Uma reivindicação dos movimentos sociais é acabar com o Banco Mundial, FMI e OMC, e que se volte o sistema para as Nações Unidas e a Unctad e instituições onde a Assembleia da ONU tenha um papel mais democrático. O FMI foi autorizado agora a analisar a situação dos Estados Unidos, mas é ridículo, eles não vão se deixar analisar pelo, como não vão deixar pelas organizações dos direitos humanos quando as violações são óbvias neste país.
Um dos papeis fundamentais vai ser jogado pelos países que, desde o primeiro Fórum, dizemos que só se eles se unissem teríamos uma mudança no sistema. Os grandes países periféricos, de desenvolvimento intermediário, e com uma população grande, que são o Brasil, Índia, África do Sul e talvez a China; se estes países se unissem, este sistema hipócrita que impõe o liberalismo a todos menos na Europa e nos EUA acabaria. Para esses países, é uma janela de oportunidade para impor outras regras. Os próprios chineses estão muito divididos, porque investiram demasiado nos EUA, ao contrário do Brasil e da África do Sul, e estão muito mais dependentes do futuro da economia norte-americana. A última coisa que podem querer é o aprofundamento da crise.
Lula deixa muito claro não pode tolerar o alinhamento total com os EUA, pelo contrário, fez um alinhamento em termos econômicos, de promoção neoliberal, mas politicamente escolheu uma certa solidariedade com os países irmãos na América Latina. Esse regionalismo a emergir na região é muito evidente também na África, com a proposta de uma unidade monetária como na Europa, e também na Ásia há sinais de um certo regionalismo que atenda mais às necessidades dos países. Se assim for, poderíamos ter relações menos imperialistas e mais difusas em função de o mundo ser mais partilhado por estes grandes regionalismos que podem enfrentar Europa e EUA.
Eu, ao contrário dos que pensam que a solução tem de vir da Europa e dos EUA, penso que eles precisam ser pressionados pelo resto do mundo, porque é fora dos EUA e da Europa que hoje estão as energias transformadoras do sistema. O Brasil, por exemplo, está numa posição diferente, embora se houver uma recessão na China vai se refletir no Brasil. Agora, a arrogância unilateral dos EUA, a arrogância unilateral das organizações multilaterais, que são multilaterais apenas no nome, essa terminou. Portanto, vamos ver como as coisas vão se posicionar e que janelas de oportunidades existem para algumas questões no movimento social. Por exemplo, para a Via Campesina, é muito importante eliminar o capital especulativo nesta área de soberania alimentar. No momento, há aqui alguma oportunidade quando as estruturas hegemônicas estão um pouco fragilizadas. Mas não sabemos até que ponto.
Fórum – O presidente Lula, na discussão em Washington sobre a solução para a crise internacional, fala em concluir a rodada de Doha, e isso soa um pouco estranho ao movimento social depois de tanta luta para desgastar a OMC, que hoje realmente não tem mais o papel que pretendia. O que o senhor pensa disso?
Boaventura – O Brasil é a ambiguidade dos países semiperiféricos, tem uma capacidade de manobra que lhe dá uma certa arrogância neste momento. Nota-se na área da biotecnologia, porque o Brasil tem uma grande diversidade, mas tem também uma indústria biotecnológica que quer produzir e portanto as suas posições na área do patenteamento da biodiversidade são muito ambíguas.
A diplomacia brasileira é que tem sido muito boa em muitos níveis. O desgaste dos Estados Unidos e do sistema que até agora era imposto na Organização Mundial de Comércio (OMC), e contra o qual o Brasil lutava ao questionar o protecionismo na Europa e nos EUA, criou novas possibilidades para o que este grupo vinha colocando dentro da OMC. O que temos de ver é se o que é bom para o Brasil é também para os países do Quarto Mundo, os periféricos, que não estão nesta fatia intermediária do rendimento mundial. Estou falando da África e de muitos países da América Latina, da Ásia e de muitos outros que são dependentes em relação a estes países, como a Tailândia é em relação à China. Eu ainda temo que este regime seja tão viciado que as potências intermediárias, como no caso brasileiro, quando têm alguma capacidade de manobra, comportem-se como virtuais potências hegemônicas.
Aqui, o distanciamento de um Chávez é muito salutar. Ou nós temos uma lógica não-capitalista, uma lógica outra, ou não vamos a lado nenhum. E o Brasil não tem tido de modo nenhum esta posição, pelo contrário: faz desalinhamento político mas alinhamento econômico, o que funcionou até agora porque coincidiu com o grande boom da China, que resolveu muitos problemas brasileiros, se não contarmos com os indígenas e camponeses que estão sofrendo com o alargamento da fronteira agrícola e a destruição da Amazônia, que ocorre no Pará e no Mato Grosso do Sul. Mas isso obviamente permitiu ao Brasil o que até agora não tinha tido, que é uma certa autonomia em relação ao FMI e portanto houve um segundo Grito do Ipiranga: Nós podemos ditar nossa política.
