segunda-feira, 6 de junho de 2011

Dilma e Chávez reafirmam parceria estratégica Brasil-Venezuela


No primeiro encontro com Hugo Chávez desde a posse, Dilma Rousseff sinaliza que laços estreitos entre Brasil e Venezuela vão continuar, diz que países estão "determinados" a fazer da América do Sul uma "zona de paz e de democracia" e que tem "grande expectativa" por entrada do parceiro no Mercosul. Chávez chama Dilma de "querida amiga" e diz que relação Brasil-Venezuela não é mais baseada em "competência neoliberal".

BRASÍLIA – Diante da curiosidade geral que sua política externa desperta, a presidenta Dilma Rousseff reuniu-se nesta segunda-feira (06/06) com o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e demonstrou intenção de manter os laços estreitos estabelecidos pelos dois países no governo Lula.

Depois de conversarem a sós e acompanhados por ministros e de observarem auxiliares assinarem acordos bilaterais, Dilma e Chávez fizeram uma declaração pública afinada, em que buscaram enfatizar a harmonia e a importância de uma relação profunda entre os dois países.

“Sua presença entre nós comprova a elevada estima e a parceria estratégica que liga o Brasil à Venezuela (…) Todas as atividades e as cooperações que nós já realizamos juntos mostram como é produtivo e como são amplos os nossos interesses comuns”, afirmou a presidenta.

“Estamos desenvolvendo um novo modelo de relacionamento, que não se limita à competência, muito própria dos modelos neoliberais. Não. Nós estamos criando um modelo de complementação e de cooperação”, disse Chávez. "Esta diâmica integradora Brasil-Venezuela, sigamos fortalecendo", completou.

No pronunciamento, Dilma referiu-se por três vezes ao tema da “democracia”, que costuma ser usada por críticos do governo petista para contestar a proximidade brasileira de um país supostamente autoritário.

Primeiro, disse que Brasil e Venezuela estão unidos pela “determinação de fazer do espaço sul-americano uma zona de paz, de democracia, cooperação e crescimento econômico, com inclusão social e respeito aos direitos humanos”.

Depois, que o Brasil estará ao lado da Venezuela para que, “nesta parte do mundo”, haja “um mundo democrático, respeitador dos direitos humanos e, sobretudo, de um mundo que passa por grandes transformações, na medida em que seus povos passam a ter condições de repartir as riquezas produzidas nesta região”.

E encerrou sua fala afirmando ter certeza de que ela e Chávez vão contribuir “para construir, de forma sólida, países desenvolvidos e países democráticos”.

No discurso, Dilma disse também ter “grande expectativa” pela entrada da Venezuela no Mercosul, cuja concretização ainda depende de aprovação do Congresso do Paraguai – Brasil, Argentina e Uruguai já o fizeram. Garantiu que órgãos públicos e empresas privadas brasileiros continuarão a investir na Venezuela e a apoiar o desenvolvimento daquele país.

Também cumprimentou Chávez por ter conduzido a criação da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), cuja constituição formal deverá ocorrer em Caracas no próximo dias 5 de julho. Dilma vai viajar a Caracas para participar do encontro.

De sua parte, Chávez não economizou nas referências positivas à presidenta brasileira. Contou que, na primeira vez em que os dois se encontraram, no governo Lula, com ela no ministério de Minas e Energia, Dilma "roubou seu coração" de imediato, mesmo sem conhecê-la.

Chamou-a de "querida amiga". Elogiou-a por ter lançado o programa Brasil Sem Miséria, de erradicação da pobreza extrema, e pelo que enxerga de "visão estratégica, geopolítica e humana" na presidenta, que estava sorridente e parecia contente com as mesuras e simpatias do convidado.

E fez coro ao entusiasmo de Dilma quanto ao papel que Brasil e Venezuela desempenham para fazer da América Latina "uma zona de paz". "Aqui não queremos mais guerra nem bombardeios, nem desestabilização induzida por fatores exógenos", declarou.

Chávez deveria ter vindo ao Brasil no dia 10 de maio, mas um problema no joelho obrigou-o a cancelar a viagem. Por causa das dores que ainda sente, o venezuelano não subiu a rampa do Palácio do Planalto, formalidade tradicional nas visitas oficiais de presidentes estrangeiros.

Além das conversas no Planalto, Dilma e Chávez também almoçaram no Palácio do Itamaraty, sede do ministério das Relações Exteriores. A visita durou cerca de cinco horas. Ele deixaria o Brasil com destino ao Equador, para visitar o presidente de lá, Rafael Correa.

O próximo encontro entre Dilma e Chávez deve acontecer dia 5 de julho, em Caracas, por ocasião da contituição formal da Celac. Os dois combinaram de manter reuniões periódicas como Chávez fazia com Lula.
Por André Barrocal - CM

Golpe de estado financeiro ameaça democracia europeia


O recente discurso do presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, carrega consigo o programa de um verdadeiro golpe de estado financeiro contra a democracia europeia. O que está em questão é se Grécia, Irlanda, Espanha, Portugal e o resto da Europa terminarão por destruir o reformismo democrático e derivar para uma oligarquia financeira. O objetivo financeiro é evitar os parlamentos para exigir um “consenso” que dê prioridade aos credores estrangeiros a custo do conjunto da economia. Exige-se dos parlamentos que abdiquem de seu poder político legislativo em favor dos banqueiros. O artigo é de Michael Hudson.

Pouco depois de o Partido Socialista ter vencido as eleições para a Assembleia Nacional grega no outono de 2009, saltou aos olhos que as finanças públicas do país estavam em frangalhos. Em maio de 2010, o presidente francês Nicolas Sarkozy encabeçou a proposta de arredondar para cima, até os 120 bilhões de euros, o volume de dinheiro que os governos europeus teriam que usar para subsidiar o nada progressivo sistema fiscal grego que afundou o país na dívida. Uma dívida que os bancos de Wall Street tinham ajudado a esconder com técnicas contábeis dignas da Enron.

O sistema fiscal grego operava como um tubo sugador de recitas para pagar os bancos alemães e franceses que compravam títulos públicos gregos (com suculentas e crescentes taxas de juros). Os banqueiros estão se movendo agora para formalizar esse papel, uma condição oficial para ir cobrando os títulos gregos à medida que eles vão vencendo e esticar assim a corda financeira de curto prazo sob a qual a Grécia está operando agora. Os atuais portadores desses títulos obterão enormes lucros se este plano tiver êxito.

A agência Moody’s rebaixou a classificação da dívida grega a níveis de papeis podres, no dia 1° de junho (passando de B1, que já era um nível muito baixo, para Caa1), estimando em 50% a possibilidade de quebra. O rebaixamento serve para apertar ainda mais o cinto do governo grego. Independentemente do que façam as autoridades gregas, observou a Moody’s, “aumenta a probabilidade de que os sustentadores da Grécia (FMI, Banco Central Europeu e a Comissão da União Europeia: a “Troika”) necessitem, em algum momento futuro, da participação de credores privados em uma reestruturação da dívida como condição necessária para encontrar apoio financeiro.

Lançar a Grécia em uma guerra de classes para salvar a banca privada alemã e francesa
A condição necessária para que arranque o novo pacote “reformado” de empréstimos é que a Grécia entre numa guerra de classes aumentando seus impostos e rebaixando seu gasto social – incluindo as pensões do setor privado – e liquide e ponha em leilão terras públicas, enclaves turísticos, ilhas, portos, água e sistemas de esgoto. Isso aumentará o custo de vida e o custo para fazer negócios, atingindo a já limitada competitividade das exportações do país. Os banqueiros apresentam isso farisaicamente como um “resgate” das finanças gregas.

O que realmente foi resgatado há um ano, em maio de 2010, além de outros investidores estrangeiros, foram os bancos franceses, detentores de um bilhão de euros em títulos gregos e os bancos alemães, detentores de outros 23 bilhões. O problema era como conseguir que os gregos apoiassem a iniciativa. O recém eleito primeiro ministro socialista George Papandreu parecia capaz de entregar a seu eleitorado as linhas seguidas pelos neoliberais partidos socialdemocratas e trabalhistas em toda a Europa: privatizar as infraestruturas básicas e comprometer receitas futuras para pagar os banqueiros.

Nunca houve melhor ocasião que esta para servir-se da corda financeira e despojar de propriedades e apertar o garrote fiscal. Os banqueiros, por sua parte, estavam prontos a conceder empréstimos para financiar compras privadas de loterias e jogos públicos, sistemas de telefonia, portos, sistemas de transporte e outras oportunidades de monopólio. E no que diz respeito às próprias classes ricas gregas, o pacote de créditos da União Europeia conseguiria manter o país na eurozona o suficiente para permitir que retirassem seu dinheiro do país, antes que chegue o momento em que a Grécia se veja forçada a abandonar o euro e voltar a uma dracma rapidamente desvalorizada. Até que não chegue a esse ponto de regresso a uma moeda própria em queda, a Grécia tem que seguir a política báltica e irlandesa de “desvalorização interna”, isto é: de deflação salarial e corte de gastos públicos – exceto para pagar o setor financeiro – a fim de rebaixar o emprego e, assim, os níveis salariais.

O que realmente resulta desvalorizado nos programas de austeridade ou de desvalorização monetária é o preço do trabalho. Ou seja, o principal custo interno, posto que há um preço mundial comum para combustíveis e minerais, bens de consumo, alimentos e até crédito. Se os salários não podem ser reduzidos pela via da desvalorização interna (com um desemprego que, começando pelo setor público, induza quedas salariais), a desvalorização da moeda fará o trabalho até o fim.

É assim que a guerra dos países credores contra os países devedores na Europa torna-se uma guerra de classes. Mas para impor tamanha reforma neoliberal, é preciso que a pressão externa passe ao largo dos parlamentos nacionais democraticamente eleitos. Pois não é de se esperar que os eleitores de todos os países acabem sendo tão passivos como os da Letônia e da Irlanda quando se age manifestamente contra os seus interesses.

A maioria da população grega se dá conta do que está acontecendo a medida que esse cenário se desenhava ao longo de 2010. “O próprio Papandreu admitiu que não tem voz nas medidas econômicas que são lançadas contra nós”, disse Manolis Glezos, representante da esquerda. “Foram decididas pela União Europeia e pelo FMI. Agora, estamos sob supervisão externa, o que coloca questões sobre nossa independência econômica, militar e política”. No lado da direita política, o dirigente conservador Antonis Samaras disse, dia 27 de maio, quando avançavam as negociações com a troika europeia: “não estamos de acordo com uma política que mata nossa economia e destrói nossa sociedade...A Grécia só tem uma saída: a renegociação do acordo de resgate (com a UE e o FMI)”.

