quarta-feira, 6 de julho de 2011

Falando francamente sobre consumo e consumismo

Somos, por natureza, seres consumidores e estamos no topo da cadeia alimentar. Logo, consumir é nosso destino natural, o problema são os excessos. Excesso de gente, que já está demais e que continua se multiplicando globalmente, embora se reduza em diversos países e regiões. Cada boca que nasce demanda por mais recursos naturais, que não são infinitos. Mas existe um excesso ainda pior, o da desigualdade social, que permite que uns poucos possam se apropriar de mais recursos que a maioria, ou seja, não adiantará muito diminuir o excesso de gente sem também diminuir a ganância.

O mundo atual se construiu em torno da falsa idéia de que o mercado será capaz de suprir as necessidades humanas, a ponto de aceitarmos a organização da sociedade em classes sociais em função do poder de consumo. Quem pode consumir muito pertence às classes altas, os remediados, à classe media, e os pobres, às classes baixas. A reboque do conceito do poder aquisitivo surge quase que naturalmente a falsa noção de que os que tem muito são mais importantes e com mais direitos do que os que não tem, e isso é absolutamente falso, pois somos todos iguais em dignidade e direitos. O mercado só consegue ser solução para os que têm dinheiro. Para os demais, é preciso políticas públicas.

O problema não está só no colapso ambiental, mas no colapso ético e moral que nos põe em risco enquanto humanidade e civilização muito antes de desaparecermos enquanto espécie. Se as pessoas aceitarem a idéia de uma sociedade que valoriza o dinheiro acima dos valores humanos, acumular riquezas pode se tornar um fim em si mesmo em vez de meio de vida, aliás, a própria idéia de vida pode se empobrecer a ponto de se resumir a produzir numa ponta e consumir na outra. Bem longe da idéia de viver em abundância e plenamente. Em vez de nos tornarmos mais solidários e cultivarmos bons valores e a cidadania, acabaremos valorizando muito mais o individualismo, o materialismo, a competição desmedida, a insensibilidade com os menos favorecidos.

E tudo isso baseado numa mentira, a de que se todos alcançarem os mesmos padrões de consumo dos mais ricos, será possível haver recursos naturais para todos. Fazer com que todos acreditem nesta mentira é conveniente para os que dominam e controlam os recursos e as riquezas, pois em vez de pedir por mudanças, as pessoas irão querer que tudo continue como está na esperança de que um dia chegará a sua vez e que só não chegou ainda por que não foram capazes ou merecedores o suficiente. Não é de se admirar que seja tão difícil ser sustentável e compatibilizar progresso e meio ambiente.

Mas não é impossível.

Não só outro mundo é possível como já vemos por todos os lados os sinais dessa mudança. Por mais que alguns gostem de se iludir com falsas promessas de consumo, elas percebem os sinais de esgotamento do Planeta. Um novo mundo já esta nascendo do velho mundo, e o que assistimos são as dores do parto.
Precisamos é de coragem para persistir nos caminhos da mudança e valorizar escolhas diferentes das que trouxeram a humanidade à beira do colapso.

Não temos que comprar tudo o que vemos nas prateleiras. Não temos de acreditar em tudo o que se diz nas propagandas e devemos duvidar das informações tendenciosas, mentirosas e manipuladores. Não temos que seguir a moda e descartar um produto que ainda serve. Não precisamos de nenhum bem de consumo para amar e ser amados, ou para sermos felizes, ou para nos sentirmos importantes e reconhecidos socialmente.

Da mesma maneira que temos a liberdade de consumir o que nosso dinheiro ou crédito a perder de vista nos permite, também temos a liberdade de recusar o consumo desperdiçador de recursos. Podemos escolher consumir criteriosamente, apenas para atender a necessidades objetivas e realmente necessárias, preferir produtos socioambientalmente responsáveis, recicláveis, que fortaleçam as cadeias produtivas locais e a criatividade de nossos trabalhadores e artesãos. Podemos consumir de maneira planejada em vez de agir por impulso. Temos o poder de dizer sim e também de dizer não. Somos nós o poder do mercado.

Não foi o consumismo que nos fez assim. Ele apenas aproveitou a oportunidade por sermos assim e encheu as lojas e prateleiras e nossos sonhos e desejos de bugigangas e objetos que no final podem nem ser tão importantes para vivermos uma vida plena e feliz.

Os inimigos não estão fora de nós. Para resolvermos a crise socioambiental em que nos metemos, teremos de ter a coragem de admitir que somos uma parte importante do problema - e também da solução.

[* Vilmar edita deste janeiro de 1996 a Revista do Meio Ambiente (que substituiu o Jornal do Meio Ambiente) e o Portal do Meio Ambiente (www.portaldomeioambiente.org.br). Em 1999, recebeu no Japão o Prêmio Global 500 da ONU Para o Meio Ambiente e, em 2003, o Prêmio Verde das Américas - www.escritorvilmarberna.com.br]. (Vilmar Berna - Adital)

Oposição em decomposição

Em todo país verdadeiramente democrático os partidos de oposição ao governo ocupam um lugar significativo. São eles que, de certa maneira, contribuem para o equilíbrio político, evitando que os que governam se empolguem demasiadamente com o poder e se esqueçam de cumprir correta e honestamente a missão que lhes foi confiada pelos eleitores. Os avanços democráticos, conseguidos na segunda metade do século passado por países, sobretudo da Europa Ocidental, estão relacionados com o trabalho de uma oposição séria e competente.

Também na história do Brasil a atuação da oposição foi significativa para que o nosso país avançasse na conquista da democracia. Com uma história marcada por várias intervenções de regimes autoritários e ditatoriais, apoiados pelos militares, o Brasil dependeu sempre da ação enérgica de partidos de esquerda que estavam na oposição e, às vezes, na ilegalidade, para a retomada do processo democrático. O pouco de ar democrático que respiramos no momento atual não foi presente de ninguém, mas fruto de muita luta do povo brasileiro e de partidos de esquerda que chegaram mesmo ao martírio de seus membros para defender a liberdade e a justiça.

