante ministro do III Reich, deixou escola. Há que reconhecer, aliás, que os seus discípulos de Washington e Bruxelas conseguiram superar o nunca olvidado mestre.

Com o primado da guerra, a função do jornalismo torna-se tabú

Por John Pilger


Em 22 de maio de 2007, a primeira página do Guardian anunciava um "Plano secreto do Irã para ofensiva de verão a fim de expulsar os EUA do Iraque". O seu redator, Simon Tisdall, afirmava que o Irã tinha planos secretos para derrotar tropas americanas no Iraque, os quais incluíam "forjar laços com elementos do al-Qaida". O "confronto" próximo seria uma trama iraniana para influenciar uma votação no Congresso dos EUA.


A matéria "exclusiva" de Tisdall era redigida inteiramente com base em briefings de anônimos responsáveis estadunidenses e acenava com contos ridículos de "células assassinas" do Irã e "atos diários de guerra contra forças estadunidenses e britânicas". Suas 1200 palavras incluíram apenas 20 para o categórico desmentido do Irã.


Aquilo era uma carga de lixo: era realmente um comunicado de imprensa do Pentágono apresentado como jornalismo, tal como a ficção que justificou a sangrenta invasão do Iraque em 2003. Dentre as fontes de Tisdall estavam "conselheiros séniores" do general David Petraeus, o comandante militar dos EUA que em 2006 descreveu sua estratégia de travar uma "guerra de percepções... conduzida continuamente através do noticiário dos media".


A guerra dos media contra o Irã começou em 1979 quando o protegido do ocidente, o tirano Mohammad Reza Shah Pahlavi, foi derrubado numa revolução popular islâmica. A "perda" do Irã, o qual sob o xá era encarado como o "quarto pilar" do controle ocidental do Médio Oriente, nunca foi esquecida em Washington e Londres.


No mês passado, a primeira página do Guardian apresentou mais uma notícia "exclusiva": "O Ministério da Defesa [britânico] prepara-se para tomar parte em ataques dos EUA contra o Irã". Também desta vez, os responsáveis citados eram anónimos. Desta vez o tema era a "ameaça" apresentada pela perspectiva de uma arma nuclear iraniana. A "prova" mais recente eram documentos requentados de 2004, obtidos de um laptop em pela inteligência dos EUA e passado à Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA). Numerosas autoridades lançaram dúvidas sobre estas suspeitas falsificações, incluindo um antigo inspetor chefe de armas da AIEA. Um telegrama diplomático dos EUA divulgado pelo WikiLeaks descreve o chefe da AIEA, Yukiuya Amano, como "solidamente no lado americano" e "pronto para o horário nobre" [da TV].


O "exclusivo" do Guardian de 3 de novembro e a velocidade com a qual a sua propaganda foi difundida através dos media foram um recorde. Isto é chamado de "dominância da informação" pelos treinadores de media no estabelecimento de psyops (guerra psicológica) do Ministério da Defesa, em Chicksands, Bedforshire. Este estabelecimento partilha instalações com os instrutores dos métodos de interrogatório que levaram a um inquérito público acerca da tortura militar britânica no Iraque. Historicamente, a desinformação e a barbaridade da guerra colonial têm andado lado a lado.


Tendo apelado a um assalto criminoso ao Irã, o Guardian opinou que isto "naturalmente seria loucura". Uma cobertura das nádegas semelhante foi utilizada quando Tony Blair, outrora um herói "místico" em polidos círculos liberais, conspirou com George W. Bush e provocou um banho de sangue no Iraque. Com a Líbia tratada recentemente ("Funcionou", disse o Guardian), o Irã parece que é o próximo.


O papel do jornalismo respeitável nos crimes de estado ocidentais – desde o Iraque ao Irã, ao Afeganistão e à Líbia – permanece tabu. Actualmente é obscurecido pelo teatro dos media acerca do inquérito Leveson quanto a escutas telefónica, as quais Benedict Brogan do Daily Telegraph descreve como "um teste de tensão útil". Culpem Rupert Murdoch e os tablóides por tudo e os negócios podem continuam como habitualmente. Por perturbador que sejam os testemunhos de Lord Leveson, eles não se comparam ao sofrimento das incontáveis vítimas do jornalismo instigador da guerra.