Mas os credores da UE negam essa possibilidade: rechaçar o acordo, ameaçam, significaria uma retirada de fundos de tamanha gravidade, que causaria um colapso bancário e a anarquia.

Os gregos se negaram a render-se resignadamente. As greves iniciadas pelos sindicatos do setor público logo se converteram em um movimento nacional, o “Eu não pago”: os gregos passaram a se negar a pagar em postos de pedágio nas estradas ou em outros postos de acesso público. A polícia e os fiscais se abstiveram de obrigar a população a pagar. O nascente consenso populista levou o primeiro ministro de Luxemburgo, Jean-Claude Junker a lançar uma ameaça similar aquela que o britânico Gordon Brown levantou contra a Islândia: se a Grécia não cumprir as exigências dos ministros das finanças europeus, será bloqueado o crédito que o FMI acertou para junho. Isso, por sua vez, bloquearia os pagamentos do governo grego aos banqueiros estrangeiros e aos fundos abutres que vêm comprando uma dívida grega cada vez mais depreciada.

Para muitos gregos isso é como se os ministros de finanças ameaçassem dar um tiro nos próprios pés. Se não há dinheiro com que pagar, os portadores estrangeiros de títulos sofreriam, ao menos até que a Grécia conseguisse levantar sua economia. Mas se trata de um grande “se”. O primeiro ministro socialista Papandreu imitou a socialdemocrata islandesa Sigurdardottir pedindo um “consenso” para obedecer aos ministros de finanças da UE. “Os partidos da oposição rechaçaram seu último pacote de austeridade, argumentando que o aperto de cinto acertado em troca de um resgate de 110 bilhões de euros enfraqueceria completamente a economia”.

O que está em questão na Grécia, Irlanda, Espanha, Portugal e no resto da Europa
O que está em questão é se Grécia, Irlanda, Espanha, Portugal e o resto da Europa terminarão por destruir o reformismo democrático e derivar para uma oligarquia financeira. O objetivo financeiro é evitar os parlamentos para exigir um “consenso” que dê prioridade aos credores estrangeiros a custo do conjunto da economia. Exige-se dos parlamentos que abdiquem de seu poder político legislativo. O significado do “mercado livre”, neste momento, é planificação central nas mãos dos banqueiros centrais. Essa é a nova via rumo à servidão pela dívida a que estão levando os “mercados livres” financeirizados: mercados “livres” para que os privatizadores cobrem preços monopolistas por serviços básicos “livres” de regulações de preços e de regulações antioligopólicas, “livres” de limitações ao crédito para proteger os devedores e, sobretudo, “livres” de interferências por parte dos parlamentos eleitos. Em uma perversão da linguagem, chama-se de “alternativa” à servidão ao processo de fixação de preços para os monopólios naturais – transporte, comunicação, loterias – retirados do domínio público. Na verdade, é o caminho da servidão pela dívida rumo a um verdadeiro neofeudalismo financeirizado, que é o que está se desenhando no horizonte do futuro. Essa é a filosofia econômica do nosso tempo.

A concentração do poder financeiro em mãos não democráticas era inerente já ao modo pelo qual começou a se forjar na Europa a planificação centralizada em mãos financeiras. O Banco Central europeu não tem atrás de si nenhum governo eleito que possa arrecadar impostos. A Constituição da UE proíbe ao BCE o resgate de governos. E os artigos do acordo com o FMI proíbem também que esta ofereça apoio fiscal aos déficits orçamentários nacionais. “Um Estado membro podo obter créditos do FMI somente se “for necessário para equilibrar sua balança de pagamentos ou sua posição de reservas”. O problema de Grécia, Irlanda e Portugal não é com as reservas internacionais. O FMI está fazendo empréstimos por problemas orçamentários. E se supõe que não é isso o que deveria fazer.

O Banco Federal alemão disse isso muito claramente em seu informe do mês de março: “Qualquer contribuição financeira do FMI para resolver problemas que não envolvam necessidade de moeda estrangeira – como o financiamento direto de déficits orçamentários – seria incompatível com seu mandato monetário”. O presidente do FMI, Dominique Strauss-Kahn, e o economista chefe, Olivier Blanchard, estão levando o FMI a um território proibido, e não há tribunal de justiça que possa detê-los” (Roland Vaubel, “Europe’s Bailout Politics”, The International Economy, Primavera de 2011, p. 40).

A moral da história é: quando se trata de salvar os banqueiros, ignoram-se as regras a fim de servir a uma “justiça mais alta”, que é a de evitar que os bancos e seus sócios das altas finanças percam dinheiro. O que contrasta vivamente com a política do FMI para os trabalhadores e os “contribuintes”. A luta de classes regressou ao mundo dos negócios: vingativa e, desta vez, com os banqueiros como vencedores.

A UE substituiu os Estados nacionais pela planificação dos banqueiros e, por essa via, a política democrática foi substituída pela oligarquia financeira
A Comunidade Econômica Europeia, que precedeu a atual União Europeia, foi criada por uma geração de dirigentes cujo principal objetivo era por fim às intermináveis guerras intestinas que assolaram a Europa durante mil anos. O objetivo de muitos deles era por fim aos próprios Estados nacionais, na suposição de que são as nações que vão à guerra. O que se esperava era que a democracia econômica derrotaria a mentalidade monárquica e aristocrática, inebriada pela glória e pela conquista.

Internamente, a reforma econômica depuraria as economias europeias do legado das passadas conquistas feudais de territórios e, em geral, de bens comuns públicos. O objetivo era beneficiar o conjunto da população europeia. Esse era o programa reformista da economia política clássica.

A integração europeia começou pelo comércio, a via de menor resistência: a Comunidade do Carvão e Ação promovida por Robert Schuman, em 1952, seguida, em 1957, pela Comunidade Econômica Europeia (CEE, o Mercado Comum). A integração aduaneira comum e a Política Agrícola Comum (PAC) foram complementados com a integração financeira. Mas, na falta de um Parlamento continental real que legislasse, fixasse taxas, protegesse as condições de trabalho, defendesse os consumidores e controlasse os centros bancários extraterritoriais, a planificação central passa para as mãos dos banqueiros e das entidades financeiras. Essa é a consequência de substituir os Estados nacionais pela planificação dos banqueiros. Deste modo, a política democrática foi substituída pela oligarquia financeira.

As finanças como forma de guerra
As finanças são uma forma de guerra. Como na conquista militar, seu objetivo é garantir o controle da terra e das infraestruturas públicas, e impor tributos. Isso envolve ditar leis a seus súditos e concentrar o planejamento social e econômico em mãos centralizadas. Isso é o que está se fazendo agora com meios financeiros, sem o custo, para o agressor, de ter que colocar um exército sobre o campo de batalha. Mas as economias sob ataque podem terminar tão profundamente devastadas pelos rigores financeiros quanto seriam por investidas militares, provocando contração demográfica, encurtamento da média de vida, emigração e fuga de capitais.

E essa ofensiva não é comandada por Estados nacionais como tais, mas sim por uma classe financeira cosmopolita. As finanças sempre foram mais cosmopolitas do que nacionalistas, e sempre procuraram impor suas prioridades e seu poder legislador sobre as democracias parlamentares.

A estratégia financeira, como é a de qualquer monopólio, busca bloquear o poder público regulador ou fiscalizador. Desde a perspectiva financeira, a função ideal do Estado é robustecer e proteger o capital financeiro e o “milagre do juro composto”, que faz com que as fortunas sigam se multiplicando exponencialmente, de modo mais rápido do que a economia pode crescer, até que começa a abocanhar pedaços da economia real, fazendo com ela o mesmo que os credores predatórios e os rentistas fizeram com o Império Romano.

Essa dinâmica financeira é o que ameaça quebrar a Europa de nossos dias. Mas a classe financeira ganhou poder o suficiente para inverter o tabuleiro ideológico e insistir com certo êxito que o que ameaça a unidade Europa são as populações nacionais que atuam resistindo às exigências cosmopolitas do capital financeiro para impor políticas de austeridade aos trabalhadores. Pretende-se que dívidas que já se tornaram impagáveis passem para a contabilidade pública: sem necessidade de batalha militar alguma, cabe dizer; ao menos, os banhos de sangue são coisa do passado.

Do ponto de vista das populações irlandesa e grega (às quais talvez não tardem a se somar a portuguesa e a espanhola), os governos nacionais parlamentares irão se mobilizar para impor os termos de uma rendição incondicional aos planificadores financeiros. Quase poderia se dizer que o ideal é reduzir os parlamentos a regimes títeres locais ao serviço de uma classe financeira cosmopolita que se serve da alavancagem creditícia para se apropriar dos restos do domínio público que costumavam ser chamados de “bens comuns”. Deste modo, estamos entrando em um mundo pós-medieval de fechamentos: um novo movimento impulsionado por uma lei financeira revogadora da lei comum civil e depredadora do bem comum.

Trichet rascunha o programa de um golpe de estado financeiro contra a democracia europeia
Dentro da Europa, o poder financeiro se concentra na Alemanha, França e Holanda. Seus bancos são os maiores detentores de títulos públicos da Grécia, de quem se exige austeridade agora. Seus bancos são também os maiores portadores de títulos dos bancos irlandeses, que já foram resgatados pelos contribuintes irlandeses.

No dia 2 de junho de 2011, o presidente do BCE, Jean-Cluade Trichet rascunhou o esquema adequado para estabelecer o regime de oligarquia financeira por toda a Europa. De modo muito apropriado, anunciou seu plano logo após receber o prêmio Carlos Magno, na Alemanha, o que simbolicamente expressava que a Europa unificou-se, não sobre o fundamento da paz econômica sonhado pelos arquitetos do Mercado Comum nos anos 50, mas sim sobre fundamentos oligárquicos diametralmente opostos.

No início do seu discurso (“Construir a Europa, construir instituições”), Trichet louvou muito oportunamente o Conselho Europeu, dirigido pelo senhor Van Rompuy, e o Eurogrupo dos ministros das finanças, dirigido pelo senhor Juncker, por ter proporcionado direção e impulso. Juntos, formam o que a imprensa popular europeia chama de a “troika” de credores. O discurso do senhor Trichet referiu-se ao “triálogo” entre o Parlamento, a Comissão e o Conselho.

A tarefa da Europa, explicou, era seguir Erasmo a ponto de levá-la mais além de seu “tradicional e restrito conceito de nacionalidade”. O problema da dívida exigiu novas “medidas de política monetária: as chamamos de medidas ‘não standard’, estritamente separadas das decisões ‘standard’, e orientadas a restaurar uma melhor transmissão de nossa política monetária nas presentes condições anormais dos mercados”. O problema atual é o de converter essas condições em uma nova normalidade: a de pagar dívidas e redefinir a solvência para refletir a capacidade de pagamento de uma nação pela via de colocar em leilão a esfera pública.