Porém, recentemente, sentimos a falta em nosso país de uma autêntica oposição. O que se tem visto e assistido é um festival de barulho, de escândalo por causa de "escândalos”, de discursos lacunares, sem efetivamente nenhuma proposta séria para o país. E isso se deve à falta de credibilidade dos partidos que estão na oposição.

O PSDB, por exemplo, já nasceu de forma duvidosa. De fato, como relata muito bem Frei Betto no seu livro A mosca azul (Rocco, 2006), o PSDB surge da traição de um pacto firmado entre vários militantes que, ao voltarem do exílio, se unem a outros que aqui estavam para formar um grande partido de esquerda e, assim, enfrentarem o regime militar que ainda governava o país. Portanto, este partido já nasceu traindo.

A partir da década de 1990, quando assume a Presidência da República, o PSDB, no dizer de Sá Motta (Introdução à história dos Partidos Políticos brasileiros, Belo Horizonte: UFMG, 2008) foi se voltando cada vez mais para a direita, incorporando posturas neoliberais. Hoje, ao pregarem a moralidade e a ética na política, os integrantes do PSDB se esquecem das inúmeras denúncias de corrupção que infestaram os oitos anos do governo Fernando Henrique Cardoso, algumas delas até hoje não suficientemente esclarecidas. Para se comprovar a verdade do que estou falando, basta dar uma olhada nas matérias de capa das grandes revistas de circulação nacional daquele período. Por causa disso e de outras coisas o PSDB é atualmente um partido sem credibilidade para fazer oposição séria.

Outro partido de oposição, os Democratas (DEM), em si, já é uma afronta a democracia e a liberdade. A sua história real tira-lhe toda credibilidade. De fato, o DEM é filho do PFL, neto do PDS, bisneto da ARENA e tataraneto da UDN. A constante troca de nome revela a intenção desse partido de esconder a sua verdadeira identidade. Sá Motta, no texto antes mencionado, defende a tese de que, ao mudar de nome, esse partido tenta "cortar os vínculos” com o seu passado ou, pelo menos, "reciclar-se”, dando a impressão de que se trata de um partido verdadeiramente democrático.

Os demais partidos, inclusive alguns que já foram de esquerda, muitos deles verdadeiramente "nanicos”, são como bandeiras açoitadas pelo vento: andam conforme a conveniência e o oportunismo. Suas identidades são bastante fragilizadas e suas propostas praticamente insignificantes.

Quanto aos partidos que atualmente se consideram de esquerda, pode-se dizer que também eles estão em crise. Mantêm um discurso excelente, mas que só teria sentido se estivéssemos no período da guerra fria ou da ditadura militar. Recusam-se a aceitar as mudanças e os avanços reais, obtidos nos últimos anos a partir das lutas do povo e da audácia de muitos homens e mulheres. Estes partidos precisam acordar e refazer seus programas, caso queiram contribuir significativamente para a democracia. Eles têm um papel significativo para o futuro da nossa democracia, mas caíram no sectarismo. Tal atitude, como já notava Paulo Freire em 1968, é castradora e se nutre de fanatismo: "Não são raros os revolucionários que se tornam reacionários pela sectarização em que se deixam cair, ao responder à sectarização direitista” (Pedagogia do Oprimido, 2010, p. 26). Por isso, se continuarem como estão, correm o risco de morrer por inanição e de perder uma oportunidade única na história do país.

Na atual situação os partidos que se declaram de oposição não trazem uma contribuição efetiva para a democracia do país. De fato, a verdadeira oposição não se faz "farejando” escândalos ou declarando a fragilidade do atual governo brasileiro, liderando por uma mulher. É claro que a corrupção deve ser combatida sem trégua, mas isso não é tudo para uma oposição séria. Oposição de verdade se faz apontando e aprovando soluções viáveis para o país e contribuindo para o bem-estar concreto da nação.


Mas isso a maioria dos partidos de oposição brasileiros não quer fazer, porque eles não fazem política, mas
fisiologismo. Querem a todo custo chegar ao executivo não para servir ao povo, mas para beneficiar-se das vantagens do poder. Se, de fato, quisessem servir ao povo, certos partidos de oposição teriam transformado o Brasil nos anos em que estiveram no poder. Basta lembrar, por exemplo, que o DEM, desde o tempo em que era Arena, ficou quase 40 anos participando diretamente do poder executivo. E o que herdamos dele? Um país devastado e prostrado. Basta analisar os dados anteriores ao ano de 2003.

Como diz Sá Motta, "democracia política não rima com miséria e desigualdades gigantes de renda”. Por isso os partidos de oposição, se quiserem fazer política com seriedade, deverão admitir que estão em séria decomposição. A partir disso, deverão rever suas metodologias, abandonar a crítica estéril e o sectarismo, admitir e assumir os erros do passado, e tomar outro rumo. O povo brasileiro, por várias razões positivas, está progredindo na consciência crítica e não aceita mais a simples e pura conversa fiada. E se os partidos de oposição continuarem no sectarismo, em posições fechadas e irracionais, evitando o diálogo franco e honesto com o povo, não só deixarão de contribuir com o avanço do Brasil, mas poderão em breve chegar à morte definitiva. (José Lisboa Moreira de Oliveira - Adital)

A última grande entrevista do ex-presidente Itamar Franco foi concedida ao jornalista Mauro Santayana

A última grande entrevista do ex-presidente Itamar Franco foi concedida ao jornalista Mauro Santayana, há cerca de um ano. Santayna republicou hoje no seu blog a íntegra da reportagem que saiu no dia 6 de junho de 2010 nas páginas do JB, cuj0 título é “Itamar Franco — O poder de um homem ético”. Publicou também hoje “Itamar Franco: Um honrado patriota”. Os dois textos estão abaixo.

