sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Os limites da campanha contra a corrupção

Por Gilberto Maringoni - Agência carta Maior

Ao repelir a política, as manifestações contra a corrupção jogam uma cortina de fumaça no problema real e não incidem sobre as disputas em curso que podem atacar a farra nos cofres públicos. E recebem amplo destaque de uma mídia que não está muito interessada em desvendar as causas da corrupção.

As comemorações de Sete de Setembro foram marcadas, em meia centena de cidades brasileiras, por protestos contra a corrupção. É algo muito positivo. Ninguém tem de se conformar com os constantes roubos e desvios de verba que fragilizam os orçamentos públicos e fazem a festa de dirigentes políticos, altos funcionários e empresários amigos. Corrupção é um tema incendiário. Provoca indignação, raiva e um sentimento de apodrecimento generalizado das instituições políticas.
No entanto, as manifestações foram frustrantes.

Baixa adesão

Convocadas pela internet, em especial pelas redes sociais, os protestos tiveram pouca adesão em relação às expectativas dos ativistas virtuais. Em Brasília, eram esperadas 26 mil pessoas que confirmaram participação via Facebook. Os números divergem. O jornal O Estado de S. Paulo fala na participação de 25 mil, a Folha destaca a adesão de 12 mil e André Barrocal, aqui na Carta Maior, aponta que ,em seu início, o protesto reunia duas mil pessoas. Em São Paulo, das 21 mil aguardadas, apenas 700 apareceram para se manifestar na avenida Paulista.

Não se propõe aqui discutir a convocação de eventos coletivos através de laptops, smartphones, tablets e computadores de mesa.

O problema principal das marchas não é a baixa adesão, mas a diretriz que têm adotado.

Ativistas do PT, do PSDB, do PSOL, do PSTU e do PCdoB que tentaram abrir faixas e bandeiras de suas agremiações foram hostilizados. Alguns dos incentivadores das passeatas alegam que isso macularia seu tom apartidário. Há um viés nesse tipo de movimento, de considerar a corrupção algo inerente ao mundo político. Bingo! Se o caso é esse, neguemos a política!
Aí os problemas se escancaram.

Udenismo

As campanhas pela lisura no trato da coisa pública, como se falava em outros tempos, têm história no Brasil. É uma bandeira social mais do que justa. Mas em várias ocasiões foram desfraldadas pela direita, que sempre tentou dar ao problema uma conotação apenas moralista e não como parte das disputas de interesses na sociedade e da influência que grupos empresariais têm junto ao poder político.
A União Democrática nacional (UDN), por exemplo, partido conservador existente entre 1945 e 1964, notabilizou tanto a prática, que o termo “udenismo” passou a classificar o moralismo estéril contra a corrupção.

Descolados do mundo real, roubos, desvios, favorecimentos e comportamentos assemelhados viram uma questão da honestidade pessoal de cada um, da existência ou não de homens e mulheres de bem, lastreados em sólidos valores morais na gestão do Estado. Há uma simplificação quase infantil nisso e algumas decorrências perversas.

A simplificação está em se dividir o mundo entre pessoas de bem e gente do mal, como nos filmes de aventura. As decorrências estão, em primeiro lugar, em achar que a corrupção é um problema dos indivíduos que estão a cargo dos negócios do Estado, algo de natureza privada. E segundo, a corrupção passa a ser visto como efeito sem causa, uma coisa ligada à metafísica. Existe o político que se vende, mas não existe comprador ou corruptor. O empreiteiro ou banqueiro que azeitou engrenagens da máquina pública com dinheiro farto raramente aparece. Se aparece, não é indiciado. Nessa querela, vence o melhor. O melhor advogado, geralmente o mais caro.

O trato moralizante no combate à corrupção simplifica o problema. Trata desvios como questões de foro íntimo e do caráter de cada um. Para combater a corrupção não seria necessário mudar nada. Apenas trocar as pessoas desonestas por indivíduos honestos e botar os corruptos na cadeia. O mundo como ele é, as desigualdades sociais, as relações de poder e tudo o mais podem seguir adiante.

Público e privado

O corruptor, na maioria dos casos, não faz parte da esfera pública, mas da vida empresarial, logo privada. Como dinheiro privado é da conta de cada um – não se pergunte de onde veio – não há nada a condenar. Daí os raríssimos casos de empresários e banqueiros julgados por terem participado de esquemas suspeitos envolvendo o poder público.

Há uma lógica liberal nisso tudo. A corrupção no aparelho de Estado é condenada, mas sua equivalente no mundo privado, não. É bom lembrar que um dos argumentos para a desbragada venda de estatais nos anos 1990 era o fato de elas serem foco de corrupção, o que, deduzia-se, não ocorreria em empresas privadas, movidas pela eficiência e busca de resultados.
Na dinâmica simplista, a corrupção é algo característico d
os “políticos” e própria do Estado. Quanto menos “políticos” e quanto menos Estado, menos corrupção.

Assim, nada mais lógico que partidos – organismos “políticos” próprios para a disputa do poder de Estado – sejam expulsos das marchas. É bom sempre lembrar que uma das ideias disseminadas na época do golpe de 1964 foi a de que colocar as forças armadas no comando do governo evitaria sua contaminação pela política e pelos “políticos”.

Financiamento privado

O principal fator de corrupção na área pública reside no financiamento privado de campanhas. O funcionamento básico é conhecido: empresas (bancos, empreiteiras, agências de publicidade e outras que prestem serviços ou forneçam materiais ao Estado) fazem polpudas doações a candidatos antes das eleições. Estes, eleitos, devolvem o favor na forma de vultosos contratos, que quase sempre demandam aditamentos e complementações orçamentárias. Muitas vezes, um administrador sequer precisa fazer planos de governo ou de investimentos. As empresas já apresentam projetos, que são materializados em obras de infraestrutura de duvidosa necessidade ou inexplicáveis alocações de recursos.

