segunda-feira, 6 de junho de 2011

Golpe de estado financeiro ameaça democracia europeia


O recente discurso do presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, carrega consigo o programa de um verdadeiro golpe de estado financeiro contra a democracia europeia. O que está em questão é se Grécia, Irlanda, Espanha, Portugal e o resto da Europa terminarão por destruir o reformismo democrático e derivar para uma oligarquia financeira. O objetivo financeiro é evitar os parlamentos para exigir um “consenso” que dê prioridade aos credores estrangeiros a custo do conjunto da economia. Exige-se dos parlamentos que abdiquem de seu poder político legislativo em favor dos banqueiros. O artigo é de Michael Hudson.

Pouco depois de o Partido Socialista ter vencido as eleições para a Assembleia Nacional grega no outono de 2009, saltou aos olhos que as finanças públicas do país estavam em frangalhos. Em maio de 2010, o presidente francês Nicolas Sarkozy encabeçou a proposta de arredondar para cima, até os 120 bilhões de euros, o volume de dinheiro que os governos europeus teriam que usar para subsidiar o nada progressivo sistema fiscal grego que afundou o país na dívida. Uma dívida que os bancos de Wall Street tinham ajudado a esconder com técnicas contábeis dignas da Enron.

O sistema fiscal grego operava como um tubo sugador de recitas para pagar os bancos alemães e franceses que compravam títulos públicos gregos (com suculentas e crescentes taxas de juros). Os banqueiros estão se movendo agora para formalizar esse papel, uma condição oficial para ir cobrando os títulos gregos à medida que eles vão vencendo e esticar assim a corda financeira de curto prazo sob a qual a Grécia está operando agora. Os atuais portadores desses títulos obterão enormes lucros se este plano tiver êxito.

A agência Moody’s rebaixou a classificação da dívida grega a níveis de papeis podres, no dia 1° de junho (passando de B1, que já era um nível muito baixo, para Caa1), estimando em 50% a possibilidade de quebra. O rebaixamento serve para apertar ainda mais o cinto do governo grego. Independentemente do que façam as autoridades gregas, observou a Moody’s, “aumenta a probabilidade de que os sustentadores da Grécia (FMI, Banco Central Europeu e a Comissão da União Europeia: a “Troika”) necessitem, em algum momento futuro, da participação de credores privados em uma reestruturação da dívida como condição necessária para encontrar apoio financeiro.

Lançar a Grécia em uma guerra de classes para salvar a banca privada alemã e francesa
A condição necessária para que arranque o novo pacote “reformado” de empréstimos é que a Grécia entre numa guerra de classes aumentando seus impostos e rebaixando seu gasto social – incluindo as pensões do setor privado – e liquide e ponha em leilão terras públicas, enclaves turísticos, ilhas, portos, água e sistemas de esgoto. Isso aumentará o custo de vida e o custo para fazer negócios, atingindo a já limitada competitividade das exportações do país. Os banqueiros apresentam isso farisaicamente como um “resgate” das finanças gregas.

O que realmente foi resgatado há um ano, em maio de 2010, além de outros investidores estrangeiros, foram os bancos franceses, detentores de um bilhão de euros em títulos gregos e os bancos alemães, detentores de outros 23 bilhões. O problema era como conseguir que os gregos apoiassem a iniciativa. O recém eleito primeiro ministro socialista George Papandreu parecia capaz de entregar a seu eleitorado as linhas seguidas pelos neoliberais partidos socialdemocratas e trabalhistas em toda a Europa: privatizar as infraestruturas básicas e comprometer receitas futuras para pagar os banqueiros.

Nunca houve melhor ocasião que esta para servir-se da corda financeira e despojar de propriedades e apertar o garrote fiscal. Os banqueiros, por sua parte, estavam prontos a conceder empréstimos para financiar compras privadas de loterias e jogos públicos, sistemas de telefonia, portos, sistemas de transporte e outras oportunidades de monopólio. E no que diz respeito às próprias classes ricas gregas, o pacote de créditos da União Europeia conseguiria manter o país na eurozona o suficiente para permitir que retirassem seu dinheiro do país, antes que chegue o momento em que a Grécia se veja forçada a abandonar o euro e voltar a uma dracma rapidamente desvalorizada. Até que não chegue a esse ponto de regresso a uma moeda própria em queda, a Grécia tem que seguir a política báltica e irlandesa de “desvalorização interna”, isto é: de deflação salarial e corte de gastos públicos – exceto para pagar o setor financeiro – a fim de rebaixar o emprego e, assim, os níveis salariais.