“Os países que não viveram de acordo com a letra e o espírito das regras experimentaram dificuldades”, observou Trichet. “Via contágio, essas dificuldades acabaram por afetar outros países da unidade europeia. Tornar essas regras mais estritas para prevenir políticas sem sentido é, assim, uma prioridade urgente”. Seu uso do termo “contágio” apresenta como uma enfermidade o que não é senão o governo democrático e a proteção dos devedores. Reminiscente do discurso dos coronéis gregos, com o qual começa o famoso filme “Z”: combater o esquerdismo como se se tratasse de uma praga agrícola a exterminar com o pesticida ideológico adequado. O senhor Trichet fazia sua a retórica dos coronéis. A tarefa dos socialistas gregos é, evidentemente, fazer o que os coronéis e seus sucessores conservadores não puderam fazer: entregar o mundo do trabalho ao domínio de contrarreformas econômicas irreversíveis.
“Há medidas em curso que implicam assistência financeira sob estritas condições, plenamente de acordo com a política do FMI. Sou consciente de que muitos observadores têm reparos e questionam onde essa política nos levará. A linha que separa a solidariedade regional e a responsabilidade individual pode ser apagada caso não se cumpram estritamente as condições postas. Em minha opinião, o apropriado seria prever, no médio prazo, duas etapas para os países em dificuldades. Isso, naturalmente, traria consigo uma mudança do Tratado”.

“Em uma primeira etapa, está justificado garantir ajuda financeira no contexto de um forte programa de ajustes. É apropriado dar aos países uma oportunidade para corrigir por si mesmos a situação e restaurar a estabilidade. Ao mesmo tempo, essa ajuda é do interesse do conjunto da área euro, pois previne a difusão das crises, que poderia provocar danos em outros países”.

“É da maior importância que o ajuste seja feito, que os países – governo e oposição – se unam para garantir o esforço requerido, e que os países que vão fornecer a ajuda supervisionem com muita atenção o desenvolvimento do programa”.

“Mas se um país ainda não está preparado para isso, creio que todos estaremos de acordo que, neste caso, a situação é muito distinta. Seria ir demasiado longe dizer que, nesta segunda etapa, teríamos que dar às autoridades da zona euro uma capacidade de decisão muito mais profunda e autorizada na formação das políticas econômicas do país, se estas seguissem um caminho desastroso? Uma influência direta, muito acima e muito mais além da pura supervisão reforçada do presidente” (o grifo aqui é do autor, M.H.)

O presidente do BCE apresentou aí a premissa política chave de seu programa de reformas (se é que se pode usar essa palavra para fazer de políticas que são precisamente o contrário do programa reformista da ilustração europeia):
“Podemos ver diante de nossos olhos que o pertencimento à União Europeia, e mais ainda à Unidade Monetária Europeia, introduz uma nova compreensão do modo de exercer a soberania. A interdependência significa que os países, de fato, não têm autoridade interna completa. Podem experimentar crises causadas inteiramente pelas absurdas políticas econômicas de outros países”.

“Com um novo conceito de uma segunda etapa poderíamos mudar drasticamente a presente forma de govenrnança baseada na dialética de supervisão, recomendações e sanções. Com o atual conceito, todas as decisões ficam nas mãos do país concernido, mesmo que as recomendações não sejam aplicadas e mesmo que sua atitude gere dificuldades maiores para outros países membros. Com o novo conceito, não só seria possível, como também obrigado em certos casos, que em uma segunda etapa as autoridades europeias – o Conselho, baseado nas propostas da Comissão -, juntamente com o Banco Central europeu, tomassem diretamente decisões aplicáveis à economia em questão”.

“Uma forma de imaginar isso é que as autoridades europeias tivessem direito de veto sobre algumas decisões de políticas econômicas nacionais. Em particular, isso poderia incluir grandes gastos públicos, assim como elementos essências para a competitividade do país...”


Por “políticas econômicas absurdas”, o senhor Trichet entende, por exemplo, a postura de negar-se a pagar dívidas, ou depreciá-las para adequá-las à capacidade de pagamento, sem colocar em leilão o próprio território e privatizar monopólios de serviços públicos. A postura, em resumo, de negar-se a substituir a democracia econômica pelo controle dos banqueiros. Enfiando e retorcendo a faca na longa história do idealismo europeu, Trichet apresenta falsamente sua proposta de golpe de estado financeiro como se ela seguisse o espírito de Jean Monnet, Robert Schuman e outros democratas que promoveram a integração europeia na esperança de criar um mundo mais pacífico: um mundo que deveria ser mais próspero e produtivo, não um mundo baseado no despojo financeiro de ativos.
“Jean Monnet escreveu há 35 anos em suas memórias: ‘Ninguém pode dizer hoje qual será o marco institucional da Europa do futuro por causa da impossibilidade de prever as mudanças que serão provocadas pelas mudanças do presente”.

“Nesta mudança do amanhã, ou do depois do amanhã, seria demasiado ousado prever, no campo econômico, um mercado único, uma moeda única e um banco central único, um ministério das finanças da União europeia? Não necessariamente um ministério de finanças que administre um grande orçamento federal. Mas um ministério de finanças que exerça responsabilidades diretas ao menos em três domínios: primeiro, a supervisão tanto das políticas sociais como das de competitividade, assim das responsabilidades diretas antes mencionadas no concernente a países na ‘segunda etapa’ dentro da área euro; segundo, todas as responsabilidades típicas dos setores executivos relacionados ao setor financeiro integrado da união, assim como no tocante ao acompanhamento da plena integração dos serviços financeiros; e, terceiro, a representação da confederação da união em instituições financeiras internacionais”.

“Husserl concluiu sua conferência de uma maneira visionária: ‘A crise existencial da Europa só pode terminar de duas formas: com a sua renúncia (...) precipitando-se em um espírito de ódio e na barbárie; ou com o seu renascimento a partir do espírito da filosofia, por meio de um heroísmo da razão (...)”.


Como observou meu amigo Marshall Auerback a propósito deste discurso, sua mensagem é bastante familiar como descrição do que está ocorrendo nos Estados Unidos: “É a resposta do Partido Republicano, em Michigan. Toma o controle das cidades em crise governadas por minorias desfavorecidas, tira do poder seus governos democraticamente eleitos e usa de poderes extraordinários para impor austeridade”. Em outras palavras, não há espaço, na União Europeia, para a atuação de nenhuma agência tal como a proposta por Elizabeth Warren para os EUA. Não é esse tipo de integração idealista que aspiram Trichet e o BCE. O que eles querem conduz aos créditos de encerramento do filme “Z”. As coisas proibidas pela Junta de Coronéis incluem: movimentos pacifistas, greves, sindicatos de trabalhadores, homens com cabelo comprido, The Beatles, música moderna e popular, Sófocles, León Tolstoy, Ésquilo, escrever que Sócrates era homossexual, Eugene Ionesco, Jean-Paul Sartre, Anton Chekov, Harold Pinter, Edward Albee, Mark Twain, Samuel Beckett, sociologia, enciclopédias internacionais, imprensa livre e nova matemática. Também foi proibida a letra “Z”, usada como símbolo para recordar que Grigoris Lambrakis e seu espírito de resistência vivem (zi=”ele (Lambrakis) vive”.

No cuidadoso resumo que o Wall Street Journal fez do discurso de Trichet:

“se um país resgatado não se adequa ao programa de ajuste fiscal, então poderia se exigir dele uma ‘segunda etapa’, que possivelmente envolveria dar às autoridades da eurozona uma capacidade de decisão muito mais profunda e autorizada na formação das políticas econômicas do país (...) As autoridades da eurozona – singularmente, suas instituições financeiras, não as instituições democráticas voltadas à proteção dos trabalhadores e dos consumidores, à melhoria da qualidade de vida, etc. – poderiam chegar a ter, sob tal regime, direito de veto sobre certas decisões de política econômicas. Em particular, poderiam vetar grandes gastos públicos e elementos essenciais para a competitividade do país”.

Citando a lúgubre interrogação de Trichet – nesta união do amanhã, será demasiado ousado, no campo econômico, imaginar um ministério de finanças para a união? – o artigo observava que “um ministério assim, não necessariamente disporia de um grande orçamento federal, mas implicaria a supervisão e a apresentação de vetos, e representaria o bloqueio monetário nas instituições financeiras internacionais”.

De acordo com minhas próprias recordações, o idealismo socialista logo depois da II Guerra Mundial via os estados nacionais como instrumentos bélicos. Esta ideologia pacifista eclipsou a ideologia socialista originária de fins do século XIX, que buscava reformar os Estados para tirar o poder legislativo e o poder fiscal das mãos das classes que os dominavam desde que as invasões vikings estabeleceram na Europa o privilégio feudal, a posse absenteísta de terras, o controle financeiro dos monopólios comerciais e, logo em seguida, de modo crescente, o privilégio bancário de criação da moeda.

Como observou recentemente meu colega da Universidade de Missouri, em Kansas, o professor William Black, no blog econômico da UMKC:

“Um dos grandes paradoxos é que os governos da periferia, geralmente orientados para a centro-esquerda, adotaram tão entusiasticamente as receitas ultradireitistas aferradas à ideia de que a austeridade é uma resposta apropriada a uma grande recessão. A razão pela qual partidos de esquerda abraçam recomendações de economistas de ultradireita, cujos dogmas antirregulatórios contribuíram para causar a crise é um dos grandes mistérios da vida. Suas políticas são autodestrutivas economicamente e suicidas politicamente.

A Grécia e a Irlanda se converteram na pedra de toque para saber se as economias serão sacrificadas para pagar umas dívidas que não podem ser pagas. A ameaça que está no horizonte é um intervalo no qual o caminho para a quebra e a austeridade permanente trará consigo o crescente despojo de terras e empresas públicas subtraídas do domínio comum, o crescente desvio de mais e mais receitas dos consumidores para pagar o serviço da dívida, o aumento dos impostos para que os governos paguem aos portadores de títulos públicos e uma crescente proporção das receitas empresariais para pagar banqueiros.

Se isso não é uma guerra, o que é?