O advogado Phil Shiner, que obrigou a um inquérito público acerca do comportamento criminoso de militares britânicos no Iraque, afirma que o jornalismo incorporado (embedded) proporcionou cobertura para a matança da "centenas de civis mortos pelas forças britânicas enquanto estavam sob a sua custódia, [muitas vezes sujeitando-os] às coisas mais extraordinárias e brutais, envolvendo atos sexuais... o jornalismo incorporado nunca poderá relatar tais notícias". Não é nada surpreendente que o Ministério da Defesa, num documento de 2000 páginas revelados pelo WikiLeaks, descreva os jornalistas de investigação – ou seja, jornalistas que fazem o seu trabalho – como uma "ameaça" maior do que o terrorismo.


Na semana em que o Guardian publicou a sua matéria "exclusiva" acerca do planeamento do Ministério da Defesa para um ataque ao Irã, o general sir David Richards, chefe militar britânico, prosseguia uma visita secreta a Israel, o qual é um genuíno fora da lei em armas nucleares e isento de insultos dos media. Richard é um general altamente político que, como Petraeus, tem trabalhado os media com considerável benefício. Nenhum jornalista na Grã-Bretanha revelou que ele foi a Israel discutir um ataque ao Irã.


Honrosas exceções à parte – tal como o trabalho tenaz de Ian Cobain e Richard Norton-Taylos, do Guardian – nossa sociedade cada vez mais militarizada é refletida em grande parte da nossa cultura dos media. Dois dos mais importantes funcionários de Blair na sua desonesta aventura encharcada de sangue do Iraque, Alistair Campbell e Jonathn Powell, desfrutam um cómodo relacionamento com os media liberais, suas opiniões sobre assuntos dignos são procuradas enquanto no Iraque o sangue nunca seca. Para os seus admiradores, como dizia Harold Pinter, as pavorosas consequências das suas ações "nunca aconteceram".

Em 24 de Novembro, Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, as académicas feministas Cynthia Cockburn e Ann Oakleys, atacaram aquilo a que chamaram "certos traços e comportamentos masculinos generalizados". Elas pediam que a "cultura da masculinidade fosse tratada como uma questão política". A testosterona era o problema. Elas não fizeram qualquer menção ao sistema de violência de estado desenfreada que o império reabilitou, criando 740 mil viúvas no Iraque e ameaçando sociedades inteiras, desde o Irã até a China. Não será isto uma "cultura" também? O seu pensamento limitado não é atípico. Ele diz muito acerca de como estes media amigos das questões de identidade distraem da exploração sistémica e da guerra, que permanece a fonte primária de violência contra homens e mulheres.
Fonte: johnpilger.com

A unidade em 2012 e as aspirações dos partidos

Editorial de Vermelho


A resolução aprovada nesta terça-feira (13) pela Executiva Nacional do Partido dos Trabalhadores sobre a eleição municipal de 2012 é da mais alta importância e precisa ser levada em conta neste momento em que as forças políticas começam a colocar sobre a mesa suas cartas para aquele pleito.

A resolução aprovada diz, com justeza, que será “para sustentar e ampliar o apoio ao nosso projeto nacional que entramos na disputa eleitoral de 2012”, encarada como “um momento de unidade programática com nossos aliados, compreendendo a necessidade de alianças que devem levar em conta a legítima aspiração de cada partido ao seu crescimento e a posição relativa de força de cada um na sociedade”.

A aspiração de unidade tem o objetivo de fortalecer o núcleo das forças democráticas e progressistas comprometidas com o projeto de mudança política, econômica e social em curso desde a posse de Lula em 2003.

São forças políticas que ganharam musculatura no novo cenário que se descortina no país desde então, paralelamente ao declínio visível das forças conservadoras e neoliberais, retratado pela derrocada de legendas como o DEM e também pelas dificuldades aparentemente incontornáveis do PSDB. E mesmo do PSD de Gilberto Kassab, que não se consolidou ainda como a tábua de salvação para o projeto conservador, vindo a ser apenas – tudo indica – um bote para recolher náufragos daquele projeto e propiciar-lhes uma saída para seus projetos políticos pessoais.