Itamar Franco – O poder de um homem ético
Quando assumiu a Presidência da República, durante o afastamento compulsório do titular, Fernando Collor – que seria definitivo meses depois, com o impeachment – Itamar Franco surpreendeu as elites, representadas pelos principais veículos de comunicação do país. Seu ministério foi tachado de “governo de compadres”, e “República do Pão de Queijo”. A resposta de Itamar foi uma pergunta, quase inocente: “As pessoas simples não podem governar?”. Meses depois, o senador Antonio Carlos Magalhães pediu-lhe uma audiência. Queria fazer “graves revelações” contra Jutahy Magalhães Júnior, seu ex-aliado e então desafeto na Bahia, que ocupava o cargo de ministro de Bem-estar Social. Ao ser introduzido no gabinete, na hora marcada, Antonio Carlos encontrou todos os jornalistas credenciados no Planalto, com seus fotógrafos e as câmeras de televisão. Diante do espanto e constrangimento do Senador,Itamar explicou: “Como o senhor me disse que faria uma denúncia, achei conveniente que a fizesse à nação inteira. O senhor pode apresentá-la diretamente aos jornalistas”.

Antonio Carlos engoliu em seco. Seu “dossiê” era constituído de recortes de jornais, que nada provavam contra Jutahy. Ao minimizar a importância do episódio, que alguns atribuíram à sua astúcia de mineiro, Itamar confessou, modesto: “Eu, astuto? Eu sou até meio bobo”.

A República do Pão de Queijo pode ter sido, para o desdém de seus críticos, a república do pão, pão; queijo, queijo; orientada pelo pensamento óbvio, pelo senso comum. Mas é provável que Itamar tenha sido realmente ingênuo, ao deslumbrar-se pela retórica professoral do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e fazer dele seu sucessor. Itamar relembra o episódio:
“O nome de Fernando Henrique surgiu por exclusão. Diante da pressão dos fatos, que me levaram a aceitar a demissão do ministro Eliseu Resende, desloquei Fernando Henrique do ministério de Relações Exteriores e o nomeei para a Fazenda. A partir de então, seu protagonismo foi natural. Mas, naquele momento, eu pensava, e pensava firmemente, em dar a José Aparecido de Oliveira visibilidade que o credenciasse à sucessão. Aparecido – tal como hoje ocorre ao presidente Lula – se revelara excepcional diplomata, à frente de nossa embaixada em Lisboa. Coube-lhe articular, com grande sacrifício pessoal, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Teve que vencer a resistência de certos setores lusitanos, que não queriam dividir, com o Brasil, a influência sobre as suas antigas colônias. Com o apoio de Mário Soares, Aparecido partiu para a segunda etapa: a de convencer os novos países que podiam confiar na CPLP, porque a presença brasileira neutralizava a suspeita, natural, de que a instituição viesse a ser instrumento de novo colonialismo. Foi assim que, sem linhas aéreas regulares, que lhe possibilitassem as viagens sucessivas e rápidas pelo continente africano, Aparecido teve que se deslocar de um país para outro em aviões monomotores. O Brasil deve também ao Aparecido a oportunidade de hoje estar presente na Ásia: ele nos revelou a existência de Timor-Leste e incluiu essa realidade em nossa política externa. Eu não tive dúvida em convidá-lo para ocupar a Secretaria de Estado. Os elitistas do Itamaraty se levantaram contra a indicação, mas eu não recuaria. Quem recuou foi o próprio Aparecido, e com razões ponderáveis: estava enfermo, sujeito a uma cirurgia arriscada e, com sua sensibilidade, entendeu que não teria condições para ocupar o cargo. Foi então que – e mais uma vez eu lhe louvo a perspicácia diplomática – ele me sugeriu o nome do embaixador Celso Amorim. Acatei, com prazer, a sugestão. Em primeiro lugar porque, não podendo contar com Aparecido, era mais razoável que me valesse de um quadro do Itamaraty, para servir-me no curto mandato que me restava. Além da recomendação de Aparecido, tive outras referências que confortaram a minha escolha. Quanto à sucessão, o nome de Aparecido se tornou inviável pela enfermidade. Optei então pelo jornalista Antonio Brito, que se destacara como ministro da Previdência e estava à frente das pesquisas. Brito declinou: era muito jovem, e preferia governar o Rio Grande do Sul. Fernando Henrique era a terceira opção”.

Lula e a política externa

Já que falamos em diplomacia – e Itamar foi embaixador em Portugal, na OEA e na Itália – conversamos algum tempo sobre a política externa de Lula. Itamar sorri: ele se sente parceiro de seus êxitos, uma vez que lhe coube levar Amorim para a chancelaria.

Ex-presidente disse que Lula o afagou politicamente ao indicar Amorim para chefiar o Itamaraty:
“Senti-me homenageado quando, na presença do embaixador Amorim, em uma recepção na Embaixada do Brasil no Vaticano, o presidente Lula me disse que o havia convocado para a chefia do Itamaraty por ele ter sido meu chanceler. É claro que Lula me fazia um afago político, e que a razão da escolha não fora só a nomeação de Amorim pelo meu governo, mas, de qualquer forma, eu dera ao diplomata de Santos a chance de revelar-se como um dos mais importantes negociadores internacionais de nosso tempo. Só tenho a lamentar que Amorim tenha ido a Juiz de Fora participar de um comício em favor da candidatura de Nilmário Miranda, do PT, com Lula, e ao lado de Newton Cardoso, contra a reeleição de Aécio. Um ministro de Relações Exteriores não deveria intervir em disputa regional, e muito menos na cidade natal de quem nele confiara a execução da política externa brasileira. Magalhães Pinto, que era político, nunca fez isso. Esse episódio, que me entristeceu profundamente, não diminui a admiração pelo grande diplomata que ele é”.