(*) Michael Hudson é ex-economista de Wall Street e atualmente um Pesquisador destacado na Universidade do Missouri, Kansas City (UMKC), e presidente do Instituto para o estudo das tendências de longo prazo da economia (Institute for the Study of Long-Term Economic Trends ISLET). É autor de vários livros, incluindo Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire (new ed., Pluto Press, 2002) [Super Imperialismo: A Estratégia Econômica do Império Ameicano] e Trade, Development and Foreign Debt: A History of Theories of Polarization v. Convergence in the World Economy. [Comércio, Desenvolvimento e Dívida Exerna: Uma História das Teorias da Polarização versus Convergência na Economia Mundial

Tradução: Katarina Peixoto - Carta Maior

VEIAS ABERTAS DA EQUAÇÃO PERUANA

O Peru é o terceiro maior produtor mundial de cobre e zinco e o maior produtor de ouro, zinco, prata, chumbo, estanho e telúrio da América Latina. É também o segundo maior produtor de cobre, molibdênio e bismuto da região.  Não por acaso, o grande fluxo de capitais estrangeiros que aportou na economia peruana  nos últimos anos mirava as exportações dessas riquezas, reeditando a velha lógica colonial de embarque ponto a ponto sem agregar quase nada ao desenvolvimento local. A morfologia peruana se desdobra em três círculos de diferenciação geográfica e social:  costa, selva e serra. A selva e a serra concentram a miséria reproduzida pelo modelo neoliberal predominante desde os anos 90, ancorado em liberdade absoluta aos capitais, receita fiscal irrisória de apenas 15% (inferior à média acanhada da América Latina de 18%)  e proteção social mínima à população, decorrente de parcos investimentos públicos em serviços essenciais. Mais de 50% dos moradores  da Amazônia peruana e das áreas  serranas vivem na pobreza, contra  média de 19%  na costa branca e mestiça. Paradoxalmente foi nos cinturões da selva e da serra  que se concentraram os grandes projetos de mineração que fizeram o fastígio da elite no litoral, sem benefício equivalente à maioria miserável que vive nessas áreas. Não por acaso, vieram dos indígenas, que formam 45% da população,  os votos que propiciaram a vitória de Humala  contra o continuísmo neoliberal assumido por Keiko Fujimori. A tarefa mais difícil do novo governo agora será coordenar as expectativas de mudança dos seus eleitores com o timming necessário à recomposição das finanças públicas, deliberadamente desprovidas de recursos para acionar programas de crescimento e inclusão social. Com uma mídia hostil, despudoramente tendenciosa, a ponto do prêmio Nobel de Literatura,o  conservador Vargas Llosa, suspender a veiculação de suas colunas em um dos jornais da direita, em protesto pela cobertura eleitoral, não será fácil a decolagem do novo governo. Mais que nunca, o apoio de Estados progressistas da América Latina, Brasil à frente, será fundamental à estabilidade e ao sucesso de Humala.
(Carta Maior; 3º feira, 07/06/ 2011)

Strauss-Kahn: uma metáfora das práticas do FMI

O leitor ou leitora pensará que foi uma tragédia o fato de o Diretor-gerente do FMI, Strauss-Kahn, ter dado asas ao seu vício, a obsessiva busca por sexo perverso, nu, correndo atrás de uma camareira negra na suíte 2806 do hotel Sofitel em Nova York, até agarrá-la e forçá-la a praticar sexo, com detalhes que a Promotoria de Nova York, descreve em detalhes e que, por decência, me dispenso de dizer. Para ele não era uma tragédia. Era uma vítima a mais, entre outras, que fez pelo mundo afora. Vestiu-se e foi direto para o aeroporto. O cômico foi que, imbecil, esqueceu o celular na suíte e assim pôde ser preso pela polícia ainda dentro do avião.

A tragédia ocorreu não com ele, mas com a vítima que ninguém se interessa em saber. Seu nome é Nifissatou Diallo, da Guiné, africana, muçulmana, viúva e mãe de uma filha de 15 anos. A polícia encontrou-a escondida atrás de um armário, chorando e vomitando, traumatizada pela violência sofrida pelo hóspede da suíte, cujo nome sequer conhecia. A maior parte da imprensa francesa, com cinismo e indisfarçável machismo, procurou esconder o fato, alegando até uma possível armadilha contra o futuro candidato socialista à Presidência da República. O ex-ministro da cultura e educação, Jacques Lang, de quem se poderia esperar algum esprit de finesse, com desprezo, afirmou: "Afinal não morreu ninguém”. Que deixe uma mulher psicologicamente destruída pela brutalidade do Mr. Strauss-Kahn não conta muito. Finalmente, para essa gente, se trata apenas de uma mulher e africana. Mulher conta alguma coisa para este tipo de mentalidade atrasada, senão para ser mero "objeto de cama e mesa”?

Para sermos justos, temos que ver este fato a partir do olhar da vítima. Ai dimensionamos seu sofrimento e a humilhação de tantas mulheres no mundo que são sequestradas, violadas e vendidas como escravas do sexo. Só uma sociedade que perdeu todo o sentido de dignidade e se brutalizou pela predominância de uma concepção materialista de vida que faz tudo ser objeto e mercadoria, pode possibilitar tal prática. Hoje, tudo virou mercadoria e ocasião de ganho desde o bens comuns da humanidade, privatizados (commons como água, solos, sementes), até órgãos humanos, crianças e mulheres prostituídas. Se Marx visse esta situação ficaria seguramente escandalizado, pois para ele o capital vive da exploração da força de trabalho, mas não da venda de vidas. No entanto, já em 1847 na Miséria da Filosofia intuía: "Chegou, enfim, um tempo em que tudo o que os homens haviam considerado inalienável se tornou objeto de troca, de tráfico e podia alienar-se. O tempo em que as próprias coisas que até então eram comunicadas, mas jamais trocadas, dadas, mas jamais vendidas: adquiridas mas jamais compradas como a virtude, o amor, a opinião, a ciência e a consciência, em que tudo passou para o comércio. Reina o tempo da corrupção geral e da venalidade universal....em que tudo é levado ao mercado”.

Strauss-Kahn é uma metáfora do atual sistema neoliberal. Suga o sangue dos países em crise como a Islândia, a Irlanda, a Grécia, Portugal e agora a Espanha como fizera antes com o Brasil e os países da América Latina e da Ásia. Para salvar os bancos e obrigar a saldar as dívidas, arrasam a sociedade, desempregam, privatizam bens públicos, diminuem salários, aumentam os anos para as aposentadorias, fazem trabalhar mais horas. Só por causa do capital. O articulador destas políticas mundiais, entre outros, é o FMI, do qual Strauss-Kahn era a figura central.

O que ele fez com Nafissatou Diallo é uma metáfora daquilo que estava fazendo com os países em dificuldades financeiras. Mereceria cadeia não só pela violência sexual contra a camareira, mas muito mais pelo estupro econômico ao povo, que ele articulava a partir do FMI. Estamos desolados. (Leonardo Boff - Adital)

O drama da escravidão moderna


A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que 12 milhões de pessoas no mundo vivem em condição de escravos. O Brasil, principal receptor de escravos da América Latina durante a colônia continua albergando milhares de "escravos moderno”. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) desse país sul-americano acaba de lançar uma campanha de denúncia, retomada na Suíça pela ONG Brüke – Le Pont.
Apesar de sua abolição, em 1888, continuam aparecendo nesse país sul-americano –e em outras regiões do planeta- novas formas de escravidão.

Seres humanos que trabalham em condições infrahumanas em plantações, fábricas fechadas, minas, carvoarias etc. Diversas fontes estimam que cerca de 40 mil brasileiros estão atualmente condenados a uma situação de escravidão "moderna”. Essa situação motiva a CPT a lançar a campanha de denúncia: "Manter-se vigilantes para evitar a escravidão”.

"A solidariedade internacional é muito importante para denunciar essa realidade desumana que ainda acontece em meu país”, explica a engenheira agrônoma Rosa Lídia Morais da Silva, em visita à Suíça.
Morais, voluntária nacional da organização "Fazendo a Paz” –co-parte de Brüke- é responsável de gestão interna da Ação Social Arquidiocesana (ASA), reconhecida ONG brasileira que reúne em seu trabalho diversos atores da sociedade civil brasileira como as pastorais da Terra, dos Migrantes, das Crianças, da Saúde...

"O que define legalmente a situação de escravidão são dois elementos: condições degradantes de trabalho e vida; e a privação da liberdade”, explica Morais.

Segundo a Comissão Pastoral da Terra, o Pará é o Estado "campeão” das denúncias de trabalho escravo; seguido no ranking do escravagismo moderno brasileiro pelos Estados de mato Grosso, Maranhão, Goiás e Tocantins. Em 2010, 3.054 pessoas foram libertadas da escravidão nessas regiões devido ao trabalho de ONGs e de instâncias estatais.

Realidade verídica... com ar de ficção

"Um personagem denominado "gato” (Ndr: quem captura gente como se captura ratos) chega a um município isolado que, normalmente, apresenta alto índice de desocupação, desemprego, oferecendo trabalho”, narra Morais, para explicar o funcionamento do escravagismo moderno. "Ele entrega, antecipadamente, uma pequena quantidade de dinheiro para a família e freta um ônibus, em geral bem luxuoso, para transporta um grupo de desempregados contratados”. Após uma viagem bem longa, que pode ser de centenas ou milhares de quilômetros, "as pessoas vão mudando de transporte, até terminar em veículos muito incômodos e pouco seguros, através dos quais vão sendo distribuídos em diferentes fazendas ou áreas rurais de exploração”.

Com essas condições, "que se degradam com o passar das horas”, os contratados chegam a um lugar isolado, muitas vezes zonas de bosques, onde trabalharão no desmonte ou em parcelas rurais que serão destinadas ao agronegócio, informa a jovem agrônoma brasileira.

"Os trabalhadores já chegam endividados ao lugar onde vão trabalhar, porque o ‘gato' descontará de seus ridículos salários os gastos de transporte e com alimentação durante o trajeto. Começam desde o primeiro momento a suportar condições desumanas de vida e de trabalho, agravadas pelo isolamento total de suas famílias e de seu lugar de origem”, explica Morais.

"A existência dessa escravidão moderna e do mecanismo de contratação que a origina pode ser explicada péla ignorância da pessoa desempregada, pela falta de informação sobre o que vai encontrar e pelo próprio desespero originado por sua condição de desempregado”, explica Rosa Lídia. É o resultado direto da "pobreza extrema, da miséria, da fome, da falta de acesso à educação”, enfatiza.

Crime

O artigo 149 do Código Penal brasileiro considera o "escravagismo como um crime”, explica a engenheira agrônoma, que reconhece "os esforços tenazes do Estado para confrontar essa realidade indigna”. A vontade política existe e se expressa, por exemplo, através de um Plano Nacional contra o Tráfico de Pessoas, que combate o trabalho escravo, a venda de órgãos e o comércio sexual.