A unidade das forças que apoiam o governo, entretanto, exigirá uma engenharia política criadora, cujo esteio estratégico precisará desembocar no fortalecimento da aliança a nível nacional visando 2014 e a continuidade do projeto de desenvolvimento nacional e afirmação soberana do país que está em curso e precisará ser reafirmado na sucessão ainda longínqua da presidente Dilma Rousseff.

Anuncia-se que o PT terá candidaturas próprias em 14 capitais na eleição do ano que vem, com nomes já definidos. E que poderá apoiar o PMDB no Rio de Janeiro (RJ), Vitória (ES) e Manaus, caso o senador Eduardo Braga seja candidato. Em Belo Horizonte e em Maceió seguirá as candidaturas do PSB; poderá apoiar o PTB em Teresina (PI) e o PDT em Maceió (AL). Anuncia-se também que apoiará o PCdoB em Florianópolis (SC), e São Luís (MA) se o comunista Flávio Dino for candidato; em Manaus, se Vanessa Grazziotin for a candidata.

O crescimento e a melhoria no desempenho eleitoral dos partidos da base aliada fortalecem a democracia brasileira. Revelam também, além das legítimas aspirações de cada partido a seu crescimento, como diz a resolução da direção nacional do PT, realidades locais que se expressam através da variedade das forças políticas aliadas. Indicam além disso aspirações do eleitorado que precisam ser levadas em conta nesta engenharia política delicada.

Os dois casos emblemáticos são as prefeituras de Porto Alegre e de São Paulo, estratégicas para o fortalecimento de qualquer projeto político que olhe para além de 2014.

Em Porto Alegre, a aspiração pela eleição da comunista Manuela D’ Ávila é antiga e está cristalizada em seu bom desempenho eleitoral nos pleitos de 2008 (prefeitura) e 2010 (Câmara dos Deputados). Em São Paulo, Netinho de Paula firmou-se com destaque no cenário desde a disputa de 2010 para o Senado, mantendo o desempenho nas pesquisas recentes que o colocam em empate técnico na liderança da disputa. O apoio do PT será importante para eleger Manuela D’Ávila em Porto Alegre.

A eleição de prefeitos progressistas representando um variado leque partidário da base de sustentação do governo Dilma é aspiração legítima e algo necessário para o fortalecimento de cada um desses partidos e para a implementação das reformas estruturais que a nação reclama.

Como os demais partidos da base (PT, PSB, PDT e PMDB), o PCdoB pretende, e planeja, crescer. Tem nomes apreciáveis na disputa pelas prefeituras que devem ser considerados como candidaturas viáveis da base de sustentação do governo Dilma.

Três anos de crise global

Por Márcio Pochmann - Revista Fórum


Os excessos de desregulamentação nas economias motivados pelo modo como a globalização se generalizou na passagem para o século XXI levaram à crise internacional de 2008. E a enxurrada crescente de capital especulativo, cada vez mais desconectada do sistema produtivo, não contaminou somente o centro dinâmico do capitalismo mundial.


O sofrimento humano gerado pela contenção do dinamismo econômico desde então tem se expressado não apenas pela destruição de postos de trabalho que faz aumentar o desemprego e por consequência a pobreza e a desigualdade social. Pior, provoca crescente perda da esperança de que seja possível construir um mundo melhor, capaz de manter aceso o horizonte de maiores oportunidades para grande parcela da juventude.


O foco difusor dos distúrbios que se pronunciam também nesta segunda manifestação da crise global, iniciada há quase três anos, segue intocável. O mercado financeiro, que se tornou o segmento mais globalizado e detentor das mais altas taxas de lucratividade, permanece o menos comprometido com a sustentação do desenvolvimento. Por conta disso, registra-se atualmente que, diferentemente da primeira onda de manifestação da crise global em 2008, quando houve a convergência de intervenções governamentais antidepressivas, as medidas adotadas são de caráter pró-cíclicas, evidenciadas pelo corte no gasto público e elevação da carga fiscal voltada à reorganização das abaladas finanças públicas.


O resultado direto disso deverá ser o aprofundamento da desaceleração da economia mundial, muito provavelmente a recessão. Nesse sentido, o prazo da melhora possível das finanças públicas será ampliado, especialmente nos países desenvolvidos que já convivem com o agravamento dos problemas sociais (desemprego em alta e aumento da desigualdade de renda e pobreza).