Alguns dos que mais vociferam contra a corrupção – imprensa, empresários e políticos conservadores – são contra o financiamento público de campanha. Seria uma medida saneadora. A alegação é que dinheiro público não pode alimentar gastança de candidatos.

Trata-se de uma cortina de fumaça. O financiamento público, além de representar um gasto menor diante das negociatas viabilizadas pela troca de favores entre empresas e governos, estabeleceria o fim das campanhas milionárias e a disparidade que leva os mais ricos a terem melhores chances nas disputas. Seria também o fim do caixa 2 e dos “recursos não contabilizados”.

Rejeição no Senado

Como se sabe, O PL 268, que estabelecia o financiamento público foi rejeitado no final de agosto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal. Os que impediram a tramitação da matéria são os senadores Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), Pedro Taques (PDT-MT), Francisco Dornelles (PP-RJ), Sérgio Petecão (PMN-AC), Alvaro Dias (PSDB-PR), Demóstenes Torres (DEM-GO), Armando Monteiro (PTB-PE), Ciro Nogueira (PP-PI) e Flexa Ribeiro (PSDB-PA). São alguns dos mais alardeiam casos de corrupção existentes no governo. Continuarão a demonstrar indignação nas telas de TV e páginas de jornais. Mas se opuseram à criação de um mecanismo que teria consequências devastadoras contra a promiscuidade público-privada (PPP) na administração pública. Não resolveria o problema, mas seria um bom começo.

Tal comportamento encaixa-se perfeitamente ao tom despolitizado das marchas do Dia da Pátria. Desmembra-se o efeito da causa, faz-se muita espuma e daí nada.

Ao repelir a política, as manifestações jogam uma cortina de fumaça no problema real e não incidem sobre as disputas em curso que podem atacar a farra nos cofres públicos. E recebem amplo destaque de uma mídia que não está muito interessada em desvendar as causas da corrupção.

Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).

Charge

Quanta verdade o Brasil suporta?

As ambiguidades do projeto de lei do governo federal constituem bloqueios da política e da justiça e demonstram a urgência da participação da sociedade civil na formulação de qual Comissão da Verdade teremos e de quanta verdade o Brasil suporta.

A democracia brasileira, em cerca de 25 anos de existência, tem sido marcada pela ausência de justiça. Refiro-me à justiça escrita nas leis da Constituição Federal e recomendada pelos tratados internacionais assinados pelo Estado brasileiro. O país viveu uma impactante ditadura que deve ser medida pelo número de mortos, desaparecidos e torturados.

Seu forte efeito sobre a sociedade brasileira pode ser avaliado por características autoritárias e por certa cultura de impunidade herdados no regime democrático. Depois de mais de duas décadas do fim dos governos militares, nenhum criminoso da ditadura foi penalmente julgado. Mais ainda, após este largo período em que poderíamos ter uma democracia consolidada, o Superior Tribunal Federal confirmou que os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento políticos são passíveis de anistia!

É neste contexto que o atual governo se esforça para escamotear uma Comissão da Verdade, com aval do Congresso Nacional, sem o compromisso de colaborar com a justiça e com a consolidação da democracia. Esta é uma afirmação fundamentada no Projeto de Lei do governo que propõe a Comissão. Para compreender a proposição, vejamos como o Estado de Direito tem sido construído no país. Podemos dizer que há três momentos originários do processo democrático: 1. A Lei de Anistia de 1979; 2. A eleição do primeiro presidente civil via Colégio Eleitoral; 3. A Constituição de 1988.

São momentos simbólicos da democracia e possuem, entre eles, ao menos duas características em comum. Por um lado, configuraram-se como saídas negociadas em salas sombrias do Congresso ou dos palácios de governo, superando ou silenciando ações dos movimentos sociais e das lutas populares. Soma-se a isto, como segunda característica, o fato de anunciarem saídas para dilemas políticos por meio da instituição de estados de exceção, momentos nos quais o ordenamento jurídico é suspenso, por algum instrumento interno às leis, em favor da “superação” de circunstâncias que poderiam gerar alguma instabilidade ao processo político e, via de regra, por meio de uma ação autoritária.

Em 1979, o movimento pela anistia surgiu como fruto da pressão popular e dos partidos de oposição, possivelmente configurando o primeiro movimento social a fazer uso do discurso dos direitos humanos em larga escala. Contudo, o governo militar do general Figueiredo impôs ao país uma lei ambígua, a qual viria a tornar-se, por confirmação da Assembléia Constituinte de 1988 e do STF, em 2010, no marco inaugural da impunidade acordada sem a participação da sociedade. Em 1977, o Congresso Nacional havia sido fechado e silenciado para que a ditadura iniciasse o processo de abertura controlada – “lenta, gradual e segura”. No ano seguinte, impôs leis de exceção ao processo eleitoral de escolha dos parlamentares que em 1979 votariam a Lei de Anistia. Isto para não citar as várias formas de repressão política, como queimar bancas de jornal, invadir redação de jornais de oposição, prender e matar militantes contrários ao regime, censurar. O movimento pela anistia ampla, geral e irrestrita foi calado pela imposição da força de atos de exceção. Os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento político permaneceram impunes.