Além disso, enfatiza Morais, "o Ministério do Trabalho e Emprego criou comissões especializadas em combater o trabalho escravo. Seus funcionários atuam juntamente com a Polícia Federal, correndo, muitas vezes, grandes riscos pois os proprietários das fazendas contam normalmente com milícias armadas para proteger suas propriedades”.

Elemento também significativo: dito Ministério publica, regularmente, uma "lista suja” das empresas denunciadas por violações graves, como contratar mão de obra escrava. "Dessa forma, estas serão excluídas de todo tipo de licitação pública e não poderão receber créditos bancários”, sublinha Morais.

Rosa Lídia antecipa duas reflexões de síntese: A constatação de que apesar das leis e da vontade política do Estado e do governo atual, "a escravidão moderna no Brasil existirá enquanto amplos setores da sociedade continuem vivendo na miséria”. E o chamado à cooperação e à solidariedade internacional para dar seguimento à campanha das ONGs brasileiras. As tarefas principais: "informar no Brasil e no exterior; promover campanhas de divulgação sobre o trabalho escravo; sensibilizar sobre seu efeito perverso; reforçar os atores da sociedade civil nacional que o combatem abertamente”, conclui Morais.

Por Sergio Ferrari, Adital

A VITÓRIA DE OLLANTA

“Quando se estrepou o Peru?”, pergunta um personagem ao amigo, no notável novela de Vargas Llosa, Conversas na Catedral. Os dois dão por estabelecido que o Peru tinha se estrepado. Se tratava somente de saber quando. Embora escrito há mais de quatro décadas (1969), na fase melhor da obra do Nobel peruano, poderia incluir o que o país viveu até agora.

A vitória de Ollanta Humala para a presidência do Peru fecha um longo ciclo de governos neoliberais e abre novas perspectivas para o país, ao mesmo tempo que fortalece o campo dos processos de integração regional e enfraquece a precipitada operação de construção de um eixo neoliberal, com o México, a Colômbia e o Chile, em contraposição aos governos posneoliberais.

O governo nacionalista de Velasco Alvarado (1968-1975) foi seguido de uma serie de governos que buscaram desarticular os avanços do governo de Velasco, tanto no plano da reforma agrária, quanto na construção de um projeto nacional no Peru. Foi derrubado por um golpe militar dado por um ministro seu , Morales Bermudez, que governou até 1980.

Foi sucedido por Alan Garcia (1985-1990), do partido mais estruturado do Peru, o Apra, que tentou uma moratória da divida externa peruana, não recebeu sequer apoio de governos da região, não conseguiu controlar a inflação e caiu, sem apoio interno. Na sua sucessão se degladiaram Vargas Llosa, com um programa claramente neoliberal, e o desconhecido Alberto Fujimori, que se valeu da rejeição do estilo aristocrático do escritor, para triunfar.

No governo, Alberto Fujimori (1990-2000) assumiu um projeto de contrainsurgencia que, ao mesmo tempo que combatia a guerrilha do Sendero Luminoso, destruía a espinha dorsal do forte movimento popular peruano, tanto no campo, quanto na cidade. Entre as ações do Sendero – que atacaram também as forças populares que não se submetiam à sua ação - e as ações do Exercito, o movimento popular peruano sofreu, sob um fogo cruzado, ações demolidoras, que o reduziu à uma expressão mínima. Fujimori deu um golpe, fechou o Congresso e interveio na Justiça (para o que recebeu, vergonhosamente para nós, o apoio de FHC), estendeu seu mandato, mas terminou caindo por processos de corrupção e violência, pelo que, depois de fugir para o Japão, foi condenado a 23 anos de prisão, cumprindo atualmente a pena.

Foi a partir dessa destruição da capacidade de defesa e resistência do movimento popular que se erigiu o projeto neoliberal no Peru, mediante os governos de Fujimori, Toledo (2001-2006) e Alan Garcia (2006-2011) cobrindo um período de mais de 20 anos, em que a economia peruana voltou a crescer, em base a uma extensa exploração extrativista exportadora das riquezas do pais, centrada no ingresso maciço de empresas estrangeiras. As condições não poderiam ser melhores para essas empresas, dado que a tributação geral no país gira em torno de 15% do PIB, sem recursos para que os governos fizessem políticas sociais.

Repetiu-se assim com Fujimori, Toledo e Alan Garcia, o mesmo padrão de governo: continuidade do alto crescimento do PIB, centrado na exportação de minerais – ouro, zinco, cobre, gás, basicamente -, sem políticas sociais, com governos que, eleitos, perdiam popularidade de forma estrepitosa, seja pela corrupção que os envolveu a todos, seja pela falta de políticas sociais redistributivas.

Na eleição anterior se enfrentaram o projeto nacionalista de Ollanta Humala e Alan Garcia. Valendo-se de forte campanha de medo, depois que Ollanta havia triunfado no primeiro turno, com o apoio explícito de Hugo Chávez, Garcia triunfou por pequena margem e voltou ao governo, desta vez para dar continuidade aos programas neoliberais de seus antecessores e sofrer o mesmo tipo de desgaste. No final do seu governo, já com menos de 10% de apoio, Toledo havia assinado um Tratado de Livre Comércio com os EUA. Apesar de não se comprometer explicitamente em mantê-lo durante a campanha, Garcia assumiu o TLC e consolidou a abertura neoliberal da economia peruana. Com a recessão norteamericana, no entanto, o Peru passou a ter na China o seu principal parceiro e no Brasil um sócio muito importante, ambos com crescentes investimentos no país.

A invasão de terras indígenas na região amazônica por empresas transnacionais para explorar suas riquezas minerais levou ao despertar de importantes movimentos indígenas, o que ocasionou, entre outros conflitos, um massacre chamado de Baguazo, em junho de 2009, que teve 34 mortos, pela resistência indígena a ocupação de terras para exploração mineral. O Congresso peruano aprovou nesse momento uma legislação que contemplava a consulta aos movimentos indígenas sobre os investimentos.

Essa legislação passou a se constituir em um obstáculo a investimentos já existentes e a outros programados, mas o governo nunca a regulamentou, promovendo situações de incerteza, tanto para os investimentos, como para os movimentos indígenas. Dias antes do segundo turno das eleições desta semana, um movimento parou a região de Cuzco, só aceitando suspendê-lo pela intervenção de Ollanta, mas com a perspectiva de retomá-lo em seguida, se não houver solução para suas reivindicações.

Movimentos deste tipo fizeram com que o país tivesse que reconhecer a região amazônica como região importante para o Peru e despertaram movimentos antes pouco conhecidos no país, promovendo os conflitos sociais mais importantes, que devem se prolongar no novo governo.

O desprestigio de Garcia fez com que seu partido praticamente desaparecesse – elegeu apenas 4 parlamentares -, deixando aberta a sucessão, para a qual se apresentaram vários candidatos neoliberais – entre eles Toledo, um ex-ministro de economia de Garcia, um ex-prefeito de Lima, a filha de Fujimori, diante do único candidato que criticava o modelo, Ollanta Humala. O Apra nem sequer conseguiu apresentar um candidato próprio, com Garcia apoiando ao candidato neoliberal que chegasse ao segundo turno.

Humala reciclou suas posições para um modelo de continuidade do desenvolvimento, mas com redistribuição de renda mediante elevação da taxação dos investimentos mineiros e políticas sociais, modelo próximo ao de Lula. Conseguiu, com base de apoio popular, especialmente no interior do país, chegar de novo em primeiro lugar no segundo turno, desta vez contra Keiko, a filha de Fujimori, que gozava também de apoio popular, baseado nas políticas assistencialistas do seu pai na luta contra o Sendero Luminoso. Em viagem oficial ao Peru, quando se encontrou com Garcia, Lula recebeu publicamente também a Ollanta, com quem trocou opiniões sobre experiências brasileiras na construção de alternativas ao neoliberalismo. Desde então Ollanta veio ao Brasil, tanto na eleição de Dilma, quanto na sua posse, consolidando laços com Lula, Dilma e o PT, o que se traduziu, inclusive, em apoio politico à campanha de Ollanta. (enquanto os tucanos, envergonhados, torciam por Keiko, filha do amigo de FHC.)

O segundo turno foi muito acirrado, tanto na disputa de votos, quanto nas acusações. O apoio da velha mídia peruana, fortemente alinhada com Keiko e as campanhas, conhecidas por nós, de calunias e terror contra Ollanta – a ponto de chegar a revoltar a Vargas Llosa, que rompeu com o jornal tradicional, El Comercio, no qual historicamente publicava suas colunas -, incluindo falsas declarações e telefonemas de Ollanta e, horas antes da abertura da votação, uma suspeita ação, atribuída ao Sendero Luminoso.

Na fase final da campanha, os movimentos de rua e pela internet de rejeição a Keiko, pelos riscos de retorno da camarilha do governo do seu pai – governo de que ela participou como primeira dama -, contribuíram para a vitória apertada de Ollanta. Isso, apesar do apoio maciço da classe média e da oligarquia peruanas em Lima e em regiões do norte do país, além do apoio do governo de Garcia e dos 2 candidatos neoliberais derrotados – Toledo, que havia se elegido no bojo das mobilizações populares que derrubaram a Fujimori, ficou em quarto lugar e apoiou Ollanta.

Ollanta soube, no segundo turno, estabelecer as alianças para conseguir triunfar, renunciando a algumas propostas do seu programa inicial, como nacionalizações de empresas e convocação de Assembleia Constituinte.

Seu triunfo fecha o ciclo de 20 anos de governos neoliberais no Peru, e o mesmo se dá no marco de compromissos já estabelecidos, como o TLC com os EUA. Mas mesmo nesse marco, haverá uma clara aproximação com o Mercosul e, em particular com o Brasil, seja por afinidades políticas, seja pelos interesses econômicos mútuos entre os dois países e distanciamento do pólo neoliberal em que o México, a Colômbia e o Chile pretendiam construir, como alternativo aos processos de integração regional que envolvem a grande maioria dos países da região.