Neste contexto de restrição interna, resta ao setor externo o papel principal de animação dessas economias, por meio dos estímulos à exportação derivada da desvalorização cambial e desoneração fiscal. Assim, o acirramento da competição global deverá ser o resultado final. Se a produção do conjunto da economia mundial se desacelera ou decresce, o quadro de maior competitividade externa repercute direta ou indiretamente no comportamento do mercado interno de indistintos países. Com importados mais baratos competindo com bens e serviços gerados internamente, a inflação tende a desabar, bem como pode ser alterada profundamente a composição da produção, sobretudo nos países não desenvolvidos.


A reversão dessa marcha mundial é imprescindível. Enfrentar os dilemas da falta de solidariedade global é tarefa inadiável, especialmente no que diz respeito ao restabelecimento da cooperação necessária à redefinição do padrão de desenvolvimento sustentado e sustentável ambientalmente.Para isso, a retomada de ações voltadas à regulação do mercado financeiro e implementação da taxação sobre transações financeiras por alguns governos de países como França e Alemanha apresenta-se contemporânea às exigências de superação da crise global três anos depois de seu início. Não pode mais continuar sendo a vítima disso tudo (setor produtivo e trabalhadores) a principal desaguadora de todo o ônus da crise global gerada por posturas descomprometidas com o desenvolvimento global como encontrado no mercado financeiro atualmente.


Ao mesmo tempo em que se registra o avanço de uma segunda onda de manifestação da crise global, percebe-se a oportunidade para o Brasil experimentar novas e mais ousadas medidas de defesa da produção e do emprego nacional, conforme verificado em alguns países (China, Inglaterra, França, Índia e Noruega). Três modalidades de políticas governamentais poderiam ser consideradas. Inicialmente, aquelas atinentes ao reforço da articulação e coordenação de ações defensivas da produção e do emprego em âmbito regional. Para o Brasil, a possibilidade de combinar políticas econômicas e sociais de valorização do mercado interno concomitante com decisões equivalentes nos países sul-americanos, especialmente do Mercosul.


A segunda modalidade de políticas governamentais envolveria a utilização alternativa de recursos alocados pelo fundo soberano para o fortalecimento do setor produtivo. No Brasil, cuja estrutura produtiva encontra-se fortemente internacionalizada, a possibilidade da aquisição de ativos de empresas estratégicas, especialmente aquelas com valor de suas ações desvalorizadas.


Por fim, a modalidade de políticas governamentais associada à progressividade do sistema tributário. Para o Brasil, que possui uma tributação extremamente regressiva, ou seja, assentada nos segmentos de menor poder aquisitivo, a possibilidade de corrigir distorções na tributação direta como o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e o Imposto de Renda (IR). Ao mesmo tempo, a oportunidade de introduzir definitivamente o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), cujo resultado geral, além da elevação da contribuição ao fundo público ou compensação para desonerações fiscais aos segmentos de menor renda, fortaleceria o grau de coesão social.


Essas distintas modalidades de políticas públicas a serem consideradas não devem excluir outras iniciativas. A crise global é uma grande doença que precisa ser enfrentada com coragem e determinação, sem abandonar o sentido geral de constituição de um país soberano e cada vez mais menos injusto.

Terceira carta às esquerdas

As novas mobilizações e militâncias políticas por causas historicamente pertencentes às esquerdas estão sendo feitas sem qualquer referência a elas (salvo talvez à tradição anarquista) e muitas vezes em oposição a elas. Isto não pode deixar de suscitar uma profunda reflexão. Essa reflexão está sendo feita? Tenho razões para crer que não


Por Boaventura de Sousa Santos - Carta Maior


Quando estão no poder, as esquerdas não têm tempo para refletirsobre as transformações que ocorrem nas sociedades e quando o fazem ésempre por reação a qualquer acontecimento que perturbe o exercício dopoder. A resposta é sempre defensiva. Quando não estão no poder, dividem-se internamente para definir quem vai ser o líder nas próximas eleições, e as reflexões e análises ficam vinculadas a esse objetivo.