Próximo ao fim da ditadura, a sociedade brasileira se mobilizou no maior movimento político suprapartidário da história recente do país conhecido como “Diretas Já”. Milhões de pessoas em comícios nunca antes vistos (nem mesmo depois) foram às praças e ruas, em todo território nacional, exigir uma passagem democrática de um regime de violência para o Estado de Direito. Novamente prevaleceu a negociata. Desta vez com mais representatividade do que a de 1979, selada por quase todos os partidos, mesmo os de oposição (exceto o PT), e por segmentos importantes de instituições como a igreja católica e a mídia. Ao final, tomou posse como presidente, devido à precoce morte de Tancredo Neves, o ex-líder do partido do governo militar no período da aprovação da Lei de Anistia, José Sarney. E mais uma vez os movimentos sociais foram calados, optando-se por uma saída autoritária. Neste processo, os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento político permaneceram impunes.

Na Assembléia Constituinte, eleita em 1986, houve uma significativa mobilização dos mais variados movimentos sociais. Fruto destas ações surgiram direitos avançados (trabalhista, do índio, da mulher, do adolescente etc.). Entretanto, alguns aspectos da nova Constituição não foram alterados em relação ao outorgado pela ditadura na Constituição de 1969. Especialmente, as questões referentes à propriedade da terra, dos meios de comunicação e das relações civis-militares. Neste último item, apesar dos esforços dos familiares de mortos e desaparecidos, todos os partidos políticos aderiram ao discurso da “politica do possível” em prol de uma necessidade maior (a “estabilidade democrática”) e autorizaram o terceiro momento de exceção na transição. Os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento políticos permaneceram impunes.

Por que insistir na questão da impunidade dos crimes da ditadura no momento em que o Brasil aparece como economia forte e democracia consolidada? Isto se deve ao fato de que o atual governo brasileiro busca impor um projeto de lei sobre a Comissão da Verdade sem ouvir a sociedade brasileira, em especial sem dar voz às vítimas e seus familiares e, ressalte-se, por meio de um ato de exceção: a votação em regime de urgência urgentíssima, pelo qual são dispensadas as formalidades regimentais devido ao caráter inadiável ou emergencial do tema em questão. Ora, como pode ser inadiável um assunto que por mais de 30 anos tem sido ocultado por acordos necessários e emergenciais. Será que depois de mais de 25 anos de democracia a sociedade brasileira não tem vida política qualificada o suficiente para discutir como quer abordar sua história e suas consequências para o presente? Por que tanta pressa? O que torna a Comissão da Verdade uma votação inadiável neste momento?

É muito provável que a urgentíssima necessidade de aprovação do projeto nos próximos dias esteja vinculada à questão: de qual verdade ou quanto dela a Comissão irá apurar. O projeto do governo, amplamente anunciado como aceito pelas Forças Armadas, indica em seu primeiro artigo todo o problema colocado. Vejamos como este artigo começa: “Fica criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade (...)”. No Artigo 10º se esclarece o que isto quer dizer: a Comissão da Verdade não terá estrutura, orçamento e funcionamento autônomo em relação ao poder Executivo. Ela dependerá do “suporte técnico, administrativo e financeiro” da Casa Civil. A Comissão prevista não terá independência e autonomia para a realização de seus trabalhos.

Segue o Artigo 1º: a Comissão será criada “(...) com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas (...)”. Praticadas por quem? Será que já não é evidente para a história do país que houve uma grave e violenta ditadura no país? Por que não consta do Projeto as palavras “responsável” ou “responsabilidade”?

Bem, talvez o Estado ditatorial não tenha sido nomeado porque o restante do artigo esclareça a questão da responsabilidade. Retornemos à leitura do Artigo 1º: “(...) praticadas no período fixado no Artigo 8º. do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (...)”. O que será este Ato? Seu teor diz: “É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição (ou seja, 1988), foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares (...)” (grifos e comentário nossos). Como assim? A ditadura não foi de 1964 a 1985 (ou 1988, se a referência for a nova Constituição; ou ainda, 1989, se for a primeira eleição direta para presidente)? Então, quais violações de direitos humanos serão examinadas e esclarecidas entre 1946 e 1988?

Segundo documento do Ministério Público Federal (“Nota Técnica sobre o Projeto de Lei que cria a Comissão Nacional da Verdade”, de abril de 2011), “tal enfoque amplia demasiadamente o objeto da Comissão”, com “um risco de que a Comissão perca o foco”. O documento do Ministério Público informa que o Artigo 8º. do Ato é um dispositivo que “estipulou normas diversas (...) , pois o resultado final era o mesmo: anistia para perseguidos políticos, independente da natureza da perseguição”. Novamente, parece que o desejo de conhecer a história do país está sendo escamoteado.

O Artigo 1º do Projeto do governo continua: a Comissão irá “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos (...) a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (grifo nosso). Qual reconciliação? Ainda vivemos o conflito da época da ditadura? O projeto de lei do governo, este mesmo que anuncia o Brasil como uma democracia consolidada e de economia forte, está dizendo que as relações entre civis e militares ainda existem? Que há algo de autoritário no Estado de Direito?

Merecedor de nota foi o casuísmo no trâmite do projeto da Comissão da Verdade apresentado ao Congresso Nacional, em maio de 2010, dois dias antes de iniciar o julgamento do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). Neste processo, o Brasil foi condenado a apurar as circunstâncias dos assassinatos e tortura de militantes da Guerrilha do Araguaia (1972-1975), localizar os corpos desaparecidos e punir os responsáveis por tais crimes.

Da mesma maneira casuística temos hoje a necessidade urgentíssima de aprovação do Projeto que ocorre próximo à reunião da Corte da OEA, momento em será avaliado se a sentença está sendo cumprida; e, não menos intrigante, às vésperas do discurso da presidente Dilma Roussef na ONU.

As ambiguidades do projeto de lei do governo constituem bloqueios da política e da justiça e demonstram a urgência da participação da sociedade civil na formulação de qual Comissão teremos e de quanta verdade o Brasil suporta.