Abre-se para o Peru o caminho de colocar em prática políticas sociais redistributivas – apelo forte da campanha de Humala e, de alguma forma, também de Keiko – e nova inserção internacional do país, que passa a se somar aos governos posneoliberais da região. Não se pode definir precisamente quando o Peru se havia estrepado, mas certamente seguiu por esse caminho nas duas últimas décadas e 2011 marca o momento em que o país, sob a liderança de Ollanta e com forte respaldo popular, começa a ser resgatado para um projeto de ampla democratização econômica, social, política e cultural. (Emir sader – Carta Maior)

'Diversidade na França é cosmética', diz sociólogo franco-argelino

Encoberto sob o “véu” dos valores republicanos, o mito da diversidade francesa se dirige para uma encruzilhada. A extrema-direita desponta mais forte e perigosa do que nunca como opção eleitoral (Marine Le Pen investe na imagem de “Paz e Amor”); a Primavera Árabe, em estágio de impasse, coloca a questão migratória na Europa no olho do furacão, tornando-se como moeda de troca na formação de governo e incitação à xenofobia em debates eleitorais; o governo Sarkozy desponta como um dos artífices para delimitar a livre circulação de pessoas no Espaço Schengen; a crise econômica e o desemprego parecem estar longe de serem efetivamente combatidos.  De fato, a diversidade está longe de ter, em solo francês, e mesmo europeu, um peso similar aos três preceitos que passaram a caracterizar a sociedade moderna desde 1789.

Para abordar essa realidade e a possível desconstrução desse mito, o sociólogo franco-argelino El Yamine Soum, 32 anos, especialista em temas relacionados à diversidade e etnicidade foi entrevistado pelo professor de Economia da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) Pedro Chadarevian, que colaborou com Opera Mundi. Também especializado em questões raciais no mercado de trabalho, outros artigos e intervenções de Chadarevian podem ser encontrados em seu blog 
Outra Economia.

Soum é professor de Relações Internacionais no Instituto Internacional do Pensamento Islâmico em Paris. Ele também tem uma série de publicações em livros na França, Espanha, EUA e México. Também é co-autor, ao lado do sociólogo francês Vincent Geisser (Discriminar para melhor Reinar, em português), de um livro sobre a diversidade na política. È figura carimbada em intervenções na mídia e em conferências relacionadas ao tema. Trabalha também para programas de cooperação na área patrimonial e de turismo com vários países, entre eles: Mali, Chile e Vietnã.

Com frequência, é dito que, na França, não existe racismo. Porém, a segregação racial residencial, assim como a do mercado de trabalho, é marcante no país. A diversidade é, então, um assunto do momento?
O racismo infelizmente permeia todas as sociedades e a França está longe de se ver livre desse fenômeno. A questão da diversidade – o que significa, em francês, dizer entre os dentes "árabe" e "preto" –, é um assunto do momento, mas, sobretudo, um assunto polêmico.

A campanha presidencial que se aproxima vai, certamente, reservar um grande espaço para esse tema, principalmente para a questão da presença muçulmana na França. É também uma excelente estratégia de distração: ocupando o espaço midiático com esses assuntos, uma parte da classe política francesa demonstra sua incapacidade em resolver os problemas dos franceses.

Ao contrário do que ocorre nos EUA e no Brasil, aqueles que sofrem racismo na França não têm um movimento nacional bem organizado. Como mobilizar os jovens provenientes da imigração na luta contra a discriminação?
Na França, a tradição republicana exige que não se fale de etnias ou de raças. É um mecanismo muito sutil porque, na verdade, os debates, ao mesmo tempo midiáticos, políticos e acadêmicos, são marcados pela etnização. Há muitos agentes que se mobilizam contra as discriminações, algumas associações que, por vezes, são trampolins políticos para os fundadores: o famoso "eu" por um nós.

Outros agentes se mobilizam de um ponto de vista econômico, tentando criar redes de apoio mútuo e treinamento. Depois, há as mobilizações de algumas instituições porque o direito europeu exige mais legislações novas sobre o assunto, essas são as diretrizes europeias transponíveis ao direito francês.

Enfim, há alguns anos, as empresas se envolvem na promoção da diversidade nas suas políticas por várias razões, geralmente econômicas e para melhorar a sua imagem. Acredito que são os agentes que mais atingem o público jovem, há uma série de agentes culturais, como os cantores, os rappers que denunciam a discriminação.

A batalha da constatação está ganha, temos um número considerável de estudos que demonstram a realidade e a persistência da discriminação no sistema francês. Resta agora encontrar soluções, o que não é uma tarefa fácil.

Arquivo pessoal
 
El Yamine Soum tem uma extensa bibliografia a respeito de temas como etnicidade e diversidade.
O risco de avanço da extrema-direita parece cada vez mais real na França, especialmente depois da crise econômica de 2008. Isso faz com que o caminho até a presidência fique mais difícil para a esquerda. Essa é realmente uma má notícia para os movimentos sociais de luta contra o racismo na França? Os movimentos de luta contra o racismo são numerosos. Alguns, como o SOS Racisme, que é um satélite do Partido Socialista francês, não têm mais legitimidade na situação e, sobretudo, muitos agentes denunciaram seu vínculo com países estrangeiros! Há também o MRAP, mais estabelecido, mas um pouco velho em sua concepção.

Por fim, a luta contra o racismo foi paralisada pelas iniciativas que vieram de cima e querem ter controle sobre a juventude herdeira do império colonial francês. Hoje em dia, é muito difícil falar de movimentos sociais de luta contra o racismo, houve um esgotamento. Seria necessário supervisionar as evoluções daqui em diante. Há uma associação que tenta lutar contra os preconceitos que se chama Les Indivisibles (Os Indivisíveis), fundada por Rokhaya Diallo, comentarista da televisão francesa.

Podemos tentar estabelecer uma ligação entre o levante dos subúrbios na França (em 2005) e a Revolução do Jasmim no mundo árabe (2010-2011)? Os jovens árabes sofrem, dos dois lados do Mediterrâneo, com o desemprego, a repressão policial, a discriminação...
Sim, mas estamos em duas realidades diferentes. Na França, eu não tenho certeza de que a maioria dos rebelados era de árabes, alguns analistas falam de uma revolta plural, com um forte elemento de pessoas da África negra. Para além da questão étnica e racial, é, sobretudo, uma ruptura de geração que ocorre na França. Há o sentimento de que a juventude está quase abandonada pelos mais velhos que “patrimonializaram” a França, seja na política, na economia, no setor imobiliário, etc.

A revolta no mundo árabe está historicamente ligada à constituição do Estado de Israel. A qual ponto o advento da democracia na região poderá mudar a política ocidental para a Palestina?
A questão palestina revela uma cisão entre dois mundos. Não é por acaso se as prefeituras ricas da França ostentam seu apoio a Israel e as prefeituras mais pobres penduram o retrato de Salah Hamouri, um franco-palestino detido em prisões israelenses. Há mecanismos de identificação pelo mundo, porque essa questão é gritante no que se refere a injustiças e revela aquelas injustiças que nos tocam nas nossas sociedades.

Não acho que os dirigentes israelenses, como uma parte dos dirigentes europeus, desejem uma democratização na margem sul do Mediterrâneo e, no entanto, é o destino do mundo. Uma democratização dos países árabes colocará fim aos silêncios cúmplices ocidentais ou ainda à lógica de colocar países árabes sob tutela do Norte, principalmente para as questões energéticas.

No Brasil, como na Turquia, foi possível superar as ditaduras militares. São exemplos interessantes para os países árabes. Mesmo que, no momento, o Brasil seja tímido na diplomacia quanto a esse assunto.

Para voltar à questão palestina, a democratização dos países árabes irá colocar os dirigentes israelenses diante da História: a paz ou a busca da colonização e o desprezo do direito internacional.

Aliás, uma das primeiras experiências democráticas do mundo árabe veio da Palestina com a organização das eleições livres. Mas o resultado das urnas foi recusado imediatamente, e ainda recebeu uma mãozinha do Hamas.

A imprensa ocidental insiste no caráter "espontâneo" da revolta no mundo árabe. No entanto, sempre são necessários líderes e movimentos sociais organizados para que a ameaça ao poder estabelecido seja concreta. A esquerda e os novos nacionalistas árabes parecem ter um papel importante lá. Estamos diante do renascimento do "Nasserismo" revolucionário?
A herança de Nasser é controversa, principalmente por seu militarismo sem sucesso e sua má gestão da experiência da República Árabe Unida, entre 1958 e 1961, cujo saldo foi uma anexação egípcia da Síria. Por outro lado, ele colocou as bases de um orgulho árabe e acelerou a ideia de união dos povos árabes.

Nos movimentos de contestação, há sobretudo uma junção entre os militantes politizados, bem de esquerda, e do movimento social com pouca ideologia e slogans simples: "democracia", "Fora Mubarak ou Ben Ali", "fim da corrupção", "respeito e dignidade".

Existe, contudo, um sentimento árabe e de unidade nas situações difíceis e nas ditaduras. Os povos reagiram por mimetismo às revoltas, e a noção de ser árabe é bastante avivada de maneira virtual por meio das novas tecnologias e dos canais árabes.

As ideologias pan-árabe e pan-islâmica são encobertas em benefício de um engajamento pós-moderno, distanciado e simples em suas formulações.

A esquerda árabe e marxista foi em parte esmagada pelos islâmicos. Aliás, um certo número de militantes do islã político são antigos marxistas.

A França sempre impediu, por diferentes meios, um debate mais aprofundado sobre a condição socioeconômica dos seus negros, árabes e mestiços. Entretanto, existem alternativas e essas estatísticas mostram uma desigualdade racial impressionante. O que se pode afirmar concretamente hoje em dia em relação à demografia, à pobreza, ao desemprego da população não branca francesa?
Ao contrário da situação brasileira, na França é proibido estabelecer estatísticas com base em critérios étnicos ou religiosos. O passado da França de Vichy é muito presente para se ter um debate sereno sobre a questão.
Existem estudos com base nas variáveis de origens que demonstram a persistência da discriminação, principalmente para os árabes e negros da França. Podemos afirmar claramente que os homens árabes da França são sem dúvida muito discriminados nas esferas política e econômica.

Um estudo recente de Huges Lagrange, que demonstra uma ligação entre a origem e a delinquência, gerou polêmica. Ele afirma que os negros, principalmente do Mali, estão mais propensos a se tornarem delinquentes. Esse estudo, cujos resultados estão sujeitos à polêmica, parte de uma análise das estruturas familiares do oeste da África.

O que é certo é que ainda é muito comum a polícia controlar mais esses imigrantes do que outras pessoas, com base na aparência.
A diversidade se tornará um dia um valor republicano da mesma ordem que a igualdade, a fraternidade e a liberdade? Quais são as políticas de discriminação positiva na França atualmente? Não penso que isso seja um progresso, pois, no momento, a noção de diversidade põe em guetos as populações árabe e negra porque é uma diversidade cosmética e de comunicação. Isso cria uma subcategoria de cidadãos que lembra os muçulmanos na Argélia colonial, onde eles tinham um status inferior ao dos cristãos e judeus.  Seria necessário haver um comportamento e discursos mais sólidos sobre as discriminações.

