quarta-feira, 13 de julho de 2011

Entrevista com Noam Chomsky

 
Para sua segunda entrevista em menos de um ano com o professor Noam Chomsky (a primeira ocorreu em Cambridge, em setembro de 2010), Frank Barat pediu a renomados artistas e jornalistas que cada um lhe enviasse a pergunta que gostaria que fosse formulada a Noam.

Frank Barat: A prática política surpreende frequentemente pelo seu vocabulário político. Por exemplo, diz-se que a recente revolução no Oriente Médio se produz para exigir democracia. Podemos encontrar palavras mais adequadas? Não é, por acaso, a utilização das velhas e tão frequentemente traiçoeiras palavras uma maneira de absorver o impacto, no lugar de reuni-lo e seguir transmitindo? (Coordenador do Tribunal Russel sobre Palestina)

Noam Chomsky: Para começar, acredito que a palavra revolução é um pouco exagerada. Talvez possa converter-se em uma revolução, mas, no momento, é um apelo a uma reforma moderada. Há vários elementos, como o movimento de trabalhadores, que tentou seguir mais além, mas ainda está por se ver até onde chega. A questão é correta, mas também não é fácil de sair dela. Não ocorre somente com o termo democracia, mas também com cada palavra que tenha que ver com a discussão de assuntos políticos. Há dois significados. Um significado literal e um significado que se estabelece com respeito ao bem-estar político, à ideologia, à doutrina. Portanto, ou deixamos de falar ou tentamos utilizar as palavras de forma consciente. Como digo, isto não ocorre somente com a palavra democracia.

Tome uma palavra simples, como "pessoa”. Parece simples. Dê uma olhada. É muito interessante ver o que ocorre com essa palavra nos EUA. Os EUA garantem direitos pessoais que talvez cheguem mais longe que em qualquer outro país. Mas aprofunde-se neles. As emendas da constituição afirmam muito explicitamente que não se poderá privar nenhuma pessoa de seus direitos sem o devido processo legal. Isso volta a aparecer na 14° emenda, mas foi a 5° emenda que tratou de aplicar aos escravos libertos, sem êxito. Os tribunais vêm reduzindo e ampliando seu significado de forma crucial. Ampliaram o significado para incluir as corporações: entidades legais fictícias estabelecidas por um poder estatal. Portanto, concederam-lhes os direitos das pessoas, inclusive direitos que iam mais além dos das pessoas. Por outro lado, também reduziram seu alcance porque o lógico era pensar que o termo "pessoa” seria aplicado, igualmente, a essas criaturas que caminham em nossa volta fazendo os trabalhos sujos da sociedade e que não dispõem de documentação. Mas não foi assim, porque era necessário privar-lhes de seus direitos.

Portanto, os tribunais, em sua infinita sabedoria, decidiram que não são pessoas. As únicas pessoas são aqueles que têm cidadania. Assim, as entidades corporativas não humanas, como o Barclays Bank, são pessoas, com direitos de grande alcance. Mas os seres humanos, a gente que varre as ruas, não são pessoas, não têm direitos e o mesmo ocorre com cada termo que seja examinado.

Tomemos agora a expressão "acordos de livre comércio”. Por exemplo: há um Acordo de Livre Comércio Norte-Americano: Canadá, Estados Unidos e México. O único termo exato que há aí é "norte-americano”. Não é realmente um "acordo”, se considera que os seres humanos formam parte de suas sociedades, porque a população dos três países estava contra o mesmo. Portanto, não é um acordo. Tampouco se trata de "livre comércio”, é protecionista em grau extremo, estabelece tremendas proteções aos direitos de monopólio nos preços das corporações farmacêuticas, etc. Uma grande parte de tudo isso não é um comércio em absoluto. Na realidade, o que chamamos "comércio” é uma espécie de piada.

Por exemplo, na antiga União Soviética, se certas peças eram fabricadas em Leningrado e eram enviadas à Varsóvia para que fossem montadas e depois fossem vendidas em Moscou, eu não chamaria a isto de comércio, ainda que cruzasse fronteiras nacionais. Eram interações dentro de uma economia de comando único. E ocorre exatamente o mesmo se a General Motors fabrica algumas peças na Índia, as envia ao México para que sejam empacotadas e as vende em Los Angeles. Isto seria comércio em ambos os sentidos. Na realidade, se busca a parte comercial, somente representa 50%. O que é bastante pouco. E grande parte do acordo tem a ver somente com direitos de investimento: garantir a General Motors, por exemplo, os direitos das companhias nacionais no México, coisa que os mexicanos não conseguem nos EUA. Tomem o termo que quiserem.
Irão se deparar sempre com exatamente o mesmo. Portanto, sim, isso é um problema e temos que afrontá-lo tentando esclarecer de que modo utilizamos uma terminologia equivocada.

Chris Hedges: Julien Benda, em The Treason of Intellectuals defende que somente quando os intelectuais não perseguem objetivos práticos ou vantagens materiais é que podem servir como consciência e sanção. Você poderia abordar o tema da perda de filósofos, líderes religiosos, escritores, jornalistas, artistas e acadêmicos que em algum momento viveram suas vidas em oposição direta ao realismo das multidões e o que isto implicou para nossa vida moral e intelectual? (Jornalista estadunidense especializado na cobertura de conflitos)

Posso compreender os seus sentimentos e compartilhá-los, mas não sei que perda foi essa. Alguma vez isso foi certo? Que eu lembre não houve nenhuma época; o termo intelectual chegou a ser de uso comum em seu sentido moderno geral na época dos partidários de Dreyfus. Era uma pequena minoria. Uma minoria pequena e impopular. A massa de intelectuais apoiava o poder estatal. Durante a primeira guerra mundial e pouco depois, em cada um dos países, os intelectuais apoiavam apaixonadamente ao seu próprio estado e sua própria violência. Houve um punhado de exceções, como Bertrand Russel na Inglaterra ou Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht na Alemanha ou Eugene Debs nos Estados Unidos, mas todos eles foram para a prisão. Eram marginalizados e jogados na prisão. No círculo de John Dewey, os intelectuais liberais dos EUA que eram fervorosos partidários da guerra, houve um de seus membros, Randolph Warren, que se manteve aparte. Não lhe colocaram na prisão, EUA é um país bastante livre, mas lhe tiraram das revistas, ficou intelectualmente exilado, etc. Assim é como sempre ocorreu.

Dê uma olhada cuidadosa nos anos sessenta, um período de grande ativismo: os intelectuais apoiavam muito a Martin Luther King e o movimento pelos direitos civis sempre e quando se limitasse a atacar alguém. Enquanto o movimento pelos direitos civis perseguia xerifes racistas no Alabama, era extraordinário. Todo mundo o exaltava. Quando se ocupou de questões de classe, ele foi marginalizado e suprimido. As pessoas costumam esquecer que Martin Luther King foi assassinado quando tomava parte em uma greve dos trabalhadores do setor sanitário e que ia a caminho de Washington para ajudar a organizar o movimento popular dos pobres. Bem, isso supunha cruzar um limite, isso fazia sentir que ia por nós. Ia contra os privilégios e o norte, etc. Por isso os intelectuais desapareceram.

Com relação à guerra do Vietnã, ocorre exatamente o mesmo. Quase não houve nada entre os intelectuais conhecidos –houve desde cedo pessoas à margem da sociedade, jovens e demais-, mas entre os intelectuais com prestígio, praticamente nada. Já no final, após a ofensiva de Tet em 1968, quando a comunidade empresarial se voltou contra a guerra, então tu poderias ver aparecer pessoas dizendo "Sim, sempre estive contra a guerra”... Mas não há nem o menor indício disso, nada em absoluto.

Na realidade, há que recorrer à história mais antiga. Vamos à Grécia Clássica, quem bebeu a cicuta? Ao indivíduo se lhe acusou de corromper os jovens de Atenas com falsos deuses. Tomem os registros bíblicos. Não aparece o termo "intelectual”; mas há um termo que significa o que eles entendiam por intelectual, o de "profeta”. É uma má tradução de uma obscura palavra hebréia. Havia os chamados profetas, intelectuais, que formulavam a crítica política, condenavam o rei por provocar desastres, condenavam os crimes do rei, pediam misericórdia para os viúvos e os órfãos, etc. Bem, estas pessoas nós poderíamos chamar de intelectuais. Como os tratavam? Eram denunciados como pessoas que odiavam Israel. Essa é a frase exata que se utilizava. Essa é a origem da frase "auto-ódio judio” no período moderno. E os aprisionavam, deixavam-lhes no deserto, etc. Mas bem, haviam intelectuais que eram elogiados: os aduladores da corte. Séculos depois, chamaram-se de "falsos profetas”. Mas não neste preciso momento. Desde então, ocorre quase sempre a mesma história.