Professor de Filosofia Política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

A visita dos conquistadores

Com a arrogância de conquistadores em território ocupado, que lembra a visita de Hitler à França, em 23 de junho de 1940, Cameron e Sarkozy estiveram ontem na Líbia. Há alguns meses, eles, com a cumplicidade de Obama e a genuflexão da ONU, lideraram a Otan nos ataques aéreos ao país.

Por Mauro Santayana, no Jornal do Brasil


Kadafi é tudo o que dizem dele. Megalômano, teria ordenado o atentado contra um avião de passageiros, que explodiu sobre Lockerbie, na Escócia, e matou 270 pessoas, em 1988, além de governar o seu povo com mão pesada.

Kadafi não é inocente. Mas é um erro não admitir que ele usou dos recursos naturais do país, por ele nacionalizados, a fim de dar relativo bem-estar a seus compatriotas. Não só assegurou a assistência gratuita à saúde, em qualquer caso, como garantiu a educação de todos, incluída a universidade. Aceitar esse fato é importante, a fim de pesar as consequências históricas da intervenção militar estrangeira, ainda em curso.

É quase certo que Kadafi não disporá de tempo nem de espaço para uma resistência duradoura e efetiva. É sem embargo prudente considerar que o vasto território líbio, que se estende pelo amplo deserto ao sul, foi apenas tocado, em seu litoral, pela supremacia dos meios bélicos estrangeiros. Se Kadafi se encontra sob a proteção de chefes tribais, encontrá-lo nos areais do Saara será mais difícil do que localizar uma agulha no palheiro. Ele, que é ainda relativamente moço, terá condições — se contar com essa proteção política atávica — de iniciar operações de guerrilha contra os seus sucessores, com resultados imprevisíveis.

Neste momento, e apenas neste momento, Sarkozy e Cameron se sentem vitoriosos. Posam de condôminos dos Estados Unidos na aspiração imperial e creem que podem, em pouco tempo, liderar nova repartição colonial da África, como a ocorrida em Berlim, em 1884/85. Naquele tempo, a China estava de joelhos, a Rússia mergulhada no desatino dos Romanov, e os Estados Unidos mal iniciavam o seu projeto de expansão mundial.

Com isso, Sarkozy e Cameron acreditam também injetar um pouco de oxigênio em seus países, que passam por crise econômica, política e financeira grave, em decorrência da subordinação de seus governos aos interesses dos grandes bancos europeus. Mas, como nos belos versos de Cazuza, o tempo não para, e o futuro costuma repetir o passado.

Os dois líderes, com seu sorriso, que tudo indica ser provisório, estão felizes. Lideraram uma coalizão que tinha como propósito salvar vidas inocentes no confronto entre rebeldes e o governo — e fizeram, com sua intromissão nos assuntos internos de um país até então soberano, mais de 20 mil mortos. Para defender os direitos humanos, eliminaram os titulares de tais direitos que anunciavam garantir. Se não se tivessem envolvido no conflito, provavelmente não haveria tantos mortos, mas não poderiam, agora, reivindicar a repartição do petróleo líbio — antes que possam repartir também o fosfato e outros minerais. Daí sua equivocada alegria.

O artigo 2º da Carta das Nações Unidas estabelece que as relações entre os países devem obedecer aos princípios da igualdade de direitos e de respeito à autodeterminação dos povos. O bom-senso, mais do que até mesmo os compromissos éticos — se os houvesse nas relações internacionais — recomendaria a não intervenção nos assuntos internos das comunidades políticas soberanas, qualquer que fosse o pretexto. Isso não ocorre. A não intervenção é uma retórica da hipocrisia, que tem sido violada sempre que é de interesse das nações mais bem armadas. Não há só hipocrisia, mas sobra o cinismo, como no caso líbio: para “proteger” os presumidos direitos humanos violados, as armas dos interventores mataram milhares de inocentes — e ainda mantêm o discurso que, com os resultados sabidos, passa a ser abjeto.

É da elementar compreensão da Realpolitik que uma rebelião armada contra qualquer governo seja reprimida pelo poder constituído. O governo de Kadafi era legitimado pelo consentimento dos líbios. Se eles se rebelaram contra esse poder, e se Kadafi reagiu com suas Forças Armadas, o conflito deveria ter sido resolvido sem qualquer intervenção externa. Provavelmente, o descontentamento contra Kadafi e o seu desgaste pela longa permanência no governo absolutista levassem os rebeldes à vitória, que seria legítima. E esses rebeldes, sem qualquer intervenção externa, reorganizariam, como bem entendessem, sua sociedade política. No momento em que sua aparente vitória se deve a forças externas, ela é frágil e pode ser provisória.

Cameron e Sarkozy, de acordo com alguns observadores, estiveram na Líbia a fim de contrapor-se à presença e provável influência de Erdogan no país. Ninguém sabe, exatamente, o que os membros do instável Comitê Nacional de Transição pensam dos problemas regionais (neles, o conflito entre Israel e a Palestina, a situação da Síria e do Irã, a alentadora dúvida da Arábia Saudita e os interesses estratégicos da Rússia e da China no Mediterrâneo), mas é natural que ouçam o premier turco, que representa um país com forte presença islâmica. Há a possibilidade de que o novo governo líbio, constituído de rebeldes, não venha a ser mero delegado dos estrangeiros, e assuma postura independente. Para isso contam com a simpatia das novas potências mundiais, como a Rússia — que pediu à ONU o fim da intervenção aérea no país — e a China.

Mais uma vez, na História, a paz do mundo depende do Mediterrâneo, esse lago que une os três maiores continentes do planeta.