Quanto à discriminação positiva, é difícil porque a constituição afirma no seu primeiro artigo: “A França garante a igualdade perante a lei de todos os cidadãos sem distinção de origem, raça ou religião”. A partir dessa constatação, é necessário inovar e contornar esse espírito. Em primeiro lugar, acho que é punindo os discursos racistas e estigmatizantes de uma parte da elite política e midiática francesa que poderemos avançar.

Karl Marx dizia: "Quando, no topo do poder, toca-se violino, como não esperar que aqueles que estão embaixo se ponham a dançar?"
Há alguma chance de que a Primavera Árabe contamine o debate sobre a integração social e econômica dos jovens provenientes da imigração no interior da Europa ocidental? Há dois níveis de análise. No nível político, instrumentalizamos essa questão dizendo “atenção à ameaça islâmica e às ondas de imigrantes que devem jorrar em direção a nós na Europa”. Mais ainda, uma parte das elites políticas continuou sustentando as ditaduras agonizantes!

No nível da base e das populações árabes, é uma visão positiva de seus países de origem. Assistimos a diversos debates, conferências, animação nos blogs etc. Assistimos também a uma efervescência política.

Além disso, no nível europeu, quando vemos a situação dos jovens na Grécia, em Portugal e na Espanha, isso levanta verdadeiras questões sobre as elites políticas europeias e poderíamos testemunhar revoltas, se a crise econômica e de gerações crescer. (Opera Mundi)

BOCA DE URNA: HUMALA VENCE DE VIRADA E ENCERRA CICLO NEOLIBERAL NO PERU

O Peru que foi às urnas neste domingo para rejeitar a continuidade da política neoliberal personificada em Keiko Fujimori registrou a maior taxa de crescimento da América Latina no ano passado: 9%. A média de expansão do  seu PIB tem sido elevada, da ordem de 7%. Em 2010, sua economia atraiu mais investimentos estrangeiros do que a Argentina. O presidente Alan García, no entanto, deixa o cargo com uma das taxas de popularidade mais baixas das Américas: cerca de 26% -- inferior à de George Bush, por exemplo, que encerrou o mandato em meio  a uma hecatombe financeira e desacreditado pela guerra do Iraque. A explicação para o paradoxo, responsável pela vitoria de Ollanta Humala, segundo as pesquisas de boca de urna, é o modelo de crescimento adotado nos últimos anos. O Peru desde os anos 90 cresce sem políticas públicas para redistribuir a riqueza em benefício da sociedade, sobretudo de sua vasta maioria pobre constituída de indígenas, que formam 45% da população (brancos são 15%). Foram deles os votos decisivos que garantiram a virada da candidatura de centro-esquerda. Basicamente exportadora de minérios, a economia peruana beneficiou-se fartamente da valorização dos preços das commodities nos últimos anos. A opção política, porém, foi por um modelo de crescimento de recorte neoliberal feito de  desregulação  máxima para os mercados e direitos sociais mínimos para a população. A riqueza gerada nessa engrenagem não circula na sociedade, concentrando-se numa órbita restrita de beneficiados que gostariam de eleger Keiko Fujimori para afsatar o risco de mudanças. A ausência de carga fiscal sancionou e acentuou  as polarizações decorrentes dessa dinâmica A receita do Estado peruano é de 15% do PIB, inferior até mesmo à média latinoamericana e caribenha que já é acanhada, oscilando em torno de 18% do PIB, contra 39,8% da União Europeia,  onde a rede de contrapesos sociais está consolidada. O governo Alan García poupou as mineradoras  peruanas de uma taxação correspondente aos lucros fabulosos acumulados no atual ciclo de alta  das matérias-primas. O mercado naturalmente cuidou de seus próprios interesses e o Estado não reuniu fundos para investir em educação, saúde, habitação e segurança alimentar. No crepúsculo do ciclo neoliberal  a renda per capita no Peru é de US$ 5.196, bem inferior a de outros países da região, como Uruguai, Chile, Brasil e México. A realidade, no entanto, é ainda pior que isso. Com 2/3 da mão de obra na informalidade, a sociedade peruana não dispõe de uma estrutura de direitos trabalhistas; a população rural, formada sobretudo pelos indígenas, vegeta; uma professora ganha cerca de  R$ 200,00 por mês. É esse modelo de crescimento que ao gerar riqueza amplifica a desigualdade e polariza toda estrutura social que foi rejeitado agora nas urnas.
(Carta Maior; 2º feira, 06/06/ 2011)
 

A Educação e a prova dos nove

Apesar de inúmeros avanços nos últimos anos, estamos apenas caminhando em uma área na qual o País precisaria estar voando. O que impera é não só o dissenso, fustigado pelo obscurantismo, como uma disputa sobre o papel do sistema público, seu peso no orçamento do Estado e sua relação com o mercado da educação, um dos mais rentáveis do País.

Ao contrário do que parece, não existe e nunca existiu no Brasil o propalado consenso sobre a importância da educação. O que impera é não só o dissenso, fustigado pelo obscurantismo, como um disputa sobre o papel do sistema público, seu peso no orçamento do Estado e sua relação com o mercado da educação, um dos mais rentáveis do País.

É curioso, mas dificilmente fruto de uma mera coincidência, que o fogo cruzado contra o ministro da Educação, Fernando Haddad, tenha se intensificado justamente quando o debate sobre o Plano Nacional de Educação e sobre o futuro de suas políticas no País deveria ser o mais relevante a ser travado neste momento.

Apesar de inúmeros e significativos avanços nos últimos anos, estamos apenas caminhando em uma área na qual o País precisaria estar voando.

O principal obstáculo decorre do fato de que a educação sofreu um profundo processo de fragmentação, confusão gerencial, subfinanciamento, desmonte de suas estruturas e desarticulação dos setores defensores do sistema público.

A Constituição de 1988 promoveu uma positiva institucionalização da autonomia dos sistemas estaduais, municipais e da universidade. Promoveu a descentralização e a expansão da oferta de vagas, rumo à quase universalização do ensino fundamental.

Todavia, sobretudo a partir dos anos 1990, o federalismo brasileiro passou por um processo de grave distorção. A falência econômica de muitos Estados, por conta de gestões irresponsáveis ao longo dos anos 1980, e suas políticas de terra arrasada (torrar recursos e deixar a casa destruída para governos seguintes) levaram a um contexto favorável ao ajuste fiscal rígido.

Estados e Municípios foram obrigados a reduzir custos, e a educação foi um dos setores prioritários da operação-desmonte. Salários dos professores foram achatados e proliferaram os contratos temporários. Muitos se tornaram “concurseiros”, policiais, funcionários de bancos, analistas de carreiras vinculadas à gestão da máquina do Estado (tributação, orçamento, administração) e tudo o que, com salários bem mais elevados, demonstrava que a educação não era prioridade.

Ao mesmo tempo, escolas desmoronavam sobre a cabeça de alunos e professores. O ensino técnico havia sido abandonado. O ensino médio, excluído do Fundef, foi deixado à míngua. A maioria dos governadores, na prática, abandonou por completo seu compromisso com a educação, preferindo redirecionar a missão essencial dos Estados às políticas de desenvolvimento econômico, com estímulo à guerra fiscal e obsessão por atrair empresas e e empreendimentos que guardariam relação direta com o financimento de campanhas políticas.

A educação chegou ao fundo do poço, e é por isso que ainda é tão difícil esperar que ela dê saltos. Cada tentativa tem o provável resultado de bater com a cabeça na parede.

A fragmentação é tal que há diferenças muito pronunciadas de desempenho entre Estados vizinhos, em uma mesma região, e mesmo de escolas vizinhas, em um mesmo município. A depender do governador, do prefeito e até do diretor, a cada quatro anos tudo pode ser perdido, e a educação passar do vinho ao vinagre. Avanços de uma gestão podem ser revertidos pelas gestões seguintes.

O governo Lula patrocinou grandes conquistas, sob o comando do ministro Haddad. Elevou o gasto com educação e transformou o Fundef em Fundeb, finalmente abrangendo o Ensino Médio. Lula também tomou a decisão crucial de suspender a Desvinculação das Receitas da União (a famigerada DRU), que diminuía o valor dos recursos a serem repassados para a educação. Desde 2003, foram construídos 214 centros de formação profissional e tecnológica, mais do que os 140 erigidos desde 1909. Há 14 novas universidades, além de mais de 30 novos campi ligados às universidades já existentes.

O Judiciário brasileiro também deu uma contribuição importante, recentemente, derrotando cinco governadores que haviam pedido a decretação da inconstitucionalidade do piso salarial dos professores estabelecido nacionalmente.

Reverteu-se a absurda situação anterior, na qual, em nome da “responsabilidade” fiscal, o Governo Federal se desincumbia de cumprir sua responsabilidade com a educação.

O fato de o Brasil ocupar, segundo a Unesco, o 88º lugar, entre 127 países, e o 53º, entre 65 países pesquisados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), tem muito a ver com o fato de a educação ser, igualmente, não a primeira, mas a 53ª ou a 88ª prioridade de muitos governos estaduais e municipais.

É fácil jogar toda a culpa, ou a maior parte dela, sobre o Ministério da Educação (MEC), e mais especificamente, sobre os ombros do ministro Fernando Haddad. Fácil, mas simplista.

Certamente, o MEC cometeu vários erros. O ministério não se empenhou por consolidar a coalizão de defesa do sistema público para além de suas reuniões com outros governos. Demorou muito para fazer a Conferência Nacional de Educação e está longe de ter uma boa relação com as organizações nacionais de professores. Não priorizou o tema da gestão democrática, verdadeira pedra de toque da autonomia do ensino, mas que precisa de parâmetros claros para que não seja mais um ingrediente de desagregação do sistema.

Também não conseguiu estabelecer uma nova estratégia de relacionamento com Estados, Municípios e DF. Hoje, a política do Governo Federal para a educação não é uma política de educação nacional. O que existe são diferentes políticas educacionais espalhadas pelo país, e o esforço do MEC no sentido de harmonizá-las por estratégias de apoio e cooperação.

Mas os ataques que Haddad tem sofrido ultimamente vêm de quem nunca o aplaudiu, quando de seus acertos. A coalizão que mira no MEC quer acertar na testa destes avanços proporcionados em menos de uma década

Quem conhece um pouco da história da educação no Brasil sabe que inúmeras tentativas de transformá-la mais profundamente são estigmatizadas com pesadelos e fantasmas.

Por exemplo, nos anos 1930, o prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto, chamou para conduzir seu projeto de reforma do ensino ninguém menos do que o honorável Anísio Teixeira, velho batalhador da educação pública, laica e inovadora. Ambos criaram, como modelo, a Universidade do Distrito Federal. Entre em seus quadros, estavam nomes que reinventaram as ideias sobre o Brasil, como Sérgio Buarque de Holanda, Cândido Portinari, Heitor Villa Lobos, Cecília Meirelles, Álvaro Vieira Pinto, Josué de Castro, Gilberto Freyre e Mário de Andrade. Portanto, gente de todos os matizes.