Há umas quantas exceções. No período atual, a principal exceção que conheço é a Turquia. É o único país onde eu sei que importantes artistas, acadêmicos, jornalistas e editores – uma gama muito ampla de intelectuais – não somente condenam os crimes do Estado, mas também se envolvem em constantes desobediências civis contra ele. Enfrentando e suportando frequentemente castigos muito duros. Dá-me vontade de rir quando chego à Europa e escuto as pessoas queixarem-se de que os turcos não são o suficientemente civilizados para se incorporar à sua avançada sociedade. Poderiam aprender várias lições com a Turquia. E isso é bastante incomum. Na realidade, é tão incomum que apenas se conhece, não é possível nem sugeri-lo. Mas, à parte da palavra "perdida”, creio que os comentários de Chris Hedges são exatos, mas eu não consigo perceber nenhuma perda.

Acredito que quase sempre aconteceu o mesmo. Desde cedo, o que varia é a forma com que se trata esses intelectuais. Digamos que pode ser que nos EUA sejam difamados ou algo assim, na antiga União Soviética, na Checoslováquia nos anos sessenta e nos setenta, podiam ser presos, como prenderam Havel. Se nessa época te encontravas nos domínios americanos, como El Salvador, o batalhão de elite treinado na escola especial de guerra dos EUA podia arrebentar-te a cabeça. Portanto, sim, dependendo do país, tratam-se as pessoas de forma diferente.

Amira Hass: Os levantes dos países árabes fizeram-lhe mudar ou revisar as suas antigas análises? Afetaram, e como, as suas ideias sobre, por exemplo, massas, esperança, Facebook, pobreza, intervenção ocidental, surpresa? (Jornalista israelense que vive na faixa de Gaza)

Amira e eu nos reunimos na Turquia há um par de meses, tivemos um par de horas para falar e nenhum de nós previu nada, talvez ela sim, mas se o previu não disse nada, certamente eu não previ nada, não estava sucedendo nada no mundo árabe, portanto, sim, mudei de opinião a esse respeito porque foi algo inesperado. Por outra parte, quando olhas para trás, não há diferença com o que ocorria antes, exceto que no passado os levantes eram violentamente reprimidos, e isso foi o que ocorreu em novembro, no início dos levantes, no Saara Ocidental que Marrocos invadiu há 25 anos, violando as resoluções das Nações Unidas e ocupando brutalmente.

Em novembro se produziu esse primeiro protesto não violento que as tropas marroquinas controlaram violentamente, que é algo que há 25 anos seguem fazendo; foi bastante grave como para que se apresentasse uma petição de investigação nas Nações Unidas, mas então a França foi e interveio. A França é o principal protetor de atrocidades e crimes na África Ocidental, são as velhas propriedades francesas, por isso bloquearam a investigação das Nações Unidas do que foi o primeiro protesto. O seguinte foi na Tunísia, de novo mais ou menos uma zona francesa, mas teve êxito, derrubaram o ditador. E depois veio o Egito, que é o mais importante devido a sua relevância no mundo árabe, que foi imensamente notável, uma imensa demonstração de valor, dedicação e compromisso. Tiveram êxito ao se desfazerem do ditador, ainda que o regime não tenha, todavia, mudado. Talvez mude, mas ainda segue aí, diferentes nomes, mas nada novo; esse levante, do 25 de janeiro, foi dirigido pelos jovens que se autodenominaram como o Movimento do 6 de abril.

Bem, o seis de abril se chama assim por uma razão, eles elegeram esse nome porque foi a data de uma ação importante de luta um par de anos antes, no complexo industrial têxtil de Mahalla, e que se acreditava que seria uma greve importante, levaram-se a cabo atividades de apoio e outras. Bem, foram reprimidos violentamente, isso foi em 6 de abril e essa foi uma da série de greves. Certo é que pouco depois da repressão do levante de 6 de abril, o presidente Obama foi ao Egito dar seu famoso discurso sobre a aproximação ao mundo muçulmano e os demais. Solicitou-se a ele em uma conferência de imprensa que dissesse algo sobre o governo autoritário do presidente Mubarak e disse que não, que Mubarak era um bom homem, que estava fazendo coisas boas mantendo a estabilidade e derrotando a greve de 6 de abril e que isso estava bem.

O mais chamativo é Barein. O que aí sucede está alarmando o Ocidente, em primeiro lugar porque Barein alberga a quinta frota americana, uma força militar importante na região. Segundo, porque é de maioria xiita e se chega até ali justamente através de uma estrada construída desde o leste de Arábia Saudita, que tem também uma população de maioria xiita, e sucede que é onde se encontra a maior parte do petróleo. Durante anos, os planejadores ocidentais se preocuparam pelos incidentes históricos e geográficos dali, porque a maior parte do petróleo mundial se encontra nas zonas xiitas, justamente ao redor desta parte do Golfo, Irã, sul do Iraque, leste da Arábia Saudita. Bem, se o levante de Bahrein se estende à Arábia Saudita, as potências ocidentais vão se ver realmente em dificuldades e de fato Obama modificou a retórica que utilizava oficialmente para falar dos levantes. Durante um tempo falou de mudança de regime, agora fala de alteração do regime. Não queremos que haja mudanças, é extraordinário poder contar com um ditador que nos faça o trabalho sujo.

Na atualidade, um fato bastante surpreendente sobre tudo isto é que..., dê uma olhada nos vazamentos de WikiLeaks, é muito interessante. Os mais conhecidos no Ocidente, as grandes manchetes, os vazamentos dos embaixadores que diziam que o mundo árabe nos apoia contra Irã... Mas havia algo que faltava nessas reações nos jornais, nos colunistas e outros, a saber: a opinião pública árabe, o que queriam dizer com isso de que os ditadores árabes nos apoiam? O que se passava com a opinião pública árabe? Não havia nada, não se informava nada. Nos EUA: zero, creio que há um informe na Inglaterra, de Jonathan Steele, e provavelmente nada na França, não sei. Mas sabe-se bem, e muitas agências prestigiosas publicaram que os árabes que pensam que Irã é uma ameaça representam 10%.

A maioria, a imensa maioria, pensa que a maior ameaça vem dos EUA e Israel. No Egito, 90% dizem que os EUA é a maior ameaça, na realidade a política dos EUA é tão dura que eu acredito que no Egito quase 80% pensam que o regime seria melhor se Irã tivesse armas nucleares. Por toda a região, a maioria pensa assim. Voltando a John Berger e ao termo democracia, a valorização dos intelectuais ocidentais da democracia é tão profunda e está tão profundamente arraigada que a ninguém ocorre perguntar o que pensam os árabes; quando nos sentimos eufóricos de que os árabes nos apóiem, a resposta é que não nos interessam, enquanto estejam quietos e submetidos e controlados, enquanto há isso que chamamos de estabilidade, não importa o que pensam. Os ditadores nos apóiam e ponto, sentimo-nos eufóricos perante este tipo de vínculos, junto a uma boa quantia de questões... Mas, voltando ao comentário de Amira Hass, o sucedido deveria nos levar a pensar no que esteve sucedendo não somente no mundo árabe, mas em mais lugares e que muito frequentemente está motivado por uma razão essencial: a de terem sido submetidos com violência e assim ocorreu ao longo de todo um século.

Quero dizer que os britânicos estiveram reprimindo o movimento democrático no Irã há mais de um século. No Iraque, houve um levante xiita e, tão logo como os britânicos improvisaram o país após a primeira guerra mundial, reprimiram violentamente os grandes levantes; um dos primeiros usos da aviação foi para atacar os civis. Lloyd George escreveu em seu diário que isso foi algo grandioso porque tínhamos que nos reservar o direito de bombardear os "negros”. Continuou em 1953 quando os EUA e a Grã Bretanha se uniram para derrotar no Irã o governo parlamentarista. De 1936 a 1939, houve um levante árabe na Palestina contra os britânicos que foi violentamente combatido.