O que realmente resulta desvalorizado nos programas de austeridade ou de desvalorização monetária é o preço do trabalho. Ou seja, o principal custo interno, posto que há um preço mundial comum para combustíveis e minerais, bens de consumo, alimentos e até crédito. Se os salários não podem ser reduzidos pela via da desvalorização interna (com um desemprego que, começando pelo setor público, induza quedas salariais), a desvalorização da moeda fará o trabalho até o fim.

É assim que a guerra dos países credores contra os países devedores na Europa torna-se uma guerra de classes. Mas para impor tamanha reforma neoliberal, é preciso que a pressão externa passe ao largo dos parlamentos nacionais democraticamente eleitos. Pois não é de se esperar que os eleitores de todos os países acabem sendo tão passivos como os da Letônia e da Irlanda quando se age manifestamente contra os seus interesses.

A maioria da população grega se dá conta do que está acontecendo a medida que esse cenário se desenhava ao longo de 2010. “O próprio Papandreu admitiu que não tem voz nas medidas econômicas que são lançadas contra nós”, disse Manolis Glezos, representante da esquerda. “Foram decididas pela União Europeia e pelo FMI. Agora, estamos sob supervisão externa, o que coloca questões sobre nossa independência econômica, militar e política”. No lado da direita política, o dirigente conservador Antonis Samaras disse, dia 27 de maio, quando avançavam as negociações com a troika europeia: “não estamos de acordo com uma política que mata nossa economia e destrói nossa sociedade...A Grécia só tem uma saída: a renegociação do acordo de resgate (com a UE e o FMI)”.

Mas os credores da UE negam essa possibilidade: rechaçar o acordo, ameaçam, significaria uma retirada de fundos de tamanha gravidade, que causaria um colapso bancário e a anarquia.

Os gregos se negaram a render-se resignadamente. As greves iniciadas pelos sindicatos do setor público logo se converteram em um movimento nacional, o “Eu não pago”: os gregos passaram a se negar a pagar em postos de pedágio nas estradas ou em outros postos de acesso público. A polícia e os fiscais se abstiveram de obrigar a população a pagar. O nascente consenso populista levou o primeiro ministro de Luxemburgo, Jean-Claude Junker a lançar uma ameaça similar aquela que o britânico Gordon Brown levantou contra a Islândia: se a Grécia não cumprir as exigências dos ministros das finanças europeus, será bloqueado o crédito que o FMI acertou para junho. Isso, por sua vez, bloquearia os pagamentos do governo grego aos banqueiros estrangeiros e aos fundos abutres que vêm comprando uma dívida grega cada vez mais depreciada.

Para muitos gregos isso é como se os ministros de finanças ameaçassem dar um tiro nos próprios pés. Se não há dinheiro com que pagar, os portadores estrangeiros de títulos sofreriam, ao menos até que a Grécia conseguisse levantar sua economia. Mas se trata de um grande “se”. O primeiro ministro socialista Papandreu imitou a socialdemocrata islandesa Sigurdardottir pedindo um “consenso” para obedecer aos ministros de finanças da UE. “Os partidos da oposição rechaçaram seu último pacote de austeridade, argumentando que o aperto de cinto acertado em troca de um resgate de 110 bilhões de euros enfraqueceria completamente a economia”.

O que está em questão na Grécia, Irlanda, Espanha, Portugal e no resto da Europa
O que está em questão é se Grécia, Irlanda, Espanha, Portugal e o resto da Europa terminarão por destruir o reformismo democrático e derivar para uma oligarquia financeira. O objetivo financeiro é evitar os parlamentos para exigir um “consenso” que dê prioridade aos credores estrangeiros a custo do conjunto da economia. Exige-se dos parlamentos que abdiquem de seu poder político legislativo. O significado do “mercado livre”, neste momento, é planificação central nas mãos dos banqueiros centrais. Essa é a nova via rumo à servidão pela dívida a que estão levando os “mercados livres” financeirizados: mercados “livres” para que os privatizadores cobrem preços monopolistas por serviços básicos “livres” de regulações de preços e de regulações antioligopólicas, “livres” de limitações ao crédito para proteger os devedores e, sobretudo, “livres” de interferências por parte dos parlamentos eleitos. Em uma perversão da linguagem, chama-se de “alternativa” à servidão ao processo de fixação de preços para os monopólios naturais – transporte, comunicação, loterias – retirados do domínio público. Na verdade, é o caminho da servidão pela dívida rumo a um verdadeiro neofeudalismo financeirizado, que é o que está se desenhando no horizonte do futuro. Essa é a filosofia econômica do nosso tempo.