Trabalhadores rurais questionam demissões na Bahia

Na manhã de hoje (15), o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Água Fria (STTR) foi informado de que 30 trabalhadores da VKR Matrizes e Aves foram demitidos em represália à paralisação das atividades, nos dias 13 e 14 de setembro, para exigir respeito aos direitos trabalhistas e respostas às pautas de reivindicações da categoria, entregues na data-base, em maio de 2010 e 2011. Para discutir a situação, a STTR se reúne com trabalhadores durante a tarde de hoje.


Em assembléia, cerca de 120 trabalhadores e trabalhadoras da empresa, localizada no município de Água Fria, região de Feira de Santana, organizados pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado da Bahia (FETAGBA) e pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais decidiram cruzar os braços para exigir direitos trabalhistas que não são respeitados pelos proprietários da empresa, bem como respostas às pautas de reivindicações apresentadas.

Empresa não responde

Cansados de esperar pelo descaso dos patrões, que sequer respondem às reivindicações da categoria, encaminhadas oficialmente pelo STTR há dois anos, 2010 e 2011, na época da data-base, resolveram parar de trabalhar e deflagrar esse processo de pressão e mobilização, considerando ser essa a única forma da empresa ouvir suas reivindicações e respeitar seus diretos.

Segundo Renilda Santos, presidente do sindicato, foram muitas as tentativas de negociação, sem respostas: “agora, de forma truculenta, a direção da empresa responde com demissão, provando, mais uma vez, a forma desrespeitosa como trata os trabalhadores, e como não atende e ainda debocha da legislação trabalhista do País, que prevê negociações coletivas todo ano na data-base das categorias. Vamos tomar todas as providências legais para barrar este absurdo, solicitar a intervenção do Ministério do Trabalho, através da Superintendência Regional do Trabalho, antiga DRT, e continuar a mobilização para garantir respeito e direitos.”

Entre as principais reivindicações para que seja realizado o acordo, estão elementos básicos para que possam de fato ter condições de trabalho, bem como uma melhor qualidade de vida. O pagamento do salário unificado no valor de R$ 600,00, cesta básica no valor de R$ 50,00, água potável e gelada no local de trabalho, reforço alimentar, plano de saúde para todos, utilização de uniformes, bem como outros tópicos que são considerados como fatores essenciais para a realização de um trabalho decente, como preconiza o Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O movimento de paralisação foi coordenado pelos representantes dos trabalhadores, Inácio Ribeiro, secretário de Trabalhadores Assalariados Rurais da FETAG-BA, e Sueli Azevedo, tesoureira do STTR de Água Fria. Inácio Ribeiro afirmou que a Federação e o Sindicato farão gestões junto às autoridades constituídas à Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil - Regional Bahia, bem como denunciará à sociedade baiana como a VKR trata de forma desumana seus funcionários, com todo tipo de desrespeito aos direitos básicos e mínimos de condições de trabalho e reconhecimento. Para ele, “já estava na hora dos trabalhadores e trabalhadoras da VKR paralisarem suas atividades para demonstrar o alto nível de sua insatisfação. Com esta organização, estão dispostos, se necessário, a irem à greve geral, exigindo seus direitos trabalhistas.” Concluiu.

Fonte: Kardé Mourão - Vermelho

É hora de restringir as remessas de lucros das multinacionais

Editorial do Vermelho

As remessas ao exterior de lucros e dividendos apropriados pelas multinacionais instaladas no Brasil vêm batendo novos recordes ao longo deste ano, cobrindo de sombras o horizonte das contas externas e comprometendo o crescimento do país. O valor dos recursos remetidos às matrizes nos doze meses compreendidos entre agosto de 2010 a julho de 2001 alcançou US$ 34,19 bilhões.

Temos aí a principal causa do déficit em conta corrente do balanço de pagamentos, que deve superar a casa dos US$ 50 bilhões neste ano, apesar do comportamento positivo da balança comercial. O saldo entre exportações e importações de janeiro a agosto foi positivo em US$ 19,9 bilhões, o que significa um aumento de 70,8% em relação ao mesmo período do ano passado.

A valorização das commodities (soja e minério de ferro, entre outras), decorrente da demanda chinesa, revolucionou as relações de trocas na economia mundial, favorecendo os países mais pobres, e explica o superávit no intercâmbio de mercadorias num contexto de valorização do real e de relativa desindustrialização. Todavia, não é o suficiente para impedir o rombo em conta corrente, reflexo do gigantesco passivo externo acumulado pelo país.

O crescimento extraordinário das remessas feitas pelas empresas estrangeiras aqui instaladas reflete a crise mundial do capitalismo e, em especial, as turbulências em curso na Europa e nos Estados Unidos, onde estão instaladas as matrizes dessas multinacionais.

Num momento de crescentes dificuldades, marcado pela queda no valor das ações e balanços negativos em diferentes ramos e setores, com destaque para o sistema financeiro, as filiais são pressionadas a aumentar o valor das remessas para cobrir prejuízos acumulados nas matrizes.

É um expediente que as potências capitalistas usam para transferir aos países mais pobres parte do ônus da crise que criaram e que, hoje, ameaça devorá-las. O que está ocorrendo não chega a ser novidade. Fenômeno semelhante foi verificado em 2008, quando a economia brasileira sofreu os primeiros impactos da crise.

Na linguagem marxista, os lucros e dividendos remetidos pelas multinacionais constituem uma parte, robusta, da mais-valia gerada pela classe operária brasileira. Embora o conceito possa parecer controverso e mesmo antiquado num ambiente em que floresce o possibilismo, é imprescindível levá-lo em conta para compreender o real significado deste movimento do capital estrangeiro.