Comento com Itamar curiosa circunstância histórica. Celso Amorim é de Santos, e em Santos nasceram dois dos mais importantes diplomatas brasileiros, decisivos em momentos cruciais da nacionalidade. O primeiro foi Alexandre de Gusmão, que deu ao Brasil os seus limites continentais, com oTratado de Madri, de 1750, em que se reconheceu o princípio do utis possidetis que legitima a posse de fato. O segundo foi José Bonifáciode Andrada, o primeiro-ministro de Relações Exteriores do Brasil. Continuando na política externa, Itamar faz pequeno reparo a Celso Amorim:

“O ministro disse que, para não ter direito a um voto independente, é melhor não fazer parte do Conselho de Segurança da ONU. No meu entendimento, trata-se de falsa questão. A nação que faz parte do Conselho tem a liberdade de votar como quiser, de acordo com seus princípios e interesses e em favor da paz mundial. O que deve ser contestado é o ainda poder de veto exclusivo aos cinco países que são membros permanentes do órgão. O Brasil sempre teve direito, pelas suas dimensões geográficas e pela sua formação histórica, a participar do Conselho de Segurança. Em 1926, com forte presença na Liga das Nações, teve a sua candidatura, como membro efetivo do Conselho das Nações, preterida em favor da Alemanha – da mesma Alemanha que fora derrotada em 1918. Como era nosso presidente o grande estadista mineiro Artur Bernardes, e seu representante na Liga outro invulgar homem de Estado, também mineiro, o embaixador Afrânio de Mello Franco, o Brasil preferiu a honra e abandonou a Liga, que se revelara instrumento dócil do eurocentrismo. Um país que defendera, com Rui, em Haia, a plena igualdade entre as nações, não poderia compactuar com a ditadura dos grandes”.

Nacionalismo

A referência ao episódio de há 84 anos e a Artur Bernardes nos leva ao sentimento nacionalista dos mineiros. Itamar não é apologista radical da mineiridade, ainda que sempre se valha de uma frase forte, a de que ninguém nivelará as montanhas de Minas. Ele pondera que o nacionalismo está presente em todos os estados brasileiros, em maior ou menor expressão, mas reconhece que as circunstâncias históricas acentuaram essa consciência de defesa da soberania em Minas.

Falamos durante algum tempo sobre essas circunstâncias. A primeira delas foi a descoberta do ouro, e a promessa de riqueza e potência que o metal sugere. Em um primeiro momento, o ouro atrai a ambição de enriquecimento pessoal. Depois, esse sentimento passa a ser coletivo: para proteger o direito de cada um, é preciso proteger o de todos. Foi assim que os mineiros criaram o Estado dos Emboabas, contra a pretensão dos paulistas de expulsarem os recém-chegados da Bahia, das capitanias do Nordeste e da Europa. Ao expelir os paulistas das minas centrais, os emboabas fundaram o pensamento nacionalista dos mineiros, que se afirmaria contra o Conde de Assumar, em 1720, no martírio de Filipe dos Santos, e na Conjuração de 1789, chefiada por Tiradentes.

Sentimento

“A minha tese é de que coube aos mineiros despertar esse sentimento nos demais brasileiros, o de que o nacionalismo é a união entre a ideia da dignidade e da defesa da riqueza que coube, pela natureza, à geografia de cada nação. É certo que a dignidade dos povos é mais importante do que seus bens: uma nação pode ser honrada, ainda que pobre. Mas a cobiça internacional se dirige aos recursos naturais. O nacionalismo deve ser instrumento de defesa e resistência, jamais estímulo à conquista, como ocorreu com a Alemanha de Hitler”.

A conversa nos leva à experiência diplomática de Itamar, e ele acredita que ela foi mais importante na representação do Brasil junto à Organização dos Estados Americanos. O fato de se tratar de órgão multilateral possibilitou-lhe contato com personalidades de todo o continente e lhe confirmou a divergência de fundo entre a América Latina e os Estados Unidos. Na OEA, Itamar atuou com a independência de sua autoridade política. Foi assim que fez veemente discurso contra a existência do centro de treinamento de militares latino-americanos. que existira antes no Panamá, e fora transferida para os Estados Unidos, a conhecida Escola das Americas. Itamar citou o secretário de Defesa dos Estados Unidos de então, William Perry, que considerou “totalmente inaceitáveis” os manuais de instrução da Escola. O órgão continua funcionando em Fort Benning, nos Estados Unidos, mas sob pressão crescente para seu fechamento. Hoje, a escola quase se limita a treinar militares colombianos.

O pronunciamento foi criticado por alguns embaixadores, pelo fato de que o Itamaraty não fora consultado previamente, e porque envolvia as relações bilaterais entre Brasília e Washington. Itamar não se defende, ataca: um ex-presidente da República – e isso já ocorrera a Campos Salles, quando enviado à Argentina – dispõe de mandato ético e político para defender os interesses brasileiros, conforme sua consciência e convicção.


Plano Real

Há uma coisa que aborrece particularmente o ex-presidente: a memória seletiva de alguns homens públicos sobre a sua administração. Ele se refere a pontos importantes, começando pelo Plano Real. O plano nada tinha de original, baseado que foi no Plano Schacht, da Alemanha dos anos 20, e já um pouco adaptado – sem êxito – pelos argentinos, com o Plano Austral. Itamar lembra que só o aprovou depois de conferir os seus números, trabalhando várias horas nisso. Como engenheiro, e bom conhecedor de matemática, corrigiu alguns de seus itens, antes de aprová-lo e correr todos os riscos políticos da decisão. Da mesma forma, Itamar lembra que os medicamentos genéricos foram adotados pelo seu ministro da Saúde, o médico Jamil Haddad, com sua aprovação, apesar da resistência dos laboratórios. Embora fosse reivindicação de médicos brasileiros, o SUS começou a ser implantado pelo médico Carlos Mosconi, presidente do Inamps em seu governo. Hoje – e Itamar usa o advérbio “despudoradamente” – tais êxitos são atribuídos ao governo de seu sucessor.