A primeira Intifada foi de novo um levante popular muito importante. Não foi violento em absoluto, mas sim, um verdadeiro movimento popular, com grupos de mulheres protestando contra a estrutura feudal, tentando destruí-la. Foi combatida sem piedade. Tão logo sucediam coisas como essas, elas eram combatidas. O que é incomum nesta ocasião é que na maioria dos países são suficientemente fortes como para poder sustentar-se. Não sabemos o que sucederá no Barein e Arábia Saudita. Na realidade, não sabemos o que vai suceder no Egito. O exército, que conservou até agora ao menos o controle e o alto comando militar, está profundamente embutido no velho regime opressor. Haviam se apoderado de grande parte da economia, eram os beneficiários da ditadura de Mubarak, não vão ceder facilmente, por isso nos resta ver o que vai suceder ali.

Ken Loach: Como superar o sectarismo na esquerda? (Cineasta britânico)

Não acredito que consigamos algum dia. Há uma forma de sectarismo que é bem vinda, a saber: a discrepância. Há muitas coisas pouco claras, deveríamos discutir, buscar diferentes opções e, além disso, ver o que quer expressar Ken com sectarismo e o que significa em geral; são uma série de iniciativas que algumas vezes tentam, e frequentemente conseguem, dividir os movimentos populares. As pessoas individuais ou os grupos políticos que têm sua própria agenda e querem se construir com o controle se convertem em pequenos Lênin. Não acredito que algum dia esse tipo de sectarismo seja eliminado. Pode-se marginalizá-lo, como por exemplo, durante os levantes do mundo árabe, ou seja, Egito, a Praça de Tahrir, eles foram surpreendentemente muito pouco sectários e havia muitos pontos de vista diferentes, mas havia unidade e um objetivo comum. Lamentavelmente, isso está começando a alterar-se.

Justamente ontem houve uma manifestação de mulheres para exigir seus direitos. Foram reprimidas. É uma sociedade muito sexista e atacaram as mulheres. Ok, isso é sectarismo. Agora, há também um sectarismo religioso em desenvolvimento, quero dizer que quando um objetivo comum já não serve para unir as pessoas em luta, então te deparas com o sectarismo. Essa é a forma de unir as pessoas. Por exemplo, no movimento de trabalhadores nos EUA. A força trabalhadora foi extremamente racista e não necessariamente só contra os negros; por exemplo, no final do século XIX, tratavam-se igualmente os irlandeses e os negros. Quero dizer que podias passear por Boston e ver cartazes que diziam "Nem cachorros nem irlandeses”, etc.

Éramos chamados de hunos, isso significa alguém que vem da Europa Oriental, um amargo racismo contra os bárbaros, contra os italianos, estendia-se até onde alcançava a vista. Mas quando começam as ondas de greves nos fins do século XIX e vão adquirindo importância, houve lugares como os centros mineiros do carvão e do aço no oeste da Pensilvânia, nos quais as pessoas tomaram as cidades e as governaram. Neste ponto, o sectarismo desapareceu, o racismo desapareceu e se uniram para tratar de conseguir algo. O mesmo ocorreu com a organização CIO na década de 1930, superou o racismo contra os negros e trabalharam juntos. Essa é a única forma que eu conheço de conseguir as coisas. O mesmo aconteceu no movimento pelos direitos civis. Se tiveres um objetivo comum e podes coordenar-te para tentar alcançá-lo, então se deixam de lado os esforços sectários, não é que desapareçam, há pessoas que seguem manobrando na periferia e talvez se os motivos e os compromissos se suavizam, elas podem começar a tentar fazê-lo com o todo, como começamos a ver no Egito, mas não conheço outra forma de consegui-lo.

Paul Laverty: Provavelmente não houve nunca uma época na qual tenha ocorrido tanta concentração da riqueza e de poder em tantas poucas mãos. Os poderosos utilizam sistemas sofisticados para manter este estado de coisas, mas talvez nós, na esquerda, utilizamos isto também como desculpa para ocultar nossas deficiências. O que você pensa que falhou em nosso esforço imaginativo para construir uma campanha de massas internacional que democratize os recursos e desafie o poder corporativo? Você pode imaginar uma época na qual possamos organizar com êxito nossas vidas e economias sobre uma base de cooperação ao invés de uma base competitiva? (Advogado e cineasta escocês)

Claro que posso imaginar e, na realidade, houve diversos experimentos com êxito, alguns deles justamente agora. Nenhum deles utópico, nenhum deles do tipo que eu ou você ou outros aspirariam, mas não foram insignificantes. Tomemos, por exemplo, o sistema de Mondragón, na Espanha, gerenciado pelos trabalhadores. É uma forma de cooperativa que teve muito êxito, com um êxito muito amplo.
Se olha ao redor dos EUA, há provavelmente centenas de empresas autogerenciadas, não são imensas, ainda que algumas, sim, são bastante grandes, mas estão tendo êxito.

Tomemos justamente agora o Egito, uma das coisas mais interessantes que estão sucedendo no Egito é que o movimento dos trabalhadores, que se manteve militante durante anos (como mencionei antes, este levante não saiu do nada), em alguns dos centros industriais, como o caso de Mahalla, ao que tudo indica os trabalhadores tomaram a empresa e a estão dirigindo. Bem, se isso é verdade, esse poderia ser o começo de uma revolução, para voltar às palavras de Berger. Portanto, sim, é perfeitamente factível.

O comentário sobre a desigualdade é muito real. Não conheço as estatísticas detalhadas de outros países, mas nos EUA a desigualdade está justamente agora no nível mais alto de sua história desde a década de 1920. Mas isso é enganoso, porque a desigualdade nos EUA está muito concentrada, no alto temos exatamente 1% da população. Observe a distribuição dos ingressos, vai de forma muito aguda até o extremo superior e é, literalmente, a décima parte do 1% da população. Aí se dá uma riqueza extraordinária. De fato isso está impulsionando a desigualdade, se tomas essa parte, vês que é desigual, mas não pode se ocultar totalmente. Quem são? São os gestores de fundos de cobertura, os diretores executivos, os banqueiros, etc. Bem, algo muito grave esteve acontecendo.

Desde os anos setenta, a economia mudou de forma significativa, "financiarizou-se”. Voltando aos setenta, as instituições financeiras, os bancos, as empresas de investimento representavam uma pequena percentagem dos benefícios corporativos. Agora, em 2007, por exemplo, alcançaram 40%. Não beneficiam à economia, na realidade provavelmente a prejudicam, não têm utilidade social, mas são poderosas. Com poder econômico se controla o poder político. Por razões bastante óbvias. Por isso conseguiram um extenso poder político, por exemplo, as instituições financeiras que colocaram Obama no poder, é delas que procede a maior parte de seu financiamento.

Com poder político tens a oportunidade de modificar o sistema legislativo e isso é o que estiveram fazendo. Portanto, sobretudo desde os anos oitenta, modificaram-se as políticas fiscais, as políticas tributárias, para assegurar uma muito alta concentração da riqueza. Modificaram-se as normas da governança corporativa. Permitem, por exemplo, que o diretor executivo de uma corporação selecione a junta que vai determinar o seu salário. Bem, tu podes imaginar quais são as conseqüências de tudo isso. Na atualidade, lemos todos os dias nos portais dos jornais, lemos sobre os imensos bônus que são dados aos encarregados da gestão, daí é de onde sai.

Toda a regulação veio abaixo, com efeitos muito destacados. Isto se generaliza pelo resto do mundo. Estou falando dos EUA porque é o que melhor exemplo que conheço. Realmente, a regulação do New Deal impediu até os anos oitenta que surgisse uma crise financeira. Desde a década de 1980, crise após crise, várias durante os anos de Reagan, bastante graves, de fato Reagan deixou o poder com a pior crise financeira desde a depressão. O escândalo de Sayings & Loans, depois chegou Clinton, depois esta crise da moradia, malditos oitocentos bilhões de dinheiro desapareceram, a economia devastada. Bem, tudo isso é fruto de decisões políticas.