O excedente do trabalho, no caso, configura uma poupança nacional que deixa de ser canalizada para os investimentos domésticos no momento em que é transferida para outras plagas. Ou seja, a remessa de mais-valia às matrizes reduz a taxa de investimentos internos.

Como o crescimento do PIB é, basicamente, determinado pelos investimentos, não é necessário grande esforço mental para concluir que a sangria promovida pelas transnacionais diminui o potencial de expansão da produção e, por consequência, conspira contra o desenvolvimento nacional.

O problema não diz respeito apenas à exploração secular da força de trabalho pelo capitalismo (ainda que do ponto de vista comunista este seja um aspecto central). Está estreitamente entrelaçado aos interesses nacionais, embora a ideologia dominante, ditada pela burguesia, seja incapaz de enxergar tal realidade.

Não é sem razão o temor manifestado por fontes do governo ao jornal Valor de que as remessas de lucros e dividendos ao exterior comprometam, por exemplo, os investimentos necessários para desenvolver o Programa Nacional de Banda Larga, estimados em US$ 70 bilhões nos próximos cinco anos.

O efeito negativo do fenômeno sobre o balanço de pagamentos tem sido neutralizado pelo fluxo de capitais estrangeiros para o país, atraídos tanto pela perspectiva de crescimento e lucros mais generosos quanto pelos juros mais elevados do mundo, que estimulam e premiam a especulação. Daí o superávit (no balanço de pagamentos) e o crescimento das reservas, em contraste com o déficit em conta corrente.

Mas o ingresso maciço de investimentos externos, diretos ou indiretos, tem o efeito colateral de ampliar o passivo externo líquido e, por consequência, o valor das transferências de riquezas às matrizes no futuro. Além disto, não seria prudente descartar a possibilidade de uma reversão do fluxo e fuga de capitais em caso de uma piora significativa no cenário econômico mundial, conforme ocorreu (embora por um breve período) em 2008.

Não é demais lembrar que a controvérsia em torno do tema foi uma causa (ou pretexto) para o golpe militar de 1964. Os tempos são outros e as percepções também. É óbvio, todavia, que a excessiva liberalidade em relação às remessas é mais uma herança do neoliberalismo que sobreviveu ao governo Lula e permanece, hoje, com aparência de “imexível”, como um tabu.

Os interesses nacionais e o desenvolvimento da economia recomendam a mudança da política praticada neste terreno desde os anos 1990, com a taxação mais rigorosa e imposição de normas que restrinjam as remessas ao exterior e garantam que a poupança embutida no excedente do trabalho nacional seja canalizada para os investimentos internos, elevando o potencial e a taxa de crescimento do PIB.

Heroica greve dos professores mineiros

Editorial do jornal Brasil de Fato:

Algumas lutas acabam se convertendo em verdadeiro marco histórico por sua persistência, coragem e capacidade de resistir.

No início da ofensiva neoliberal protagonizada pelo governo da Baronesa Margarete Thatcher (Inglaterra), a privatização das famosas minas de carvão inglesas era uma questão crucial. Dava início a um processo que hoje ficou conhecido como a “privataria”. Sua tentativa de fechar algumas minas para iniciar a privatização enfrentou muita resistência da classe trabalhadora.

Em 12 de março de 1984, os sindicatos do Reino Unido decretaram uma greve geral de toda a categoria. Com piquetes que chegaram a contar com mais de 10 mil trabalhadores, a greve durou um ano. Rapidamente, as forças neoliberais de todo o mundo compreenderam o que estava em jogo. Uma intensa luta ideológica foi travada durante todo o período de luta. O governo inglês importou carvão da Polônia, acusou os trabalhadores de ineficientes, recebeu carregamentos de carvão como ajuda de seu amigo estadunidense Ronald Reagan e finalmente, com ajuda da grande mídia e dos serviços de espionagem, lançou um falso dossiê, o famigerado Relatório Cook, que acusava os sindicatos de terem ligações com terroristas líbios.

A heroica greve dos mineiros ingleses mostrou que a ofensiva neoliberal teria que enfrentar a resistência da classe trabalhadora. Em nosso caso, a luta marcante deste período histórico foi a greve geral dos petroleiros em 1995. Aqui, quem cumpriu o papel sujo da baronesa Thatcher foi seu discípulo Fernando Henrique Cardoso, então presidente do Brasil.

Em plenária nacional convocada pela Federação Única dos Petroleiros (FUP), em janeiro de 1995, os petroleiros decidem unificar a luta com outras categorias do setor público: eletricitários, telefônicos, trabalhadores dos Correios e os servidores federais. O movimento unificado, no entanto, vai perdendo força e os petroleiros acabam sustentando a greve heroicamente por 32 dias.

Os trabalhadores se revezavam nas refinarias para garantir o abastecimento básico da população e preservar os equipamentos. Enfrentaram todo o tipo de ataques e acusações da grande imprensa. Trata-se da última greve brasileira que enfrentou todas as multas e punições do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Demissões, multas gigantescas diárias, bloqueio das contas dos sindicatos, nada impediu a combatividade dos trabalhadores petroleiros. Os sindicatos chegaram a ser obrigados a funcionar na clandestinidade e conseguiram manter a categoria coesa. Para jogar a população contra os grevistas, utilizaram as distribuidoras de gás de cozinha que abruptamente estocaram os produtos e suspenderam as vendas.