De fora, sempre entendi que o Estado existe para impor aos poderosos o respeito aos cidadãos, qualquer que seja a sua posição na sociedade. Mais do que isso, sempre acreditei que o poder político deve buscar a igualdade de todos, diante da lei e das oportunidades da vida. Assim agi quando, por duas vezes, fui prefeito de minha cidade. E só fui atraído para a política porque, como engenheiro do DNOS, tomei conhecimento da vida difícil das populações periféricas. Até hoje creio que o saneamento básico é uma das principais tarefas do poder público. Na mesma época, juntamente com meu colega Nicolau Kleijorge, dei aulas de matemática e conhecimentos gerais aos trabalhadores de Juiz de Fora. No Senado, para onde fui eleito pela primeira vez em 1974, naquela memorável manifestação de inconformismo de nosso povo, quando o MDB não era o PMDB de hoje, mantive a mesma postura, a de que o mercado deve estar sob o controle do Estado, servidor da sociedade, e não o contrário. Resisti ao projeto neoliberal que se iniciara no governo Collor, e não concordei com a privatização de setores estratégicos, como os da energia e das telecomunicações. Da mesma forma cortei, pela raiz, o projeto da equipe econômica, de privatizar o Banco do Brasil e a Caixa Econômica”.

Outros fatos foram lembrados na conversa, como a redução da dívida pública e a aprovação excepcional de seu governo, de acordo com pesquisas de opinião, alem de seu plano de combate à fome, dirigido por dom Mauro Morelli.

Aécio Neves

O ex-presidente lembra a luta que teve, ao assumir o governo de Minas, em 1999, a fim de organizar as finanças do estado. Ao decretar a moratória – uma vez que os presos e os enfermos de alguns hospitais públicos estavam ameaçados de morrer de inanição, por falta de comida – o mundo desabou sobre ele. Logo depois, coube-lhe resistir, manu militari, à anunciada privatização de Furnas, situada em território mineiro. Isso sem falar na Cemig.

“Não quero lembrar os nomes dos responsáveis, mas estávamos reféns, na administração da Cemig, de investidores estrangeiros, que haviam obtido, por alguns 30 dinheiros, o controle operacional da empresa. A minha resistência e a atuação do governador Aécio Neves nos libertaram desse conluio dissimulado em acordo de acionistas. Nestes últimos 10 anos – dois dos quais sob meu governo – a Cemig valorizou-se em 400%. Ela se tornou, nesse período, a empresa energética de maior sustentabilidade no mundo, de acordo com a Bolsa de Nova York. Entramos na atualidade política. Itamar diz que sua prioridade é a sucessão em Minas. Não cita o nome, porque não é necessário citá-lo em Minas, mas se declara disposto a lutar para que o governo não seja entregue a alguém não confiável”.

Pergunto-lhe sobre os rumores de que poderia vir a ocupar a chapa da oposição como candidato à Vice-Presidência:

“O governador Aécio Neves, com sua generosa amizade, citou meu nome como apto a compor a chapa da oposição. Pertenço, hoje, ao PPS. Sei que se tratou de homenagem a um amigo. Mesmo assim, rejeitaram essa hipótese, como se fosse postulação minha. Não sou candidato àquele cargo. Não insinuei essa possibilidade, mas a recusa ao meu nome robustece a decisão de agir, no pleito, conforme a minha consciência, sem qualquer constrangimento político”
.
Não é Itamar que deve influir na sucessão. São as razões de Minas que terão de ser respeitadas. E as razões de Minas são as razões do Brasil. Em qualquer lugar do Brasil há “mineiros”, isto é, honrados patriotas, que colocam, acima dos interesses regionais, a soberania do país e o bem-estar de nosso povo.

Itamar Franco: Um honrado patriota
O homem que morreu neste sábado não pertencia às elites políticas ou empresariais de Minas. Engenheiro, filho de descendentes de imigrantes (o pai, de alemães, e a mãe, de italianos) Itamar teve uma infância de classe média modesta. Não chegou a conhecer o pai, que morreu pouco antes que nascesse. Formado, com as dificuldades da situação familiar, em engenharia, aos 24 anos, trabalhou no saneamento básico na periferia de Juiz de Fora, antes de integrar os quadros do DNOCS. Esse contato com o povo o levou à vida pública.

Itamar não foi um político definido pelos estereótipos. Destacaram-se em sua personalidade e ação política os dois sentimentos que orientam os grandes homens públicos de Minas: o do nacionalismo – que vem da Inconfidência – e o da justiça social. Não há como negar a Itamar o alinhamento ideológico à esquerda. Um de seus ídolos desde a adolescência foi o gaúcho Alberto Pasqualini, dos mais importantes pensadores políticos brasileiros e conselheiro de Getúlio.

Como é de conhecimento público, prestei assessoria informal ao Presidente, e, mais tarde, ao governador. Pude acompanhar, de perto, seu empenho na defesa dos interesses nacionais e da moralidade no governo. Acompanhei, de perto, as suas preocupações, quando decidiu adotar, a conselho de membros da equipe econômica, o expediente antiinflacionário da Alemanha dos anos 20 – o Plano Schacht. Era a segunda vez que se tentava, no continente, a mesma estratégia contra a hiperinflação, bem conhecida como matéria de estudos financeiros. A primeira fora a do Plano Austral, da Argentina. Também o Plano Cruzado, de Sarney, contemplava algumas de suas medidas.
Conhecedor de matemática, Itamar reviu o plano, ponto a ponto, fez correções que lhe pareceram apropriadas e, só depois disso, assinou a medida provisória que o implantou.

Poucos dias antes de sua internação, estive em seu gabinete, em companhia do Embaixador Jerônimo Moscardo, que foi seu Ministro da Cultura. Ao nos cumprimentar, visivelmente gripado, Itamar reclamou do ambiente frio do Senado. “Esse ar acondicionado é de matar”. E disse que estava com uma gripe que não cedia.