Enquanto isso, o custo das campanhas eleitorais segue incrementando-se e isso obriga as partes a irem profundamente aos bolsos dos setores corporativos onde está o dinheiro. Espera-se que as próximas eleições, em 2012, custem ao redor de 2 bilhões de dólares. Dê uma olhada na administração Obama e se dará conta que esteve incorporando executivos ao seu governo. São os que têm acesso ao financiamento das corporações que vão comprar as eleições. As eleições estão convertendo-se em uma mera farsa dirigida pela indústria das relações públicas. É um esforço de marketing, estão dizendo abertamente. Na realidade, Obama ganhou o prêmio da indústria da publicidade pela melhor campanha de marketing em 2008, sabe-se exatamente do que se trata o assunto. Bem, tudo isso é uma espécie de círculo vicioso. Aumenta a concentração da riqueza, incrementa o poder político, que atua para aumentar ainda mais a riqueza.

Por que não há reação? Agora, sim, está havendo reação, pela primeira vez, o que está sucedendo em Wisconsin é uma reação muito importante. Há dezenas de milhares de pessoas nas ruas, dia após dia, com muito apoio popular, talvez lhes apóiem as duas terceiras partes da população. Estão tentando defender os direitos dos trabalhadores, o direito à negociação coletiva, que está sob ataque. Refiro-me ao fato de que o mundo dos negócios compreende muito bem que a única barreira perante a sua total tirania corporativa é o movimento organizado de trabalhadores. Por isso há que destruí-lo. A história do movimento dos trabalhadores nos EUA foi extremamente violenta, mais que na Europa e ali se fizeram esforços e mais esforços para acabar com os sindicatos, mas seguem renascendo. Agora há um esforço importante contra, mas está se resistindo. Os grandes movimentos populares resistem.

Mas onde está a esquerda? É interessante o que está sucedendo agora com a esquerda. Depois da década de 1960, na qual houve um grande renascimento, não houve grande ativismo na esquerda. Há agora muito jovens mais ativistas que nos anos sessenta. Mas os problemas mudaram. Algumas vezes são denominados como pós-materialistas. São temas importantes, não os deprecio. Os direitos dos homossexuais, os direitos ambientalistas, os direitos das mulheres, são todos importantes, mas não chegam a preocupar as pessoas que estão sofrendo um desemprego em níveis de época de depressão. Não chegam aos 20% da população que necessita de bônus de ajuda alimentícia. Não houve este tipo de difusão e organização.

Por isso, quando começaram há umas duas semanas os protestos em Wisconsin, não houve praticamente nenhuma iniciativa da esquerda. Bom, um par de personalidades bem conhecidas chegou para dar uma palavra, mas nada mais, não estava organizado por grupos de esquerda que deveriam estar no mesmo coração de tudo. Mas estão por aí e é melhor que se apresentem ou vamos ter problemas.

Ainda que o ativismo de esquerda seja importante, muito importante, está bastante divorciado da luta diária pela sobrevivência e uma vida decente da maioria da população e essa é uma brecha que deve ser superada de algum modo.

Alice Walker: Creio que é inevitável a solução de um único Estado ao impasse Palestina/Israel, e que é mais justa do que poderia ser a solução dos dois estados. Isto se deve ao fato de que não acredito que Israel deixe alguma vez de tentar ter sob seu controle os palestinos, sejam já cidadãos de Israel ou vivam nos territórios ocupados. Com a solução dos dois Estados haveria um estado israelita e um bantustão palestino. (Escritora estadunidense e autora do livro A Cor Púrpura)

Surpreendeu-me muito seu rechaço à ideia de um Estado como algo quase absurdo e gostaria de entender por que pensa assim. Não há nenhuma esperança de que israelitas e palestinos possam viver juntos como os brancos e negros após a caída do apartheid, na África do Sul?

É uma pergunta interessante. Ela é uma mulher maravilhosa, faz um bom trabalho, está realmente comprometida com a causa palestina, mas a pergunta diz algo sobre o recente movimento de solidariedade palestino. Quero dizer, se eu tivesse lhe feito a pergunta, digamos, por que pensa que é absurdo tentar defender direitos civis para os negros nos EUA? Ela teria se sentido desconcertada, dedicou grande parte de sua vida nisso. De fato, a única resposta possível seria: De que planeta você saiu? Isso é o que estive fazendo toda a minha vida.

É exatamente o mesmo aqui. Já faz setenta anos que estamos defendendo o que na recente ressurreição recebe o nome de um acordo para Um Estado. O acordo para Um Estado, que não é solução. Esse Acordo de Um Estado chama-se, frequentemente, de um acordo binacional e se se pensa nele, sim, terá de ser um acordo binacional. Isso foi o que eu estive fazendo quando era um jovem ativista nos anos quarenta, em oposição a um Estado judeu. E assim continuarei sempre. E é duro perder isso. Desde os últimos anos da década de 1960 escrevi toda uma série de livros, um número imenso de artigos, palestras constantemente, milhares delas, entrevistas, sempre ao redor do mesmo.

Tentando trabalhar por um acordo binacional, em oposição a um Estado judeu.

Fiz toneladas de trabalhos sobre este tema, trabalho ativista, escrevendo, etc. Mas não é somente o slogan e acredito que é por isso que alguém como Alice Walker o desconhece. Não é somente um slogan, "vivamos juntos e felizes”. Trata-se de enfrentar seriamente o problema. Quando és sério sobre isso, pergunta-te "como podemos conseguir?” Bem, depende das circunstâncias, como todas as opções táticas.

No período anterior a 1948, era simples, não queremos um Estado judeu, tenhamos um Estado binacional. De 1948 a 1967, dizias a ti mesmo que não era sensato eleger essa posição. Em 1967 abriu-se de novo a possibilidade. Houve uma oportunidade em 1967 de avançar para algum tipo de sistema federal para depois chegar a uma integração mais estreita, talvez um autêntico Estado laico binacional.

Em 1975, cristalizou o nacionalismo palestino e se introduziu na agenda, e a OLP ponderou um acordo de dois estados, com o imensamente doloroso consenso internacional dessa época para um acordo de dois estados na forma que todo o mundo conhece. De 1967 a 1975 era impossível defendê-lo diretamente e era um anátema, algo odiado, denunciado porque era ameaçador. Era ameaçador porque podia cumprir-se e isso prejudicaria a formação política. Portanto, enquanto se davam conta, denunciava-se e difamava-se.

Desde 1975 podias ainda manter esta posição, mas tinhas de enfrentar a realidade, que teria que se alcançar por etapas. Há somente uma proposta que nunca escutei, a de que vivamos todos juntos em paz; a única proposta que conheço, começando com o consenso internacional, é a do acordo de dois Estados. Reduzirá o nível de violência, o ciclo de violência, abrirá possibilidades para uma interação mais estreita que já se produz em algum nível, inclusive nas circunstâncias atuais, comercial, cultural e outras formas de interação. Isso poderia levar a desgastar as fronteiras. Isso poderia levar a uma maior interação e talvez a algo como o velho conceito de Estado binacional.

Chamo agora de acordo porque não acredito que este seja o final do caminho. Não vejo razão particular alguma para render culto às fronteiras imperialistas. Assim que quando minha esposa e eu nos voltamos para quando éramos estudantes e íamos com a mochila pelo norte de Israel, e sucedia que cruzavas o Líbano, porque não há uma fronteira marcada, já se sabe, aparecia alguém nos gritando e nos dizendo para voltar. Por que deveria fazer uma fronteira ali?

Foi imposto mediante a violência francesa e britânica. Tínhamos que avançar até uma maior integração de toda a região, não se fazia um acordo de um Estado se é que falamos da palavra. De qualquer forma, há uma série de coisas equivocadas com respeito aos Estados, por que deveríamos prestar culto às estruturas estatais? Teríamos de miná-las. Mas bem, em uma série de passos. Se alguém pode pensar em outra via para chegar até aí, então deveria nos contar. Podemos lhe escutar e falar sobre isso. Mas não sei de outra via. Portanto, tudo o que estive escrevendo e falando é demasiado complexo para colocá-lo em uma mensagem de twitter. Nesta época, isso significa que não existe. Tens de apoiar tanto o acordo para dois Estados como o acordo para um Estado. Tens de apoiar ambas as coisas, porque uma delas é o caminho para conseguir a outra. Se não fazes o primeiro movimento, não vai a lugar algum. Agora Alice Walker diz que Israel não aceitará um acordo de dois Estados. Tem razão. Tampouco vai aceitar o acordo de um Estado. Portanto, se esse argumento tem alguma força, sua proposta está fora de lugar, a minha também.