Até as tropas do Exercito Brasileiro foram utilizadas pelo governo para reprimir a greve que simbolizou o início dos anos de descenso das lutas no Brasil. Infelizmente, a maioria do movimento sindical não compreendeu o que estava em jogo naquele momento. Apesar das muitas iniciativas de solidariedade, as entidades sindicais e os movimentos sociais não perceberam que estavam diante de uma batalha decisiva e trataram a greve como uma luta apenas dos petroleiros. Demoraram muitos anos para perceber que ali estava sendo sepultado o direito de greve previsto na Constituição Federal de 1988. Atualmente estamos vivendo um novo período para as lutas da classe trabalhadora. O crescimento do número de greves e as conquistas salariais apontam uma evidente retomada do movimento sindical. No momento em que as forças populares se unificam em torno da bandeira de 10% do PIB para a Educação, estamos vendo a combatividade dos professores lutando por condições dignas de trabalho em todas as regiões do país.

A principal reivindicação dos professores é emblemática deste período histórico tão desfavorável para a luta da classe trabalhadora. Os professores de Minas Gerais, assim como professores da maioria dos estados brasileiros reivindicam simplesmente o cumprimento da lei! Exigem o imediato cumprimento do Piso Salarial Profissional Nacional (PSPN), estabelecido pela Lei Federal nº 11.738.

Desde 8 de junho, os professores mineiros enfrentam a tropa de choque, ataques difamatórios na grande mídia, punições administrativas e ameaças, apenas por exigirem o cumprimento da lei!

As vésperas de completar 100 dias de greve, a vitória dos professores mineiros não pode ser vista como apenas de uma categoria. É parte importante da mesma luta que reivindica verbas para a educação e, principalmente, um símbolo de um novo período de conquistas que se abre para a classe trabalhadora.

Neste momento somos todos professores em Minas Gerais! Somos todos professores em todo o país! Exigimos uma educação pública e de qualidade para todos os brasileiros. Essa luta é de todo o povo brasileiro.

O inferno astral do neoliberalismo

Por Antonio Lassance, no sítio Carta Maior:

O neoliberalismo é uma ideologia, uma visão de mundo. Mais precisamente, é uma visão de mundo adepta do individualismo, da competição, do Estado mínimo e da primazia do mercado, o que justifica sua filiação ao velho liberalismo. O que havia de novo nesse liberalismo?

O velho liberalismo de Adam Smith reservava funções claras ao Estado, mesmo que sumárias, como a defesa do território, a proteção (que hoje preferimos chamar de segurança pública), o recolhimento de impostos e a política monetária. Mas nenhum liberal clássico, ao defender o indivíduo, deixava de olhar a sociedade como um todo. A liberdade individual supostamente promoveria o bem estar da sociedade. Smith externava preocupação com o [fato] de que seus concidadãos, que vestiam o mundo, estavam em farrapos.

Para o neoliberalismo, porém, não existe sociedade; o que existe são indivíduos (frase de Margareth Thatcher, ex-primeira ministra do Reino Unido). Não existe serviço público que não possa e não deva ser prestado por empresas privadas (frase de David Cameron, atual primeiro ministro do britânico).

Para o liberalismo clássico, as corporações eram um problema a ser atacado. “A riqueza das nações”, de Adam Smith, criticava a proteção estatal às companhias comerciais, que exerciam atividades mercantis de forma monopolística, financiadas e escoltadas com recursos públicos. Para o novo liberalismo, as corporações são “a firma” e são equiparadas aos indivíduos. São pessoas jurídicas e têm por trás de si acionistas (indivíduos). Ao contrário da versão original, para o neoliberalismo a riqueza dos indivíduos é apátrida, e não uma riqueza “das nações”.

Outro fator de novidade do neoliberalismo era a globalização, uma marcha tida como inexorável para o domínio absoluto do globo por essas grandes corporações (comerciais, industriais, mas sobretudo financeiras). Bem diferente da ideia de divisão internacional do trabalho, que tinha como base as nações, e não as empresas. Romanticamente, Smith apontava um caminho para cada país encontrar seu lugar ao sol, produzindo de acordo com sua vocação. Deve-se dar um desconto ao romantismo de Adam Smith, pois ele era contemporâneo da poesia de Lord Byron, da música de Beethoven, da pintura de Delacroix. O mundo respirava romantismo por todos os lados e parecia que o progresso salvaria a todos.

A visão do neoliberalismo não é nada romântica. Os neoliberais são realistas até o último fio de cabelo. Eles são herdeiros da mutação genética introduzida no velho liberalismo pelo darwinismo social de Herbert Spencer, na segunda metade do século XIX. Sua vinculação a Friedrich Hayek tem traços claros que os colocam mais como apóstolos da lei do mais forte do que da lei do livre mercado.

Ascensão e queda do neoliberalismo

A construção do neoliberalismo desenrolou-se aos soluços, com inúmeros sobressaltos. Ele sobreviveu em estado vegetativo por décadas, até ganhar uma dimensão política avassaladora com o tridente formado por Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha, nos anos 1980, personificado nas lideranças de Ronald Reagan, Margareth Thatcher e Helmut Kohl.

Sua força política empunhava um ideário econômico agressivo, cuja síntese mais propalada tornou-se conhecida como o “Consenso de Washington”.

O ciclo do neoliberalismo, quase como um ciclo biológico tradicional, durou cerca de vinte e cinco anos. É difícil encontrar hoje em dia algo que não traga sinais dessa herança. Mesmo com seus abalos, ao final dos anos 1990, ele ainda ganhou uma sobrevida por meio de governos da autointitulada “terceira via”. Sob esse guarda-chuvas está uma legião composta pelos democratas nos EUA (Bill Clinton), socialdemocratas da Europa (Tony Blair, no Reino Unido; Gerhard Schröder, na Alemanha; Lionel Jospin, na França; Massimo D’Alema, na Itália) e parte da América Latina (como Fernando Henrique Cardoso, no Brasil; Carlos Andrés Perez, na Venezuela; Carlos Menem, na Argentina; e todos os governos da Concertación chilena).