Convidou-nos para uma

visita ao gabinete do presidente José Sarney, ao lado do seu. Conversamos os quatro, alguns minutos, sobre a situação do país e do mundo. Relembramos a personalidade de Tancredo Neves e episódios menos conhecidos do processo de transição democrática que, pelas circunstâncias do tempo, Sarney e este jornalista haviam vivido mais de perto.

Itamar estava preocupado com a situação do país, e a necessidade de que se formassem líderes capazes de enfrentar as dificuldades internacionais do futuro próximo. Naquele mesmo dia, ele solicitara da Mesa do Senado a transcrição de um artigo meu, publicado neste jornal, de reparos ao seu sucessor.
O grande êxito de Itamar pode ser explicado pela renúncia pessoal às glórias e pompas do poder. Não foi açodado em assumir o governo, depois do impeachment de Collor. Coube a Simon instá-lo a isso, sob o argumento da razão de Estado: o poder não admite o vazio. Logo que assumiu a Presidência, reuniu todos os dirigentes partidários e líderes no Congresso, sem excluir ninguém, nem mesmo o folclórico Enéas Cardoso. Disse-lhes que estava disposto a convocar eleições imediatas para a Presidência e Vice-Presidência, se estivessem de acordo. Silenciou-se, à espera da resposta – e ninguém concordou. Por duas ou três vezes, ele me disse que, apesar daquela recusa unânime, talvez tivesse sido melhor consultar o povo, naquela difícil circunstância.

Quando se pôs o problema de sua sucessão, tendo em vista a sua altíssima popularidade – de mais de 80% – alguns líderes políticos lhe propuseram a apresentação de emenda constitucional permitindo a sua reeleição. Itamar recusou, com veemência, a proposta. O democrata não poderia admitir o golpe que seu sucessor desfecharia.

Mais do que sanear a moeda, Itamar ficará na História por haver recuperado a credibilidade da Presidência da República junto ao povo brasileiro. Poucos, muito poucos, dos que exerceram o alto cargo ao longo da História, ficarão na memória da Nação com a mesma e sólida presença de Itamar Franco, modesto homem do povo, intransigente patriota, severo guardião do bem público.

Fonte: Kid Jansen - pradiscutirobrasil.blogspot.com  

Lixos Atômicos

Jaime Sautchuk - Vermelho

Vacinado pelo acidente do Césio 137, há 23 anos, Goiás não quer saber do lixo atômico das usinas de Angra dos Reis. Mas, sem querer, levantou com força um debate que é mundial, sobre o que fazer com os materiais radioativos dispensados por usinas energéticas e pelos arsenais dos países que detêm bombas atômicas, em especial Estados Unidos e Rússia.

Abadia de Goiás, localidade a uns 50km de Goiânia, é depositária dos restos do Césio 137. Há, ali, um depósito para este fim, que mereceu, entre outras reações, aquela famosa escultura das cruzes, de Siron Franco. Ademais, por conta disto, virar hospedeira da escória do mundo, é muito outra história.

O caso do Césio de Goiânia é classificado como acidente nível 5, numa escala mundial que vai de 1 a 7. E foi, digamos, um acidente fútil, quase doméstico. O produto radioativo estava em um aparelho de radiologia de um hospital abandonado. Catadores de ferro-velho abriram o tubo e a desgraça estava feita.

Imaginemos, então, outros acidentes de maior porte. O de Three Mile Island, em 1979, nos Estados Unidos, o de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986 e o de Fukushima, outro dia, no Japão. Todos eles em usinas de geração de energia elétrica, mas classificados no nível máximo de gravidade.

Esses todos foram acidentes ocorridos. Mas o depósito Abadia de Goiás foi apontado pela Comissão Nacional de Energia Nuclear, a CNEM, vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, como o provável cofre para guardar os restos do urânio relegado pelas usinas de Angra I e II, que não serve mais para gerar energia, mas continua radioativo.

Ou seja, todo material radioativo tem o que a gente pode chamar de prazo de validade. Isto serve tanto para o usado docilmente nas usinas térmicas, como para as ogivas que aguardam genocídios dentro de algum dos 23 mil mísseis que se supõe estejam armados ao redor do mundo.

Esse é um problema da maior gravidade, pois os países que produzem esse lixo ou não sabem onde armazená-lo ou sabem demais. Há sérias suspeitas no meio científico, por exemplo, de que bases militares dos Estados Unidos e de outros países, espalhadas pelo Planeta, acobertem depósitos de lixo atômico.

Onde estarão as ogivas engatilhadas pelos EUA e pela antiga União Soviética nas várias décadas da Guerra Fria? Boa parte daquele arsenal perdeu validade para sua finalidade, mas conterá radioatividade por mais 200 anos. Armazenar isso tudo não é coisa simples.

Para se ter uma idéia, o material que teria sido contaminado pelo Césio em Goiás pesa cerca de 6 mil toneladas. Tem de tudo o que se imaginar, de utensílios domésticos, roupas, brinquedos, bicicletas e até carros.

Essa tralha está guardada em Abadia de Goiás, em 1200 cofres (caixões) de madeira e metal, 2900 tambores de metal e 14 contêiners de metal, do tamanho de vagões de trem. Tudo fechado por grossas paredes de concreto armado, a 30 metros de profundidade.

Se no caso de um aparelho hospitalar o estrago foi desse tamanho, não é preciso relembrar a desgraceira de Chernobyl. Nesses casos, porém, estamos falando em situações em que o material radioativo já vazou. É preciso capturá-lo, não apenas guardá-lo.

No caso do lixo de usinas, com Angra, e de armas, contudo, supõe-se que o material esteja adequadamente acondicionado, já enterrado ou aguardando lugar para ser depositado. Qualquer descuido, porém, poderá provocar vazamento, e pronto.