Por esse mesmo argumento, poder-se-ia tratar de demonstrar que o apartheid nunca teria fim. Que os nacionalistas brancos nunca aceitariam por fim ao apartheid, o que é verdade, então, Ok, renunciamos a luta contra o apartheid. Indonésia nunca renunciaria a Timor Leste, os generais diziam alto: "é uma província nossa e vamos mantê-la”. Isso tinha sido verdade se as ações tivessem se produzido no vazio. Mas não havia tal vazio, havia outros fatores implicados. Um dos fatores, que é importante, e de fato nestes casos é decisivo, é a política norte-americana.

Bem, isso não está gravado em pedra. Quando a política dos EUA mudou sobre a Indonésia e Timor Leste, tomou-se literalmente uma frase do presidente Clinton para conseguir que os generais indonésios se fossem. Em um determinado momento ele disse: "Acabou-se”. E se retiraram.

No caso do apartheid, foi um pouco mais complicado. Cuba desempenhou um grande papel. Por exemplo, Cuba expulsou os sul-africanos de Namíbia e protegeu Angola. Isso teve um grande impacto. Mas foi quando mudou a política dos EUA, até 1990, quando esse movimento, o apartheid, veio abaixo. Agora, no caso de Israel, EUA é decisivo. Israel não pode fazer nada sem contar com o apoio dos EUA. Proporciona-lhe apoio democrático, militar, econômico e ideológico. Quando esse apoio se retira, fazem o que os EUA dizem. E assim sucedeu realmente uma e outra vez.

Portanto, se fosse verdade que se estivesse atuando em um vazio, nunca teriam aceitado algo que não fosse o que estão fazendo agora. Apoderando-se da prisão que é a Gaza, apoderando-se de todo o território que lhes dá vontade, já se sabe, e assim seguirão. Mas não estão atuando em um vazio. Há coisas que podemos fazer, como em outros casos, para mudar isso. E neste caos, penso que pode se considerar e, inclusive, traçar-se um plano para poder avançar em direção ao acordo de um Estado como um passo até algo inclusive melhor; há que seguir. Pelo que se pode ver, o único caminho para conseguir isso é apoiando o consenso internacional como primeiro passo. Um passo, um prelúdio para mais passos. Isso significa ações muito concretas. Não temos de organizar um seminário para discutir as possibilidades abstratas. Há passos muito concretos que podemos dar.

Por exemplo, retirar o exército israelense da Cisjordânia. Essa é uma proposta concreta e há toda uma série de medidas a adotar para levá-la a cabo. Por exemplo, a Anistia Internacional, que não é precisamente uma organização revolucionária, pediu um embargo de armas sobre Israel. Bem, se os EUA, Grã Bretanha, França e outros, se os povos podem pressionar os seus governos para que aceitem essa proposta e dizer que haverá um embargo de armas ao menos que retires o teu exército da Cisjordânia, isso teria efeito. Há outras ações que poderiam ser feitas. Se o exército sai da Cisjordânia, os colonos irão também com eles. Subirão nos caminhões que lhes facilitem e se transladarão desde suas casas subvencionadas na Cisjordânia para as suas casas subvencionadas em Israel.

Da mesma forma como fizeram em Gaza, quando lhes foi dada a ordem. É provável que alguns fiquem, mas isso não importa, se querem seguir em um Estado palestino, isso é assunto seu. Portanto, há coisas muito concretas que podem ser feitas. Sei que não é questão de estalar os dedos e já está, mas não é pedir muito mais que o tipo de coisas que sucederam em outras partes quando a política das grandes potências mudou, sobretudo a dos EUA.


Frank Barat
Redpepper.org. Coordenador do Tribunal Russel sobre Palestina
Adital

Tradução Gabriela Blanco.
Fonte:
http://www.redpepper.org.uk/]

Os bancos e a "revolução" na Europa

Por Mauro Santayana, em seu blog:

A Europa se insurge contra as famosas e prepotentes “agências de classificação de riscos”, todas americanas, com a decisão da Moody’s (uma das três grandes) de rebaixar as dívidas de Portugal em quatro pontos, reduzindo-as a uma situação de “lixo”. Essas agências, se pensarmos bem, não têm razão de existir. Elas jamais foram capazes de prever, com prazo prudencial, os riscos dos créditos das grandes instituições financeiras e dos governos nacionais.


Não previram as crises recentes do sistema financeiro internacional, nem foram capazes de descobrir as falcatruas das grandes instituições empresariais e financeiras, como as da Enron, dos bancos de investimentos, como o Lehman Brothers e de instituições de larápios, como a de Madoff. Elas só denunciam os erros, depois de consumadas as crises. De nada servem para alertar os investidores e as autoridades governamentais a tempo de que tomem providências acauteladoras. Mas os governos são também responsáveis, ao lhes dar crédito, e também por não fiscalizar o comportamento das instituições financeiras, nem examinar a lisura de sua contabilidade.

A questão retorna ao mais inquietante confronto da civilização ocidental - qual deve ser a diretriz da vida em comum: a economia ou a política? O dinheiro pode controlar e dirigir a ação política, ou a política tem que dirigir e controlar as finanças? O sistema financeiro, no interior dos Estados e no plano internacional, é a mais poderosa das instituições corporativistas. Ninguém é mais solidário com um banqueiro do que outro banqueiro, embora disputem entre eles, e sem escrúpulos, os grandes negócios.

Nos últimos trinta anos, o sistema financeiro internacional vem cavalgando os estados nacionais e, assim, governando, sem legitimidade, os povos do mundo. Retornaram, sem qualquer pudor, ao saqueio neocolonialista dos recursos naturais dos povos mais débeis, também mediante as guerras de conquista. Trata-se de nova forma de acumulação selvagem de capital e de destruição do “estado de bem estar social”, cujo embrião podemos encontrar ainda na Inglaterra vitoriana, com as preocupações do conservador Disraeli.

A política, sob a corrupção do dinheiro, e a violência repressiva, desfigura-se e se desnatura, mas costuma reagir, ao recuperar-se em processos revolucionários conhecidos na História. De qualquer forma, para que ocorram as revoluções, é necessário que intervenha a razão. Os sinais dessa reação saneadora podem ser vistos nos atuais movimentos de massa em vários países do mundo, muçulmanos ou cristãos, xintoístas ou animistas. O que lhes estava faltando é a teoria revolucionária, uma tarefa dos intelectuais. Há indícios de que já começam a surgir núcleos de discussão que podem suprir essa dificuldade. Com a orientação da inteligência, os movimentos serão capazes de vencer a repressão.

A crise na Europa coloca também em discussão o problema da autonomia dos estados e da soberania compartilhada dentro da Europa continental, da qual a moeda única é a marca maior. Há poucos dias, o Prêmio Nobel de Economia (1998) o indiano e professor em Harvard, Amartya Sen, publicou instigante artigo sobre o tema. Ele fala da ameaça à democracia que representa a insidiosa prevalência dos interesses financeiros sobre a ação política no continente, e dá como exemplo a excessiva importância atribuída às agências de classificação, que determinam a ação dos bancos centrais e dos governos, a serviço das grandes instituições financeiras internacionais.

Sen afirma que a liberdade dessas agências terá que ser enquadrada pelo poder da legitimidade política, isto é, pelos governos eleitos, mas, por enquanto, esse enquadramento não existe. As agências, remuneradas pelo “imperativo financeiro”, só a ele obedecem.

Ao discutir o problema do euro, que ele considera danoso à necessária soberania dos estados e à sua autonomia de ação econômica, lembrou a proposta da federação européia, surgida no movimento socialista italiano, em 1941, chefiado pelos jovens Altiero Spinelli, Eugenio Colorni e Ernesto Rossi.

É importante voltar a esses pioneiros da idéia de uma Europa Unida, os signatários do Manifesto Ventontene, da Itália, que se encontrava, então sob o domínio do fascismo. O documento, que circulou clandestinamente, fazia reflexão profunda sobre a situação européia de então, sob o avanço do poder dos nazistas. “O homem civilizado – diz o Manifesto – é um produto complicado e frágil. Os mais grandiosos frutos da civilização se devem à férrea disciplina que ela impõe ao ânimo selvagem dos homens. Mas quando os homens se encontram diante de problemas cuja solução é de importância vital e não são capazes de encontrá-la - em razão da resistência oposta e da ausência de instrumentos aptos para resolvê-los de forma pacífica - aquela disciplina pode romper-se e deixar emergirem as forças primitivas, que tendem a resolver a dificuldade com a violenta imposição de sua vontade”. A isso chamamos explosão revolucionária das massas.