O inferno astral

O neoliberalismo sofreria um profundo abalo e entraria definitivamente em seu inferno astral a partir de 2008, quando se ouviu um dobre de finados não na periferia do sistema, mas na catedral do capitalismo, em Nova York. Era o enterro da Lehman Brothers Holdings Incorporated.

Mas uma das características do neoliberalismo, além da ousadia e do cinismo, é a teimosia. Ele insistia em disputar projetos políticos e em ganhar eleições com seus arautos. Neles residiam as últimas esperanças de dar a volta por cima, recobrar as energias e reinventar formas de acumulação que evitassem que o capitalismo carregasse a pecha de ser um grande prejuízo para a vida da maioria dos mortais.

Para a surpresa dos incautos, o neoliberalismo conseguiu eleger novos garotos-propaganda. Na pátria-mãe, o Reino Unido, David Cameron; no Chile, Sebastián Piñera; na Alemanha, Angela Merkel.

O Reino Unido é o exemplo mais retumbante do fracasso estrutural do neoliberalismo. Sua política econômica tem como eixo a redução de serviços públicos e a tentativa de desmonte de estruturas de Estado, uma retórica persistente, mas pouco efetiva. O inglês mantém um alto grau de prestação de serviços públicos estatais. Conjunturalmente, a inflação está em alta, com as projeções beirando os 5% - pois é, eles não vão cumprir a meta de inflação, que por lá está fixada em 2%. O desemprego não só está em alta, como é o maior dos últimos dois anos.

A Escócia de Adam Smith, em má homenagem ao credo neoliberal, ostenta um grande número de serviços públicos gratuitos à população. Seu Estado de bem-estar social faz inveja ao dos ingleses. Os escoceses já haviam conseguido um parlamento próprio e agora têm ganhado mais adeptos em favor de sua independência. A política de desmonte, do governo Cameron, tem ajudado em muito a aumentar a adesão à proposta de secessão. As receitas da Escócia são suficientes para mostrar que, se alguém pode sair perdendo com a separação, é a Inglaterra.

No País de Gales, a seção local do partido conservador cogita até trocar de nome e reclama de sua associação ao legado de Margareth Thatcher. A má fama do thatcherismo, segundo pesquisas, os prejudica eleitoralmente.

No Chile, Piñera enfrenta as maiores manifestações desde Pinochet. Além dos estudantes nas ruas, grande parte dos moradores das cidades do sul do país, dependentes do gás subsidiado para se proteger do frio, protesta contra o reajuste do produto e o encarecimento do custo de vida.

Na Alemanha, Merkel tem feito pouca coisa que pode ser considerada verdadeiramente neoliberal. Tanto que até seu companheiro de partido, Helmut Kohl, lhe faz críticas sistemáticas. Os socialdemocratas alemães parecem bem mais apegados ao neoliberalismo e dizem que a Alemanha vai pagar caro pelas “vacilações” de Merkel, que deveria ser mais dura em cobrar ajustes rigorosos em toda a zona do Euro.

O conservadorismo e seu contraponto

Mas a hora não é dada a comemorações. O que está ruim ainda tem a chance de ficar pior. A crise profunda do neoliberalismo tem tido como efeito político a ressurreição do conservadorismo. Se os novos liberais perderam força, os conservadores tomaram muito de seu espaço. A última vez em que isso aconteceu foi após a I Guerra Mundial, com o nazismo e do facismo.

O conservadorismo tem como bandeiras o combate aos imigrantes, o protecionismo, o militarismo e o gasto social seletivo. Quer reduzir a prestação de serviços públicos e trocá-los por cheques, “vouchers” e descontos de imposto de renda, mas não exatamente por razões privatistas. Há um duplo propósito. Torna possível financiar empresas privadas nacionais para prestar serviços públicos essenciais e fecha a porta aos imigrantes, que vivem na ilegalidade e não podem receber esses benefícios focalizados.

O conservadorismo que tem no “Tea Party”, dos EUA, seu movimento mais proeminente, é protecionista, nacionalista, militarista, xenófobo, intolerante Os neoliberais não são a fonte desses cacoetes. Seus vícios originais são outros, embora aceitem compartilhá-los, principalmente o militarismo, se isso justificar vantagens competitivas.

Neoliberais apóiam a imigração como forma de atrair talentos de qualquer parte do mundo e reduzir o custo da mão-de-obra, assim como para manter uma ampla parcela de trabalhadores apartada de direitos sociais. São a favor do direito de mulheres muçulmanas escolherem se querem ou não usar a burka, pois sua proibição desrespeita a liberdade individual. São cautelosos quanto ao militarismo, pois seus gastos são elevados. Henry Kissinger e James Baker escreveram, meses atrás, um artigo condenando a intervenção na guerra da Líbia, com base em um cálculo da relação custo-benefício para os Estados Unidos.

Na crise financeira de 2008, os neoliberais foram, em grande medida, “liquidacionistas”, como o velho Hayek pergava. Disseram que os bancos em dificuldades deveriam ser deixados à sua própria sorte e quebrarem, se preciso fosse.

Se há um contraponto político ao conservadorismo, ele ronda a América do Sul. Está pelo Brasil, pela Argentina, o Uruguai, o Paraguai, a Bolívia, a Venezuela, o Equador e o Peru. Com defeitos, limitações, tibiezas e inúmeros problemas. Na Europa e nos Estados Unidos, os movimentos de esquerda são de uma espontaneidade sem luxemburguismo (o da Rosa, não o do Vanderley). Dependem de associações civis pouco conectadas à luta política nacional e têm um profundo descrédito pelos partidos, inclusive os de ultraesquerda, afogados em sua própria retórica e empacados em sua falta de projeto.