A concentração do poder financeiro em mãos não democráticas era inerente já ao modo pelo qual começou a se forjar na Europa a planificação centralizada em mãos financeiras. O Banco Central europeu não tem atrás de si nenhum governo eleito que possa arrecadar impostos. A Constituição da UE proíbe ao BCE o resgate de governos. E os artigos do acordo com o FMI proíbem também que esta ofereça apoio fiscal aos déficits orçamentários nacionais. “Um Estado membro podo obter créditos do FMI somente se “for necessário para equilibrar sua balança de pagamentos ou sua posição de reservas”. O problema de Grécia, Irlanda e Portugal não é com as reservas internacionais. O FMI está fazendo empréstimos por problemas orçamentários. E se supõe que não é isso o que deveria fazer.

O Banco Federal alemão disse isso muito claramente em seu informe do mês de março: “Qualquer contribuição financeira do FMI para resolver problemas que não envolvam necessidade de moeda estrangeira – como o financiamento direto de déficits orçamentários – seria incompatível com seu mandato monetário”. O presidente do FMI, Dominique Strauss-Kahn, e o economista chefe, Olivier Blanchard, estão levando o FMI a um território proibido, e não há tribunal de justiça que possa detê-los” (Roland Vaubel, “Europe’s Bailout Politics”, The International Economy, Primavera de 2011, p. 40).

A moral da história é: quando se trata de salvar os banqueiros, ignoram-se as regras a fim de servir a uma “justiça mais alta”, que é a de evitar que os bancos e seus sócios das altas finanças percam dinheiro. O que contrasta vivamente com a política do FMI para os trabalhadores e os “contribuintes”. A luta de classes regressou ao mundo dos negócios: vingativa e, desta vez, com os banqueiros como vencedores.

A UE substituiu os Estados nacionais pela planificação dos banqueiros e, por essa via, a política democrática foi substituída pela oligarquia financeira
A Comunidade Econômica Europeia, que precedeu a atual União Europeia, foi criada por uma geração de dirigentes cujo principal objetivo era por fim às intermináveis guerras intestinas que assolaram a Europa durante mil anos. O objetivo de muitos deles era por fim aos próprios Estados nacionais, na suposição de que são as nações que vão à guerra. O que se esperava era que a democracia econômica derrotaria a mentalidade monárquica e aristocrática, inebriada pela glória e pela conquista.

Internamente, a reforma econômica depuraria as economias europeias do legado das passadas conquistas feudais de territórios e, em geral, de bens comuns públicos. O objetivo era beneficiar o conjunto da população europeia. Esse era o programa reformista da economia política clássica.

A integração europeia começou pelo comércio, a via de menor resistência: a Comunidade do Carvão e Ação promovida por Robert Schuman, em 1952, seguida, em 1957, pela Comunidade Econômica Europeia (CEE, o Mercado Comum). A integração aduaneira comum e a Política Agrícola Comum (PAC) foram complementados com a integração financeira. Mas, na falta de um Parlamento continental real que legislasse, fixasse taxas, protegesse as condições de trabalho, defendesse os consumidores e controlasse os centros bancários extraterritoriais, a planificação central passa para as mãos dos banqueiros e das entidades financeiras. Essa é a consequência de substituir os Estados nacionais pela planificação dos banqueiros. Deste modo, a política democrática foi substituída pela oligarquia financeira.

As finanças como forma de guerra
As finanças são uma forma de guerra. Como na conquista militar, seu objetivo é garantir o controle da terra e das infraestruturas públicas, e impor tributos. Isso envolve ditar leis a seus súditos e concentrar o planejamento social e econômico em mãos centralizadas. Isso é o que está se fazendo agora com meios financeiros, sem o custo, para o agressor, de ter que colocar um exército sobre o campo de batalha. Mas as economias sob ataque podem terminar tão profundamente devastadas pelos rigores financeiros quanto seriam por investidas militares, provocando contração demográfica, encurtamento da média de vida, emigração e fuga de capitais.

E essa ofensiva não é comandada por Estados nacionais como tais, mas sim por uma classe financeira cosmopolita. As finanças sempre foram mais cosmopolitas do que nacionalistas, e sempre procuraram impor suas prioridades e seu poder legislador sobre as democracias parlamentares.