Sen – como outros eminentes economistas de hoje – parte da idéia que os déficits públicos, quando financiam o desenvolvimento, tendem a ser absorvidos pelo aumento rápido da receita tributária. Vale a pena transcrever um trecho de seu artigo: “O laço que une o crescimento e as receitas públicas é amplamente observado em numerosos países, da China ao Brasil, passando pelos Estados Unidos e a Índia. E aí ainda há lições a tirar da História. Numerosos países acumularam ao fim da segunda guerra mundial pesadas e preocupantes dívidas públicas, mas um crescimento econômico sustentado permitiu aliviar rapidamente o fardo. Da mesma forma, os déficits colossais que Clinton encontrou, ao assumir o poder, há quase vinte anos, reduziram-se sob sua presidência, em grande parte pelo efeito da rapidez do crescimento”.

Em suma: não é o arrocho salarial, ou a “flexibilidade” das leis do trabalho, nem o desemprego, que promovem a queda dos déficits, mas, sim, o contrário. O que importa é o crescimento da economia, com melhor distribuição de renda e redução das desigualdades. Nisso, a lição brasileira é eloqüente.

O povo nas ruas fará bem à presidente

As duas crises recentemente vividas pelo governo da presidente Dilma revelaram alguns vícios crônicos da vida política brasileira e simultaneamente puseram a descoberto as debilidades políticas e ideológicas do time titular à frente do país. Tais dificuldades precisam ser superadas, sob pena de não se cumprir a missão que justificou sua eleição pela esmagadora maioria do povo brasileiro em outubro passado.

Quanto ao primeiro aspecto, ficou escancarado que a corrupção, o tráfico de influência, o enriquecimento meteórico de titulares de cargos públicos e de seus familiares ou laranjas permanecem como um mal crônico próprio de um Estado que só é democrático em seus aspectos formais. Falta-lhe a essência renovadora da participação popular e uma composição de forças nos órgãos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, que assegure poder aos trabalhadores e demais camadas populares.

A presidente já deu mostras suficientes de que não transige nem transigirá com o ilícito e o errado, mas o fato de partidos da sua base parlamentar e figuras de seu próprio partido estarem no olho do furacão dos escândalos mais recentes recobre o povo que a segue e apoia de dúvidas quanto à eficácia da sua ação à frente dos destinos do país.

Episódios nefastos como o protagonizado por Palocci e agora pela cúpula do PR, os quais revelaram nenhum republicanismo, paralisam o governo e o colocam sob uma saraivada de golpes baixos próprios de uma situação em que se instala uma luta intestina sem princípios por nacos de poder.

Em tal ambiente, o risco de a situação política se estiolar e o governo se perder em questiúnculas, desviando-se do rumo e afastando-se da luta por um novo projeto nacional de desenvolvimento, é grande.

Por óbvio, a causa destes problemas não se encontra em fatores de ordem moral, mas política, e radica em dois fatores principais. O primeiro deles é que a vida vai revelando que faltam convicções profundas e sólidas quanto à necessidade de efetivamente avançar na realização de mudanças. Isto fica patente nos descaminhos da reforma política, que vai tomando contornos de uma contrarreforma antidemocrática, e no espírito de rotina conservadora com que vai sendo tocada a política econômica, enquanto os problemas se avolumam, entre eles a desindustrialização do país. É um ambiente de acomodação geral, como se por um lado o aprofundamento e alargamento da democracia e, por outro, o desenvolvimento do Brasil, não fossem necessidades impostergáveis, sem cujo atendimento o país inevitavelmente retrocederá.

O segundo é a total ausência de uma articulação política e a inexistência de um núcleo de esquerda no interior do governo, para problematizar, pensar em novas alternativas, assessorar multilateralmente, contribuir para dar rumo e adensar a orientação política. Trata-se de um contrassenso, pois sem um núcleo com tais características atuando junto aos movimentos populares e ao eleitorado progressista a batalha de 2010 não teria sido vitoriosa. E uma vez constituído o governo, a falta desse núcleo corresponde ao exercício de um ilegítimo hegemonismo de uma facção de um só partido.

A esquerda, o movimento popular, as forças vivas da nação, os patriotas e democratas, que lutam pelo avanço do Brasil por meio da realização de transformações de fundo em sua vida política e social e no seu modelo de desenvolvimento, podem e devem ajudar o governo a resolver seus impasses e superar suas debilidades. A hora é propícia a mais diálogo, mais interlocução entre essas forças e o governo.

O momento requer ainda maior mobilização popular. Foram pedagógicas as mais recentes manifestações dos trabalhadores. Lideradas pelas centrais sindicais, entidades que não se opõem ao governo, muito pelo contrário, apoiaram com entusiasmo a eleição da presidente e lhe dão respaldo político, foram demonstrações de luta por direitos sociais – principalmente a redução da jornada de trabalho para 40 horas – e por um novo rumo para a política econômica, quando exigiram um basta à desindustrialização do país. O povo na rua pode fazer bem ao governo. É o fator que vai garantir a formação de uma consciência favorável à realização das reformas estruturais democráticas.

Editorial Vermelho

Raupp: PMDB pode romper com PT e lançar presidenciável em 2014

Fiador da governabilidade, mas pronto para disputar as eleições presidenciais já em 2014, caso a aliança com o PT da presidente Dilma Rousseff não seja mais possível. É esta a posição defendida pelo presidente em exercício do PMDB, senador Valdir Raupp (RO).

Para Raupp, o partido vive seu melhor momento de união, liderado pelo vice-presidente da República, Michel Temer, e deve se capacitar para lançar uma candidatura própria, mesmo que Dilma ainda tenha direito a uma reeleição. "A gente tem que estar preparado para disputar a Presidência em 2014. Isso não quer dizer que obrigatoriamente tem que lançar candidatura. Masm se não for possível reeditar a aliança com o PT, o PMDB tem que estar preparado", disse.

Questionado sobre a possibilidade de rompimento com o governo Dilma, Raupp tratou como natural um racha entre o PMDB e o PT. "Mas isso [rompimento] acontece em alianças de Estados, de municípios. [E não] precisa nem romper. Se não der, fazer o quê? Se não for possível, o PMDB tem que ter nomes preparados para lançar", afirmou, citando Temer e o governador do Rio, Sérgio Cabral, como os mais viáveis.

Sobre as recentes crises do governo, Raupp disse que "elas passam" e não necessariamente se devem à concentração de ministérios e poder nas mãos do PT — o que tem desagradado aliados como o PMDB. Mas afirmou que deveria haver uma mudança, "um rodízio [entre os partidos], colocar em outra área".

Ao mesmo tempo, Raupp defendeu que o PMDB — tido como fisiológico — não depende de cargos e tem condições de ganhar uma eleição, mesmo fora do governo. "Para ganhar eleição não precisa ter cargo, não. Às vezes, se ganha eleição sem cargo nenhum. O PMDB sempre soube fazer campanha na oposição. Eu mesmo disputei oito eleições, a maioria na oposição estadual, e nacional também. Eleição não se faz só com dinheiro ou cargo. Às vezes só atrapalha.”

Aao se referir às denúncias de corrupção que derrubaram a cúpula do Ministério dos Transportes, comandado pelo Partido da República (PR), Raupp diz que “tem muitos cargos que ajudam meia-dúzia e atrapalham o partido inteiro".

Para o senador, Temer agiu certo no episódio em que o vice-presidente, numa discussão áspera por telefone, rebateu a ameaça do ex-ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, de demitir os seis ministros do PMDB, caso o partido não apoiasse o governo na votação do Código Florestal. "Se tivesse que entregar os cargos entregaria. Ficamos dois anos no governo Lula sem cargo. E isso também não ia mudar a posição do PMDB de apoio ao governo. Um partido do tamanho do PMDB não pode se dar ao luxo de fazer oposição, porque oposição significa a ingovernabilidade."

Raupp lembrou que o PMDB caminha para ter no próximo biênio a presidência da Câmara dos Deputados — hoje ocupada por Marco Maia, do PT, e reservada, por acordo, para o líder da sigla na Casa, Henrique Eduardo Alves (RN) — e do Senado, onde, segundo a tradição, o partido com a maior bancada elege o presidente. "Como fazer oposição? Inviabiliza o governo", concluiu.