Evitar ser depositário desse lixo, pois, é o melhor que se faz. É unanimidade em Goiás. Políticos de todos os partidos, empresários, trabalhadores, estudantes, cientistas, todos, enfim, enjeitam a oferta da CNEM.

É como se dissessem: goiano n’é besta não, !

PSDB se nega a ver as causas de seu fracasso

Por Alon Feuerwerker, no Correio Braziliense

A casa seguinte nesse tabuleiro é o PSDB vir lançando a fatura das três últimas derrotas presidenciais na conta da suposta falta de empenho em defesa das realizações de FHC no Palácio do Planalto. A construção ideológica tucana para explicar seus problemas é frágil mas aconchegante. Ela exime, por exemplo, de fazer um balanço crítico do período FHC.

Mais fácil considerar — e propalar — que o povo não está bem informado sobre aqueles tempos. Foram anos de estabilização monetária e democracia. Mas também de baixo crescimento e pouco emprego. A privatização da telefonia produziu um país em que todo mundo tem telefone. Mas usá-lo ficou caríssimo. Foram lançados programas sociais. Mas a timidez deles evidenciou-se quando veio o PT e lhes deu prioridade.

São os fatos. O PSDB reage aos fatos com ideologia. Parecido com o PT pré-2002. Para os tucanos, tratar-se-ia apenas de corrigir a hipotética lacuna comunicacional, de partir para a desconstrução da desconstrução. Daí o panegírico em que se transformou a passagem dos 80 anos de FHC. Esse foi o terceiro movimento.

E qual é o quarto? Vem do governo, por perceber a espetacular relação custo benefício embutida em qualquer palavra simpática dirigida por um petista a FHC. Especialmente quando o elogio é de petistas graduados.

O PT e o governo ganham duplamente. Mantêm o PSDB imobilizado no culto ao passado impopular e constrangem a oposição formal. Não pega bem você chutar a canela de quem, no fundo no fundo, diz lhe querer tanto bem. E o PT não perde nada.

Quando vier a próxima eleição, poderá dizer que as privatizações de FHC foram muito ruins, mas com todo o respeito. E que os programas sociais do PSDB foram muito tímidos, apesar das boas intenções. E que o PSDB de FHC, apesar de ter ajudado a atacar a inflação, fez isso sacrificando o crescimento.

Enquanto o PSDB fica embasbacado com os salamaleques, o seu problema eleitoral continua exatamente no mesmo lugar, e do mesmo tamanho.

A dominância financeira

Se existe um problema grave na economia brasileira, ela se chama taxa de juros. Existem duas taxas de juros distintas no Brasil. A Selic, que é a taxa básica de juros definida pelo governo, e a taxa de juros cobrada pelos bancos aos seus clientes (empresas e pessoas).

A diferença entre elas é denominada de spread bancário, considerado o Brasil, em vários estudos internacionais, como tendo o spread mais elevado do mundo há muitos anos. É a principal fonte do lucro dos bancos, sem a interferência do governo, que têm os instrumentos legais para regular esses exageros, o que evidencia a gravidade do problema e sua subserviência ao mercado financeiro.

A Selic é a mais alta do mundo, também há vários anos. Assim, essas duas taxas apresentam a maior aberração e trava macroeconômica, que tem impedido que o Brasil avance na economia de forma saudável, pois as taxas de juros elevam em excesso as despesas do governo, das empresas e dos consumidores e, o que é mais grave, com o apoio da maioria dos economistas, que têm espaço na mídia, defendendo que as taxas de juros têm que ser elevadas para controlar a inflação.

Não é de se estranhar isso, pois a mídia depende de verbas publicitárias, que vêm do mercado financeiro e os bancos são importantes financiadores de políticos nas campanhas eleitorais, obtendo força nas decisões políticas de seus interesses. Eles têm equipes de economistas em seus quadros e de consultorias para defenderem posições que lhes interessam. O resultado é que são raras as oportunidades de expressão de posições divergentes em relação ao que poderia chamar de pensamento único na economia.

O fato é que o Brasil convive com essas taxas de juros, quando países de economia semelhante à nossa têm taxas muito inferiores e com inflação igual ou menor que a nossa.

A principal explicação para essas anomalias é a submissão do governo ao mercado financeiro. A presidente Dilma começou bem, dando a diretriz de redução da Selic até 2014, para 2%, excluída a inflação. É uma meta tímida e demorada, que não vai ajudar a resolver logo essa questão. A meta de 2% é elevada em relação aos níveis dos países emergentes que estão negativas em 0,5% atualmente. Sobre o spread o governo não se pronunciou determinando limites, tendo poder para isso.

O Brasil tem taxa básica de juros real de 6,8%, mais de quatro vezes (!) o segundo colocado em pior posição, que é o Chile com 1,5%. A média dos 40 países da amostra deu negativa de 0,9%.

A Selic é definida pelos diretores do Banco Central, em reuniões a cada seis semanas, no Comitê de Política Monetária (Copom). O Banco Central (BC) consulta semanalmente as instituições do mercado financeiro, divulgando-as no boletim Focus, para saber que estimativas fazem essas instituições sobre a inflação para o ano em curso, os próximos doze meses e para o ano seguinte.

Essas instituições informam a decisão que esperam seja tomada pelo Copom em relação à Selic nas próximas reuniões até o final do ano seguinte.

O Focus é apresentado pela mídia como sendo as previsões do mercado para a inflação, Selic, crescimento econômico, taxa de câmbio e produção industrial. Tem a finalidade de orientar as expectativas dos agentes econômicos. Mas orientar expectativas é de suma importância e, para isso, pressupõe a escolha de uma amostra representativa do mercado. No caso o mercado financeiro representa apenas 7% (!) do mercado, e tem interesse na elevação da Selic.