Mas a burguesia nacional, altamente transnacionalizada desde a ditadura, não mudou com a democratização, está totalmente vinculada a este sistema, e quando tem qualquer margem de manobra para ter os seus lucros, não vai querer mais mexer no sistema e nem nesta ideia de que não se pode ter tratado de comércio sem direitos sociais e econômicos e sem uma outra política ambiental. Porque há uma crise econômica, energética e climática. Não podemos usar a lógica economicista do neoliberalismo, temos de usar uma lógica mais ampla, e o Brasil está relativamente atrasado porque entrou naquela onda do agrocombustível, que se chama no Brasil biocombustível, mas que é um nome errado porque não é energia renovável e é extremamente destruidor da soberania elementar. Energia renovável são os ventos, o sol e as ondas. O Brasil não tem mostrado muito interesse nisso mas sim nos combustíveis fósseis e no agrodiesel. Como vai se comportar neste momento que vai trazer as questões climáticas para o centro das discussões, mesmo nos EUA.
Foi um erro do Lula desvincular-se de algumas outras políticas ambientais que estavam em curso para uma aliança com os EUA, não se dando conta de que seria de curta duração porque não é uma energia renovável. No domínio energético e climático não vejo o Brasil muito bem equipado para uma resposta inovadora porque não foi por aí que a diplomacia se orientou. Mas vamos ver porque não acredito muito naquilo que os governos podem fazer, mas no que os movimentos podem pressionar.
Penso que o FSM pode assumir uma liderança maior, com espaço aberto. Se os movimentos sociais estivessem preparados com propostas muito concretas do que pode ser feito, neste momento de suspensão do sistema mundial devido à crise e ao novo governo dos EUA, penso que algumas alianças poderiam ser feitas com organizações e mesmo com partidos dentro do establishment que percebem que suas soluções não funcionaram.
Fórum – Então vou citar uma fala de Chomsky que não vê nessa crise o ocaso da economia dos EUA e que também não vê sinal de alternativas construídas pelo movimento para um momento destes, em um artigo bem recente. Em sendo verdade, isto significa que o processo do FSM falhou ao afirmar a possibilidade de outro mundo?
Muita gente pensou que era só a revolução e o socialismo que estavam em crise, mas que o reformismo socialdemocrata, pelo contrário, teria sua vingança e o seu momento de apogeu. Longe disso. Quando morreu a revolução, morreu também o reformismo socialdemocrata. O capitalismo livre de qualquer ligações e regulações keynesianas dos Estados tentou libertar-se dos direitos laborais e da regulamentação e foram estes anos que nós tivemos.
No fundo, a busca do Fórum Social Mundial por uma sociedade alternativa começou de uma crise que agora atinge este sistema. Começou no final da década de 80 e foi um período de rejeição e um grande inconformismo com a situação de desigualdade social dos últimos anos. E também uma maturidade que ajuda a florescer um sentimento muito vago de que não temos alternativas. Por isso que a gente diz que um outro mundo é possível, é um “outro mundo” porque não sabemos qual é esse mundo.
Para muitos movimentos, falar do socialismo é um erro. Se vamos para a África ou pra Ásia vão nos dizer que o socialismo é uma armadilha eurocêntrica como qualquer outra. Não sou tão negativo como Chomsky e é curioso que um intelectual por quem temos um grande respeito possua essa ambiguidade que vem do movimento anarquista. Por um lado, fazem uma luta por todos os movimentos de base e uma desconfiança total dos Estados terroristas, mas todos os Estados o são, a começar pelos Estados Unidos. São grandes críticos deste sistema mas ao mesmo tempo são maximalistas.
Se quisermos uma revolução ou uma alternativa verdadeiramente pós-capitalista, não imagino que isso seja possível sem termos um Estado que seja efetivamente democrático e popular. Nunca uma ditadura de um partido único. Mas enquanto não tivermos um governo mundial, democrático, que seria o sonho do movimento social internacionalizado mas que está como uma possibilidade utópica, nós, os movimentos sociais em nível regional e internacional, poderíamos ter interlocutores fortes com quem se possa promover políticas fortes. E não conheço nenhuma instância que garanta direitos senão os Estados. Vamos entrar no domínio das religiões e da filantropia? Francamente, não é uma solução socialista.
Eu acho que o movimento de esquerda deixou-se desarmar extraordinariamente nos últimos anos, exatamente porque aquela alternativa não era possível, o marxismo deixou de estar na moda, deixou de estar na agenda, de estar nas universidades, no movimento social. Curiosamente está voltando porque a situação financeira veio a provar que Marx tinha muita razão na análise que fazia da sociedade capitalista. O marxismo regressa, mas só pode regressar parcialmente, como uma análise lúcida das crises do capitalismo e, portanto, de que é preciso uma sociedade pós-capitalista. Mas uma sociedade assim não pode ser aquela nos termos em que previu.
Boaventura – Estamos provavelmente em um processo de transformação que é quase simétrico a este outro que nós estamos analisando. Desde o final de 1989, quando tivemos a queda do Muro de Berlim, aquelas alternativas socialistas, pelo menos que haviam sido desenhadas ao longo do século XX, entraram em crise.