Como estratégia de fortalecimento do PMDB, Raupp afirma que o partido lançará, nas eleições municipais do próximo ano, candidatos próprios em 24 capitais. Apenas em Goiânia e Porto Alegre a tendência é de apoio aos atuais prefeitos, ex-vices que sucederam peemedebistas no cargo. Em 2008, o PMDB só lançou candidatos a prefeito em 11 capitais.

Para isso, a sigla tem investido na "contratação" de líderes de outros partidos, como o deputado federal Gabriel Chalita, que saiu do PSB e disputará a Prefeitura de São Paulo; o ex-deputado Gustavo Fruet (PSDB), que tem negociado com a legenda para concorrer ao cargo em Curitiba; e o ex-prefeito de Salvador Mário Kertész (sem partido). Há também conversa para a filiação de um nome de peso para concorrer em Recife.

Em São Paulo, o objetivo é preparar o terreno para, em 2014, aumentar o número de deputados do partido na Câmara, hoje de apenas um, para oito ou até dez, graças a um trabalho conjunto, que não havia, segundo Raupp, devido à disputa interna entre Temer e o ex-governador Orestes Quércia, morto no ano passado.

O presidente do PMDB defendeu a abertura de uma janela de transferência partidária, nos seis meses anteriores às eleições, e criticou o forte processo de migração para o PSD, em criação pelo prefeito de São Paulo Gilberto Kassab. Atualmente, a fundação de um novo partido é uma das quatro justas causas para que um político mude de sigla sem perder o mandato.

"Não é justo que um partido que não teve nenhum voto agora vá para 55 deputados", disse. Raupp afirmou desconhecer que três senadores de seu partido, em votação na CCJ do Senado, foram contra a exclusão da criação de novo partido como justa causa, num apoio indireto do PMDB ao PSD.

Da Redação Vermelho, com informações do Valor Econômico

Pagot depõe no Senado e nega uso do Dnit para fazer caixa ao PR

As comissões de Infraestrutura e Meio Ambiente, Fiscalização e Controle do Senado começaram, na manhã desta terça-feira (12), a ouvir o diretor afastado do Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), Luiz Pagot, sobre as denúncias de corrupção no órgão e no Ministério dos Transportes. Pagot rebateu as informações publicadas pela revista Veja de que o Dnit seria usado para fazer caixa ao PR, partido ao qual é filiado, e conseguir o apoio de parlamentares.

“Quero refutar todas as acusações que são feitas à minha pessoa. Vim fazer defesa do Dnit", declarou ele, já no início da audiência. “O PR não utilizou o Dnit para cooptar ou buscar dinheiro para seus cofres.”

Ele afirmou que, passado um ano em que estava à frente do órgão, percebeu que era necessário tomar medidas “mais contundentes” para fiscalizar as obras. À época, ele teria determinado a criação de um núcleo itinerante de auditoria interna composta por servidores do órgão e também de representantes da Controladoria-Geral da União (CGU).

Pagot também ressaltou, na audiência pública que ocorre no Senado, que foi acertado no colegiado que todas deliberações de obras seriam aprovadas por unanimidade, como forma de evitar qualquer possibilidade de manipulação. “Qualquer obra que for questionada por um dos diretores é retirada de pauta”.

Quanto ao modo de governar adotado por Dilma e pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Pagot disse que eles sempre tiveram um “estilo peculiar e veemente de cobrar” prazos no andamento das obras, especialmente as do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Ele reconheceu que, na reunião relatada pela reportagem da revista Veja, esse estilo peculiar de cobrança foi feito, mas não da forma como foi descrita. “As frases estão carregadas de conceitos, palavras na boca da presidenta que não são essas.”

Ele disse, ainda, que mantém uma “relação de companheirismo” com o ex-ministro e senador Alfredo Nascimento (PR-AM). A mesma relação também é estendida ao agora ministro dos Transportes, Paulo Sérgio Passos.

Quanto ao fato de ter entrado de férias (de 4 a 21 de julho), logo após as denúncias de corrupção no Dnit, Pagot afirmou que os dias já estavam agendados desde novembro de 2010 e foram autorizados tanto por Nascimento quanto por Dilma. Ele confirmou que a presidente, logo após as denúncias publicadas, determinou ao ministro o afastamento imediato das pessoas citadas.

Pagot levou ao Senado uma mochila, de onde tirou uma série de cadernos. Ao chegar à sala das comissões, o diretor disse que só vai falar com jornalistas na quinta-feira (14). Na quarta, ele tem outro depoimento marcado na Câmara de Deputados também sobre as denúncias de superfaturamento. Ele é o primeiro a falar no Congresso sobre o caso.

Da Redação Vermelho, com agências

O anticomunismo nas Escolas Militares

Imagino os jovens dos Colégios Militares, rapazes e mocinhas ardorosos obrigados a decorar algo como uma História vazia e violentadora, a que chamam História do Brasil – Império e República, de uma Coleção Marechal Trompowsky, da Biblioteca do Exército.


O nome, a origem, o Marechal, por si, já não garantiriam um bom resultado. Estariam mais para pólvora que para a História. Mas não sejamos preconceituosos, ilustremos com o que os estudantes são obrigados a aprender, como aqui, por exemplo:

“Nos governos militares, em particular na gestão do presidente Médici, houve a censura dos meios de comunicação e o combate e eliminação das guerrilhas, urbana e rural, porque a preservação da ordem pública era condição necessária ao progresso do país.”

Uma breve pesquisa aponta que esses livros servem a um ensino orientado pela Diretoria de Ensino Preparatório e Assistencial (DEPA), criado em … 1973, sim, naquele inesquecível ano da ditadura Médici. Ou naquele tempo do gestor democrático, segundo a orientação dada aos futuros militares. E não se pense que tal ensino está à margem da lei, não. Ele se apoia em um certo Art 4º do R-69. Percebem? A caserna legisla. Mas não é assim, sem nada, pois a DEPA organiza a proposta pedagógica “de orientar o processo educacional e o ensino-aprendizagem na formação de cidadãos intelectualmente preparados e cônscios do seu papel na sociedade segundo os valores e as tradições do Exército Brasileiro” (Grifo do seu documento). Que valores seriam esses, além das ideias anticomunistas do tempo da ditadura?

Penso agora nesses jovens dos colégios militares mantidos com os olhos vendados, pois deles se oculta a violência e o terror sofridos por outros jovens,  tão brasileiros, generosos e heroicos quanto eles hoje: 
“Eremias se tornou um cadáver aos 18 anos: perfurado de balas, o rosto irreconhecível porque uma só ferida, os cabelos, tão úmidos, tão grossos por coágulos de sangue, davam a impressão de flutuar no chão seco. Nada havia naquele cadáver que lembrasse o jovem que eu conhecera. O menino que eu vira em 1968 não anunciava aquele fim. Eremias não era aqueles olhos apertados, a boca aberta à procura de ar, a lembrar um afogamento. Um estranho peixe, com os cabelos a flutuar no seco.

Eremias morreu como um herói, permitam-nos dizer. O aparelho onde estava caíra. Fora entregue por um outro jovem preso, que não suportara as torturas. Cercado por forças do Exército, Eremias sozinho resistiu. Resistiu à bala, sem nenhuma esperança”. 

Ou aqui, neste depoimento da advogada Mércia Albuquerque, que assim viu e viveu no tempo da gestão do presidente Médici:

“Soledad estava com os olhos muito abertos com expressão muito grande de terror, a boca estava entreaberta e o que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade que estava, eu tenho a impressão que ela foi morta e ficou algum tempo deitada e a trouxeram, e o sangue quando coagulou ficou preso nas pernas porque era uma quantidade grande e o feto estava lá nos pés dela, não posso saber como foi parar ali ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror.”
E também aqui, nesta personagem oculta aos estudantes:

“Maria Auxiliadora Lara Barcellos atirou-se nos trilhos de um trem na estação de metrô Charlottenburg, em Berlim… tinha sido presa 7 anos antes, em 1969, no Brasil. Nunca mais conseguiu se recuperar plenamente das profundas marcas psíquicas deixadas pelas sevícias e violências de todo tipo a que foi submetida. Durante o exílio, registrou num texto… ‘Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos cantos mais íntimos. Foi um tempo sem sorrisos. Um tempo de esgares, de gritos sufocados, de grito no escuro…’”

Essa história trágica, mas ainda assim fecundante, o papel destruidor de vidas pela Ordem da ditadura militar não pode nem deve ser ocultado. Há um clamor cidadão contra. Os colégios militares não podem mais continuar independentes do Brasil, como se fossem ilhas inexpugnáveis à civilização.