A estratégia financeira, como é a de qualquer monopólio, busca bloquear o poder público regulador ou fiscalizador. Desde a perspectiva financeira, a função ideal do Estado é robustecer e proteger o capital financeiro e o “milagre do juro composto”, que faz com que as fortunas sigam se multiplicando exponencialmente, de modo mais rápido do que a economia pode crescer, até que começa a abocanhar pedaços da economia real, fazendo com ela o mesmo que os credores predatórios e os rentistas fizeram com o Império Romano.

Essa dinâmica financeira é o que ameaça quebrar a Europa de nossos dias. Mas a classe financeira ganhou poder o suficiente para inverter o tabuleiro ideológico e insistir com certo êxito que o que ameaça a unidade Europa são as populações nacionais que atuam resistindo às exigências cosmopolitas do capital financeiro para impor políticas de austeridade aos trabalhadores. Pretende-se que dívidas que já se tornaram impagáveis passem para a contabilidade pública: sem necessidade de batalha militar alguma, cabe dizer; ao menos, os banhos de sangue são coisa do passado.

Do ponto de vista das populações irlandesa e grega (às quais talvez não tardem a se somar a portuguesa e a espanhola), os governos nacionais parlamentares irão se mobilizar para impor os termos de uma rendição incondicional aos planificadores financeiros. Quase poderia se dizer que o ideal é reduzir os parlamentos a regimes títeres locais ao serviço de uma classe financeira cosmopolita que se serve da alavancagem creditícia para se apropriar dos restos do domínio público que costumavam ser chamados de “bens comuns”. Deste modo, estamos entrando em um mundo pós-medieval de fechamentos: um novo movimento impulsionado por uma lei financeira revogadora da lei comum civil e depredadora do bem comum.

Trichet rascunha o programa de um golpe de estado financeiro contra a democracia europeia
Dentro da Europa, o poder financeiro se concentra na Alemanha, França e Holanda. Seus bancos são os maiores detentores de títulos públicos da Grécia, de quem se exige austeridade agora. Seus bancos são também os maiores portadores de títulos dos bancos irlandeses, que já foram resgatados pelos contribuintes irlandeses.

No dia 2 de junho de 2011, o presidente do BCE, Jean-Cluade Trichet rascunhou o esquema adequado para estabelecer o regime de oligarquia financeira por toda a Europa. De modo muito apropriado, anunciou seu plano logo após receber o prêmio Carlos Magno, na Alemanha, o que simbolicamente expressava que a Europa unificou-se, não sobre o fundamento da paz econômica sonhado pelos arquitetos do Mercado Comum nos anos 50, mas sim sobre fundamentos oligárquicos diametralmente opostos.

No início do seu discurso (“Construir a Europa, construir instituições”), Trichet louvou muito oportunamente o Conselho Europeu, dirigido pelo senhor Van Rompuy, e o Eurogrupo dos ministros das finanças, dirigido pelo senhor Juncker, por ter proporcionado direção e impulso. Juntos, formam o que a imprensa popular europeia chama de a “troika” de credores. O discurso do senhor Trichet referiu-se ao “triálogo” entre o Parlamento, a Comissão e o Conselho.

A tarefa da Europa, explicou, era seguir Erasmo a ponto de levá-la mais além de seu “tradicional e restrito conceito de nacionalidade”. O problema da dívida exigiu novas “medidas de política monetária: as chamamos de medidas ‘não standard’, estritamente separadas das decisões ‘standard’, e orientadas a restaurar uma melhor transmissão de nossa política monetária nas presentes condições anormais dos mercados”. O problema atual é o de converter essas condições em uma nova normalidade: a de pagar dívidas e redefinir a solvência para refletir a capacidade de pagamento de uma nação pela via de colocar em leilão a esfera pública.