O problema é que a mídia divulga essas expectativas como sendo do mercado, e com isso acaba orientando os agentes econômicos (empresas e pessoas) em suas decisões sobre inflação, crescimento, etc.

Várias vezes o BC foi questionado por usar uma amostra não representativa das previsões do mercado, mas não mudou, o que é estranho e danoso. Faz o contrário do que é feito internacionalmente pelos bancos centrais e governos que se preocupam com a credibilidade e orientação adequada das expectativas dos agentes econômicos.

Fato mais grave é que o Copom acaba definindo a Selic, que é indicada pelo mercado financeiro em praticamente 100% das vezes, ou seja, só serve para referendar uma Selic elevada. Quanto mais elevada, melhor, pois sai daí parcela importante dos lucros obtidos com prejuízos equivalentes do único devedor da Selic, o governo federal. Esse prejuízo em última instância sai do bolso do contribuinte através dos tributos que paga.

Esse prejuízo atingiu nos últimos doze meses até maio, R$ 220 bilhões ou 5,7% do PIB, quando no mundo esse custo é de 1,8% do PIB. A perda de 3,9% do PIB (5,7 menos 1,8) é injustificável, pois é possível controlar a inflação nos demais países com taxas básicas de juros bem inferiores às aqui aplicadas.

Esse prejuízo será ainda maior até o final deste e do próximo ano, caso o Copom continue seguindo as previsões da Selic do mercado financeiro em suas reuniões. A dívida do setor público irá continuar subindo pelos juros crescentes e pelas injustificadas transferências por parte do Tesouro de novos R$ 55 bilhões ao BNDES. Esse valor foi obtido com a emissão de novos títulos que pagam juros Selic.

Assim, não sobram recursos para o governo expandir suas atividades nas áreas estratégicas da saúde, educação, assistência social, previdência, segurança pública, habitação, investimentos em equipamentos para a expansão dessas atividades e para a infraestrutura do País.

A gravidade dessa situação é que ela vem de longa data, e já foi pior, pois após o Plano Real, as despesas com juros atingiram a média de 8,6% do PIB no governo FHC (1995 a 2002) e de 6,2% no governo Lula (2003 a 2010). A média dos 16 anos (1995 a 2010) foi de 7,8% (!) Em valores atualizados pelo IPCA os juros atingiram nesses 16 anos R$ 3,7 trilhões (!) Caso não tivesse trilhado esse caminho suicida, o País seria outro, com situação fiscal equilibrada, e recursos suficientes para reduzir o elevado déficit social e de infraestrutura existente.

A consequência dessa política monetária, com a benção do governo, é que ele fica obrigado a obter resultados primários (receitas menos despesas, exclusive juros) elevados para pagar apenas parte dos juros, resultando em déficits fiscais, que obrigam a emitir mais títulos de dívida. É uma bola de neve crescente para as finanças públicas, que continuará a rolar ladeira abaixo caso não caia rapidamente a Selic.

Agravantes da Selic com a crise de 2008
Com a crise de 2008, os países desenvolvidos emitiram vários trilhões de dólares, euros e ienes para socorrer seus bancos que estavam em situação falimentar e a maior parte dessas emissões com taxas de juros próximas a zero foram em busca de aplicações em outros países que ofertavam taxas de juros mais elevadas, e o Brasil é o preferido dessa dinheirama que vem para cá, lucrando e repatriando esses lucros, que saem do Tesouro Nacional, ou seja, dos contribuintes brasileiros que pagam tributos ao governo federal.

Assim, o BC dá de presente aos capitais internacionais quantias elevadas de recursos, que irão faltar para serem usados no País.

Existem outros danos causados pelo BC, pois é ele que detém as reservas internacionais em dólares do País, que já ultrapassaram a US$ 333 bilhões em maio e continuam subindo com velocidade. Essas reservas custam aos cofres públicos juros equivalentes à Selic e são aplicadas, especialmente, em títulos do Tesouro americano que não rendem praticamente nada e são penalizadas pela queda do dólar face ao real durante todo o período de existência das reservas.

Em 2010 o BC causou um rombo de R$ 50 bilhões com essa política suicida e, neste ano como as reservas cresceram muito mais do que em 2010, e a Selic média será mais elevada do que em 2010, estima-se que o rombo causado pelo carregamento dessas reservas poderá ultrapassar R$ 70 bilhões (!). Se continuar elevando essas reservas, sem reduzir a Selic no próximo ano, como prevê o mercado financeiro, esse rombo em 2012 poderá chegar a R$ 90 bilhões (!)

Mas os danos causados por essa Selic não param por aí. Como dissemos, a dinheirama espalhada pelo mundo pelos países desenvolvidos são atraídos para o Brasil devido à Selic elevada, sem correr riscos e podendo repatriar os lucros rapidamente (alta liquidez). O ganho desses capitais é ainda maior do que só com os juros. Em junho de 2010, cada dólar valia R$ 1,81 e agora R$ 1,55 (dia 4/7). Ganham, pois duplamente: nos juros e na valorização do real.

Com a valorização do real, que não para, as importações ficaram mais baratas e substituíram produtos fabricados no País, gerando desempregos aqui e criando empregos lá fora. Os consumidores saem ganhando nessa situação por terem mais escolhas nos produtos, que apresentam qualidade similar ao produzido aqui e com preços inferiores.

As exportações foram, também, prejudicadas, pois ficaram mais caros os produtos fabricados aqui no confronto com os produtos similares de outros países. Mas é importante considerar se o desemprego gerado não irá causar redução do consumo. Já criou rombos nas contas externas desde 2008.

Diante dessas realidades não resta ao governo alternativa se não enfrentar a dominância financeira, que vem travando o desenvolvimento econômico e social do País. Não se trata de problema técnico ou econômico, mas de decisão política e, para isso, é necessário afrontar os interesses impostos pelo mercado financeiro. O governo até agora não demonstrou disposição nesse sentido. (Amir Khair -CM)