O que isso rendeu a Pedro Ernesto? A acusação, feita pelos conservadores, de abrigar comunistas, de ser um ateu, contrário ao ensino da palavra de Deus. Anísio Teixeira demitiu-se. O prefeito foi exonerado e preso, acusado de simpatia com comunistas. A UDF foi absorvida, no Estado Novo, pela Universidade do Brasil (atual UFRJ) e seus professores passaram a ser contratados com crivo sobre suas convicções ideológicas e religiosas, sob a lupa de Alceu Amoroso Lima e do Cardeal Leme.

O projeto de Anísio Teixeira retornou revigorado, décadas depois, em Brasília, no projeto de Escola Parque, de tempo integral, e com Darcy Ribeiro, com a Universidade de Brasília. Nova ditadura, a de 1964, interrompeu o experimento.

A educação no Brasil, sucessivamente golpeada pelo autoritarismo, em períodos democráticos é bloqueada quando pretende avançar. É por isso que ela se arrasta vagarosamente. A primeira Lei de Diretrizes e Bases só foi promulgada em 1961, sendo que estava prevista desde a Constituição de 1934 (na forma de um Plano Nacional de Educação). Foram 13 anos de tramitação, desde o envio de seu projeto, em 1948. A segunda LDB, estabelecida pela Constituição de 1988, só chegaria à sua redação final em 1996.

A institucionalização das regras nacionais para a educação é sempre muito lenta. Isso nada tem a ver com democracia e tempo de debate. Pelo contrário. Esses projetos são deliberadamente entregues a uma tramitação modorrenta, com parlamentares que se esmeram por mantê-los em total monotonia, enquanto agridem a compreensão pública com polêmicas disparatadas. Atiram para todos os lados em questões pontuais, enquanto agem solenemente em prol do silêncio de cemitério, trilha sonora mais comum do debate sobre os rumos da educação.

Enquanto esperamos que o MEC seja rápido para corrigir seus erros e evitar que eles se repitam (como no caso do 10-7=4), é preciso ter clareza dos grandes desafios que se tem pela frente. O importante já não é apenas superá-los, evitando retrocessos, mas fazê-lo ainda mais rapidamente. O atraso histórico amargado pelo sistema público de educação é de tal monta que mesmo alguns resultados exuberantes colecionados nos últimos anos deixam a sensação de uma vitória de Pirro para professores e estudantes.

Mais do que dar continuidade ao que foi feito, seria hora de uma guinada.

Antonio Lassance (CM)  - pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política. As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.

O trabalho acabou?

 
Desde a falência das experiências socialistas do século 20, seladas pela queda do muro de Berlim, em 1989, muitos perderam a esperança num futuro, livre, justo e solidário. Muitos teóricos intelectuais, chefes de partido ou aguerridos militantes de esquerda se apressaram em dizer que o socialismo acabou, que a história chegou ao fim. E, com isso, as classes e a luta de classes teriam acabado. Nesta toada, quase todos os partidos comunistas esqueceram suas raízes e logo mudaram até de nome. O mesmo aconteceu com os partidos socialistas. A visão de muitos ex-esquerdas sejam estes professores-doutores, burocratas da esquerda bem comportada ou antigos militantes radicais, pode se resumir a três "adeus": adeus ao trabalho, adeus à luta de classes, adeus ao socialismo.

Mas o trabalho continua e com ele a luta de classes. A realidade mostra isso. Aumento da exploração, dos acidentes com mortes e resposta com revoltas e greves. Como acabou o trabalho no Brasil? Em cada obra das grandes usinas há mais de 50 mil peões. Só na construção da refinaria Abreu e Lima, em Suape/PE trabalham 24 mil homens. E os automóveis, quem os constroem? São 6 mil operários na Volks de Taubaté/SP, 8,5 mil na Ford de Camaçari/BA, quase 17 mil na Fiat de Betim/MG e 13 mil na Mercedes de São Bernardo, além de outras centenas de milhares de operários de todo tipo.

Esses trabalhadores são explorados como 30, 40 ou 60 anos atrás e além do mais perderam direitos conquistados com décadas de lutas.

As mortes por acidentes de trabalho continuam no país inteiro. Somente na Cemig, em Minas Gerais, em 2011, o Sindieletro/MG denunciou cinco acidentes fatais. Em Pernambuco, informações do INSS revelam que no triênio 2007/2009, houveram 51 mil acidentes com 241 mortes de operários. Na construção civil do Espírito Santo, em 2010, foram 12 acidentes fatais.

E por que estas mortes? Pela mesma razão que as empreiteiras amontoam "seus" trabalhadores em chiqueiros chamados de alojamentos e pagam salários de miséria.
Esses números e essas mortes derrubam aqueles três "adeus".

A exploração continua e a luta de classes vai continuar. É só olhar as greves que pipocam no Brasil inteiro, as greves e revoltas na Espanha, no Egito e no mundo todo. O que falta, hoje, mundialmente, é a retomada da proposta do socialismo, como única saída deste tipo de sociedade construída por trabalhadores e trabalhadoras, mas que está a serviço de um punhado de beneficiados deste sistema.

Por Vito Giannotti - Brasil de Fato

Eleições limpas no FMI

 
Cem das organizações ativistas mais importantes do planeta (incluindo a Oxfam, Action Aid ou o Bretton Woods Project) remeteram ao Conselho do FMI uma carta solicitando que o processo de eleição da nova direção geral da instituição seja aberto e democrático e que esteja baseado nos méritos do/a candidato/a e não no ‘músculo financeiro' de seus padrinhos. Dito de outro modo, justamente o contrário do que propuseram em bloco os países europeus, com a candidatura de Christine Lagarde.

O FMI –juntamente com outras instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial- conserva uma democracia de tipo colonialista, na qual um grupo de brancos ocidentais e endinheirados decide a sorte da maioria a golpe de ações. O conjunto de países europeus (representados de forma individual) conserva 32% das ações dessa instituição, seguido pelos Estados Unidos, com 16,7%. Graças a esse poder, ambas potências repartiram entre si, durante mais de meio século, as direções do FMI e do Banco Mundial, do mesmo modo que as gangues repartem entre si os territórios que dominarão.

É difícil exagerar a influência extraordinária que têm exercido a partir desses cargos sobre o destino de milhões de pessoas em dezenas de países empobrecidos, impondo medidas draconianas, como o recorte em saúde ou em educação, de forma que em nenhuma hipótese seria aceito em seus próprios países.

O problema é que, desde 1944, o mundo mudou um pouco e a Europa parece ser a única que ainda não percebeu isso. Várias das grandes potências emergentes (Brasil, Índia, China, Rússia e África do Sul) têm exigido um "baralho novo" e uma mudança nas regras. Da mesma forma que as ONGs, querem um processo democrático e transparente, que poderia ser solucionado, por exemplo, exigindo uma Supla maioria de ações e países membros (dos 187 que o compõem), bem como audiências públicas que incluam a participação de outras organizações internacionais e não governamentais.

Porém, não basta melhorar o procedimento. Isso que denominamos vagamente "os méritos" do/a candidato/a esconde interpretações muito diferentes. Para a Europa e para os Estados Unidos, o FMI deve continuar sendo o "cão de guarda" da ortodoxia econômica, imposta desde fora, quando seja necessário. Apesar de sua fama de dirigente progressista, Strauss Kahn não foi uma exceção a essa regra. Como recorda P. Chowla no blog IMFboss.org, três de cada quatro acordos promovidos pelo FMI como resposta à crise e à recessão econômica continham políticas "pró-cíclicas" (isto é, lavagens fiscais, como as aplicadas na Grécia). Os movimentos dessa instituição nas grandes reformas pendentes, como a fiscalidade internacional ou a transparência e o controle do sistema financeiro têm sido bastante menos que impressionantes.

Nos alegramos com o cosmopolitismo da candidata europeia; porém, esperamos que o novo/a diretor/a geral do FMI seja eleito/a por outros méritos, incluindo a independência política e a legitimidade moral. Muito particularmente, por sua capacidade de compreender que até agora essa instituição financeira tem sido uma parte muito mais importante do problema do que da solução.

Os detalhes do novo procedimento proposto pelas 100 ONGs estão disponíveis no documento

Fonte: Gonzalo Fanjul - Adital
Heading for the Right Choice: A professional approach to selecting the IMF boss.

Peru e a guinada à esquerda na AL

 
A vitória de Ollanta Humala nas eleições deste domingo tem um significado que transcende as fronteiras do Peru. Ela confirma a guinada à esquerda da América Latina – continente que foi laboratório da devastação neoliberal nos anos 1980/1990 e que hoje é a vanguarda mundial na luta pela superação deste modelo destrutivo e regressivo. Tariq Ali, no livro "Piratas do Caribe", e Emir Sader, na obra "A nova toupeira", descrevem com maestria esta virada histórica.

Esta onda progressista, marcada pela centralidade da disputa eleitoral, teve início com a vitória de Hugo Chávez, um militar rebelde, em dezembro de 1998. Na sequência, ela continuou produzindo cenas inusitadas na região – como a eleição de um líder operário no Brasil (Lula), de nacionalistas na Argentina (Nestor e Cristina Kirchner), de um líder indígena e camponês na Bolívia (Morales), de representantes de organizações guerrilheiras na Nicarágua, El Salvador e Uruguai, de um teólogo da libertação no Paraguai (Lugo), de um economista de esquerda no Equador (Correa).

A derrota dos neoliberais

O Peru expressa bem esta mudança do quadro político na região. No governo de Alberto Fujimori (1990-2000), o país foi vítima de uma cruel ditadura, que implantou a força o modelo neoliberal. Diante da resistência popular, ele deu um golpe, fechou o Congresso Nacional, interveio na Justiça e ampliou seu mandato. No final, com o país devastado – via privatizações e exclusão social –, Fujimori foi acusado de corrupção e hoje cumpre pena de 23 anos de prisão.

Os seus sucessores, Alejandro Toledo (2001-2006) e Alan Garcia (2006-2011), porém, deram continuidade ao projeto neoliberal. Com base no saque das riquezas minerais, a economia até cresceu, mas não beneficiou a população mais carente. Os ricos ficaram mais ricos, e os pobres afundaram na miséria. Como afirmou Ollanta Humala, já com a vitória garantida, a sua eleição foi um recado dos peruanos que não aceitam mais as injustiças sociais. (Altamiro Borges)