“Os países que não viveram de acordo com a letra e o espírito das regras experimentaram dificuldades”, observou Trichet. “Via contágio, essas dificuldades acabaram por afetar outros países da unidade europeia. Tornar essas regras mais estritas para prevenir políticas sem sentido é, assim, uma prioridade urgente”. Seu uso do termo “contágio” apresenta como uma enfermidade o que não é senão o governo democrático e a proteção dos devedores. Reminiscente do discurso dos coronéis gregos, com o qual começa o famoso filme “Z”: combater o esquerdismo como se se tratasse de uma praga agrícola a exterminar com o pesticida ideológico adequado. O senhor Trichet fazia sua a retórica dos coronéis. A tarefa dos socialistas gregos é, evidentemente, fazer o que os coronéis e seus sucessores conservadores não puderam fazer: entregar o mundo do trabalho ao domínio de contrarreformas econômicas irreversíveis.
“Há medidas em curso que implicam assistência financeira sob estritas condições, plenamente de acordo com a política do FMI. Sou consciente de que muitos observadores têm reparos e questionam onde essa política nos levará. A linha que separa a solidariedade regional e a responsabilidade individual pode ser apagada caso não se cumpram estritamente as condições postas. Em minha opinião, o apropriado seria prever, no médio prazo, duas etapas para os países em dificuldades. Isso, naturalmente, traria consigo uma mudança do Tratado”.

“Em uma primeira etapa, está justificado garantir ajuda financeira no contexto de um forte programa de ajustes. É apropriado dar aos países uma oportunidade para corrigir por si mesmos a situação e restaurar a estabilidade. Ao mesmo tempo, essa ajuda é do interesse do conjunto da área euro, pois previne a difusão das crises, que poderia provocar danos em outros países”.

“É da maior importância que o ajuste seja feito, que os países – governo e oposição – se unam para garantir o esforço requerido, e que os países que vão fornecer a ajuda supervisionem com muita atenção o desenvolvimento do programa”.

“Mas se um país ainda não está preparado para isso, creio que todos estaremos de acordo que, neste caso, a situação é muito distinta. Seria ir demasiado longe dizer que, nesta segunda etapa, teríamos que dar às autoridades da zona euro uma capacidade de decisão muito mais profunda e autorizada na formação das políticas econômicas do país, se estas seguissem um caminho desastroso? Uma influência direta, muito acima e muito mais além da pura supervisão reforçada do presidente” (o grifo aqui é do autor, M.H.)

O presidente do BCE apresentou aí a premissa política chave de seu programa de reformas (se é que se pode usar essa palavra para fazer de políticas que são precisamente o contrário do programa reformista da ilustração europeia):
“Podemos ver diante de nossos olhos que o pertencimento à União Europeia, e mais ainda à Unidade Monetária Europeia, introduz uma nova compreensão do modo de exercer a soberania. A interdependência significa que os países, de fato, não têm autoridade interna completa. Podem experimentar crises causadas inteiramente pelas absurdas políticas econômicas de outros países”.

“Com um novo conceito de uma segunda etapa poderíamos mudar drasticamente a presente forma de govenrnança baseada na dialética de supervisão, recomendações e sanções. Com o atual conceito, todas as decisões ficam nas mãos do país concernido, mesmo que as recomendações não sejam aplicadas e mesmo que sua atitude gere dificuldades maiores para outros países membros. Com o novo conceito, não só seria possível, como também obrigado em certos casos, que em uma segunda etapa as autoridades europeias – o Conselho, baseado nas propostas da Comissão -, juntamente com o Banco Central europeu, tomassem diretamente decisões aplicáveis à economia em questão”.

“Uma forma de imaginar isso é que as autoridades europeias tivessem direito de veto sobre algumas decisões de políticas econômicas nacionais. Em particular, isso poderia incluir grandes gastos públicos, assim como elementos essências para a competitividade do país...”


Por “políticas econômicas absurdas”, o senhor Trichet entende, por exemplo, a postura de negar-se a pagar dívidas, ou depreciá-las para adequá-las à capacidade de pagamento, sem colocar em leilão o próprio território e privatizar monopólios de serviços públicos. A postura, em resumo, de negar-se a substituir a democracia econômica pelo controle dos banqueiros. Enfiando e retorcendo a faca na longa história do idealismo europeu, Trichet apresenta falsamente sua proposta de golpe de estado financeiro como se ela seguisse o espírito de Jean Monnet, Robert Schuman e outros democratas que promoveram a integração europeia na esperança de criar um mundo mais pacífico: um mundo que deveria ser mais próspero e produtivo, não um mundo baseado no despojo financeiro de ativos.
“Jean Monnet escreveu há 35 anos em suas memórias: ‘Ninguém pode dizer hoje qual será o marco institucional da Europa do futuro por causa da impossibilidade de prever as mudanças que serão provocadas pelas mudanças do presente”.