Esta indisponibilidade para reflexão, se foi sempre perniciosa, é agora suicida. Por duas razões. A direita tem à sua disposição todos os intelectuais orgânicos do capital financeiro, das associações empresariais, das instituições multilaterais, dos think tanks, dos lobbistas, os quais lhe fornecem diariamente dados e interpretações que não são sempre faltos de rigor e sempre interpretam a realidade de modo a levar a água ao seu moinho. Pelo contrário, as esquerdas estão desprovidas de instrumentos de reflexão abertos aos não militantes e, internamente, a reflexão segue a linha estéril das facções.

Circula hoje no mundo uma imensidão de informações e análises quepoderiam ter uma importância decisiva para repensar e refundar as esquerdas depois do duplo colapso da social-democracia e do socialismo real. O desequílibrio entre as esquerdas e a direita no que respeita ao conhecimento estratégico do mundo é hoje maior que nunca.

A segunda razão é que as novas mobilizações e militâncias políticas por causas historicamente pertencentes às esquerdas estão sendo feitas sem qualquer referência a elas (salvo talvez à tradição anarquista) e muitas vezes em oposição a elas. Isto não pode deixar de suscitar uma profunda reflexão. Essa reflexão está sendo feita? Tenho razões para crer que não e a prova está nas tentativas de cooptar, ensinar, minimizar, ignorar a nova militância.

Proponho algumas linhas de reflexão. A primeira diz respeito à polarização social que está a emergir das enormes desigualdades sociais. Vivemos um tempo que tem algumas semelhanças com o das revoluções democráticas que avassalaram a Europa em 1848. A polarização social era enorme porque o operariado (então uma classe jovem) dependia do trabalho para sobreviver mas (ao contrário dos pais e avós) o trabalho não dependia dele, dependia de quem o dava ou retirava a seu belprazer, o patrão; se trabalhasse, os salários eram tão baixos e a jornada tão longa que a saúde perigava e a família vivia sempre à beira da fome; se fosse despedido, não tinha qualquer suporte exceto o de alguma economia solidária ou do recurso ao crime. Não admira que, nessas revoluções, as duas bandeiras de luta tenham sido o direito ao trabalho e o direito a uma jornada de trabalho mais curta. 150 anos depois, a situação não é totalmente a mesma mas as bandeiras continuam a ser atuais.

E talvez o sejam hoje mais do que o eram há 30 anos. As revoluções foramsangrentas e falharam, mas os próprios governos conservadores que seseguiram tiveram de fazer concessões para que a questão social nãodescambasse em catástrofe. A que distância estamos nós da catástrofe? Por enquanto, a mobilização contra a escandalosa desigualdade social(semelhante à de 1848) é pacífica e tem um forte pendor moralista denunciador.

Não mete medo ao sistema financeiro-democrático. Quem pode garantir que assim continue? A direita está preparada para a resposta repressiva a qualquer alteração que se torne ameaçadora. Quais são os planos das esquerdas? Vão voltar a dividir-se como no passado, umas tomando a posição da repressão e outras, a da luta contra a repressão?

A segunda linha de reflexão tem igualmente muito a ver com as revoluções de 1848 e consiste em como voltar a conectar a democracia com as aspirações e as decisões dos cidadãos. Das palavras de ordem de 1848, sobressaíam liberalismo e democracia. Liberalismo significava governorepublicano, separação ente estado e religião, liberdade de imprensa;democracia significava sufrágio “universal” para os homens. Neste domínio,muito se avançou nos últimos 150 anos. No entanto, as conquistas têm vindo a ser postas em causa nos últimos 30 anos e nos últimos tempos ademocracia mais parece uma casa fechada ocupada por um grupo deextraterrestres que decide democraticamente pelos seus interesses editatorialmente pelos interesses das grandes maiorias. Um regime misto,uma democradura.

O movimento dos indignados e do occupy recusam a expropriação da democracia e optam por tomar decisões por consenso nas sua assembleias. São loucos ou são um sinal das exigências que vêm aí? Asesquerdas já terão pensado que se não se sentirem confortáveis com formas de democracia de alta intensidade (no interior dos partidos e na república) esse será o sinal de que devem retirar-se ou refundar-se?