Nos discursos mais comuns dos oficiais militares que pretendem eternizar uma Escola imune à democracia e à história dos homens, argumenta-se: a) os jovens brasileiros que não se formaram no Colégio Militar não pensam nem se instruem; b) a história vivida e produzida por intelectuais e doutores das universidades brasileiras não serve para o ensino militar. Não seria mais simples que proclamassem, como o general fascista na Espanha, “morte à inteligência”? 

Em todos os livros das Escolas Militares há um expurgo do genocídio de índios pelos bandeirantes, há uma nova Guerra do Paraguai que teria integrado todos os brasileiros (enquanto destruía o povo paraguaio), que unia até os escravos nacionais, mortos nas frentes com a promessa de liberdade; e, principalmente, o desaparecimento de vidas e execuções dos “apenas” 144 mortos da ditadura, que almejavam uma felicidade de bandidos.

E assim se formam novos oficiais, como se fossem a encarnação do Fantasma das histórias em quadrinhos. De geração a geração com o mesmo caráter, com o mesmo papel, a cavalgar em um cavalo branco pelo vazio histórico. De 1964 a 2011, apesar de a Guerra Fria ter acabado, apesar de um índio ter subido à presidência da Bolívia, apesar de um operário ter se tornado o presidente do Brasil mais popular em todo o mundo, tudo continua como antes no quartel de Abrantes. Igual aos tempos de Castelo Branco, Médici e Lyndon Johnson. 
***
 Por Urariano Mota - Boitempo

Agricultura familiar reduz desigualdade, diz Dilma ao lançar plano

 

Para Dilma Rousseff, agrigultura familiar tem sido responsável por um 'feito extraordinário' nos últimos anos, ao contribuir para reduzir desigualdades e criar um Brasil mais democrático. Presidenta lança plano safra 2011/2012 do segmento que repete quantia do ano passado, maz diz que governo reforçará os R$ 16 bilhões, caso agricultores consigam usar todo o dinheiro disponível, o que nunca aconteceu. Além de crédito, o plano tem medidas de garantia de renda e de demanda que o governo entende que também vão ajudar a agricultura familiar.

BRASÍLIA – A presidenta Dilma Rousseff lançou nesta terça-feira (12/07) o Plano Safra 2011/2012 da agricultura familiar, com R$ 16 bilhões em crédito, dizendo que o segmento tem sido responsável por um “feito extraordinário” no país. “Esse feito foi a redução da desigualdade. A agricultura familiar cria um Brasil mais democrático”, declarou a presidenta, em discurso na cidade de Francisco Beltrão, no Paraná.

No evento, Dilma afirmou que o valor reservado aos pequenos produtores pode subir, caso eles consigam usar toda a quantia. Esta é a primeira vez que o plano da agricultura familiar repete o valor do ano anterior. No plano dos grandes produtores, o financiamento ficou R$ 7 bilhões mais gordo (R$ 107 bilhões). “Se houver necessidade de recursos, eles estarão disponíveis. Queremos que mais agricultores familiares tenham acesso”, disse a presidenta. Desde a década passada, o segmento nunca utilizou todo a verba separada.

O dinheiro está liberado para empréstimo a agricultores familiares desde 1° de julho, quando o ministério do Desenvolvimento Agrário publicou portaria com as regras para os bancos operarem o Programa Nacional da Agricultura Familiar (Pronaf).
O plano seria lançado naquela dia por Dilma, mas houve adiamento por causa do mau tempo em Francisco Beltrão.

Embora o valor global do financiamento à agricultura familiar seja igual ao do último plano, os juros caíram e os prazos de pagamento, esticaram. Estas mudanças, segundo o governo, vão favorecer os produtores e podem até estimular quem não pega dinheiro no Pronaf a se aventurar a fazê-lo. Durante a década passada, o uso efetivo da linha de cŕedito do plano safra pela agricultura familiar nunca passou de 75%.

Além de crédito, o plano tem medidas de garantia de renda e de demanda que o governo entende que também vão ajudar a agricultura familiar. O Programa de Aquisição de Alimentos, por meio do qual o governo compra a produção dos agricultores, terá mais dinheiro do que antes, R$ 750 milhões.

Um projeto de lei será enviado ao Congresso para criar um programa de garantia de preço mínimo para a agricultura familiar. Com esta lei, o setor público se comprometerá a adquirir produtos da agricultura familiar pagando um valor mínimo. Inicialmente, o programa terá R$ 300 milhões anuais.

O governo pretende pactuar com prefeitos que comprem produtos da agricultura familiar para uso na merenda escolar nos municípios. O objetivo é destinar R$ 1 bilhão para estas compras.

No discurso, Dilma lembrou ainda um acordo recente firmado com supermercados pelo ministério do Desenvolvimento Social, no âmbito do programa de combate à miséria, para que eles também reservem uma parte de suas compras de alimentos para produtos oriundos da agricultura familiar.

“Queremos organizar a demanda da agricultura familiar para que ela possa se desenvolver cada vez mais e ter uma renda digna”, afirmou Dilma, que disse também ter recebid do antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, uma “herança bendita” nas políticas voltadas à agricultura familiar.
Fonte: Carta Maior

MERCADOS TOCAM O TERROR NA ZONA DO EURO. BELLUZZO: "A COISA ESTÁ MAIS PARA URUBÚ DO QUE PARA COLIBRI"

Testemunha ocular da zorra do euro, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo assiste, de Paris, ao tratoramento das instituições pelos mercados financeiros desregulados. Suas palavras: " Os ministros da Fazenda só conseguem fazer genuflexão para os mercados. A cada gesto de submissão os ditos mercados apertam as cravelhas. A última sugestão dos banqueiros: o Fundo Europeu de Estabilização deve comprar a dívida grega pelo valor de face (ou seja, os credores tiram o seu capital limpinho e na íntegra e o setor público afunda num mar de títulos podres). E a farra não cessa. Nesta 3º feira de trégua para a Itália e a Espanha, que registraram perdas brutais no dia anterior com a fuga de investidores e exigências de spreads maiores, os mercados decidiram exercitar a mira em um novo alvo: a cambaleante Irlanda. A Moody's, agencia de classificação de risco, anunciou que os títulos da dívida irlandesa decairam à categoria junker --'lixo'. Na semana passada, a mesma Moody's já havia jogado os papéis de Portugal no mesmo limbo, que elimina a chance de financiamento a mercado e afasta investidores como o diabo da cruz. A desordem financeira mundial cobra um preço alto e desmoralizante das autoridades da UE. Sem freios institucionais nem disposição ideológica para enquadrar as criaturas dos mercados desregulados, elas literalmente dançam na zona do euro, à reboque dos impulsos destrutivos das manadas especulativas. Os próximos dias prometem: depois de meses de hesitação, idas e vindas, a Comissão Européia anuncia uma cúpula de emergencia para sexta-feira. A intenção, até onde se sabe, é sancionar o calote de parte da dívida da Grécia, encalacrada entre a resistência dos credores privados --como observa Belluzzo, em realizarem perdas-- e a exigência da Alemanha, de que os beneficiário da festa grega ajudem a pagar a conta, depois de quebrados os pratos. Na mesma sexta-feira, ao final da tarde, será divulgado o diagnóstico sobre a saúde financeira da banca européia ('o teste de stresse'). Saberemos então a capacidade que tem o sistema privado de suportar um calote em sua carteira -- grego, por exemplo. A velha Europa range e ruge do assoalho econômico ao telhado político. Não é só o imbróglio financeiro, confirma Belluzzo: "...Além da crise dívida soberana, os europeus estão aparvalhados com o episódio do 'News of the World, o semanário do meliante Rupert Murdoch,que grampeou políticos, jogadores de futebol. O Guardian, o Independent e o próprio New York Times estão fazendo um cobertura digna do melhor jornalismo. No Brasil, os donos da imprensa estão escondendo o affair..."  A razão é simples: tudo soa familiar, demasiado familiar...
(Carta Maior; 4º feira 13/07/ 2011)