“Nesta mudança do amanhã, ou do depois do amanhã, seria demasiado ousado prever, no campo econômico, um mercado único, uma moeda única e um banco central único, um ministério das finanças da União europeia? Não necessariamente um ministério de finanças que administre um grande orçamento federal. Mas um ministério de finanças que exerça responsabilidades diretas ao menos em três domínios: primeiro, a supervisão tanto das políticas sociais como das de competitividade, assim das responsabilidades diretas antes mencionadas no concernente a países na ‘segunda etapa’ dentro da área euro; segundo, todas as responsabilidades típicas dos setores executivos relacionados ao setor financeiro integrado da união, assim como no tocante ao acompanhamento da plena integração dos serviços financeiros; e, terceiro, a representação da confederação da união em instituições financeiras internacionais”.

“Husserl concluiu sua conferência de uma maneira visionária: ‘A crise existencial da Europa só pode terminar de duas formas: com a sua renúncia (...) precipitando-se em um espírito de ódio e na barbárie; ou com o seu renascimento a partir do espírito da filosofia, por meio de um heroísmo da razão (...)”.


Como observou meu amigo Marshall Auerback a propósito deste discurso, sua mensagem é bastante familiar como descrição do que está ocorrendo nos Estados Unidos: “É a resposta do Partido Republicano, em Michigan. Toma o controle das cidades em crise governadas por minorias desfavorecidas, tira do poder seus governos democraticamente eleitos e usa de poderes extraordinários para impor austeridade”. Em outras palavras, não há espaço, na União Europeia, para a atuação de nenhuma agência tal como a proposta por Elizabeth Warren para os EUA. Não é esse tipo de integração idealista que aspiram Trichet e o BCE. O que eles querem conduz aos créditos de encerramento do filme “Z”. As coisas proibidas pela Junta de Coronéis incluem: movimentos pacifistas, greves, sindicatos de trabalhadores, homens com cabelo comprido, The Beatles, música moderna e popular, Sófocles, León Tolstoy, Ésquilo, escrever que Sócrates era homossexual, Eugene Ionesco, Jean-Paul Sartre, Anton Chekov, Harold Pinter, Edward Albee, Mark Twain, Samuel Beckett, sociologia, enciclopédias internacionais, imprensa livre e nova matemática. Também foi proibida a letra “Z”, usada como símbolo para recordar que Grigoris Lambrakis e seu espírito de resistência vivem (zi=”ele (Lambrakis) vive”.

No cuidadoso resumo que o Wall Street Journal fez do discurso de Trichet:

“se um país resgatado não se adequa ao programa de ajuste fiscal, então poderia se exigir dele uma ‘segunda etapa’, que possivelmente envolveria dar às autoridades da eurozona uma capacidade de decisão muito mais profunda e autorizada na formação das políticas econômicas do país (...) As autoridades da eurozona – singularmente, suas instituições financeiras, não as instituições democráticas voltadas à proteção dos trabalhadores e dos consumidores, à melhoria da qualidade de vida, etc. – poderiam chegar a ter, sob tal regime, direito de veto sobre certas decisões de política econômicas. Em particular, poderiam vetar grandes gastos públicos e elementos essenciais para a competitividade do país”.

Citando a lúgubre interrogação de Trichet – nesta união do amanhã, será demasiado ousado, no campo econômico, imaginar um ministério de finanças para a união? – o artigo observava que “um ministério assim, não necessariamente disporia de um grande orçamento federal, mas implicaria a supervisão e a apresentação de vetos, e representaria o bloqueio monetário nas instituições financeiras internacionais”.

De acordo com minhas próprias recordações, o idealismo socialista logo depois da II Guerra Mundial via os estados nacionais como instrumentos bélicos. Esta ideologia pacifista eclipsou a ideologia socialista originária de fins do século XIX, que buscava reformar os Estados para tirar o poder legislativo e o poder fiscal das mãos das classes que os dominavam desde que as invasões vikings estabeleceram na Europa o privilégio feudal, a posse absenteísta de terras, o controle financeiro dos monopólios comerciais e, logo em seguida, de modo crescente, o privilégio bancário de criação da moeda.

Como observou recentemente meu colega da Universidade de Missouri, em Kansas, o professor William Black, no blog econômico da UMKC:

“Um dos grandes paradoxos é que os governos da periferia, geralmente orientados para a centro-esquerda, adotaram tão entusiasticamente as receitas ultradireitistas aferradas à ideia de que a austeridade é uma resposta apropriada a uma grande recessão. A razão pela qual partidos de esquerda abraçam recomendações de economistas de ultradireita, cujos dogmas antirregulatórios contribuíram para causar a crise é um dos grandes mistérios da vida. Suas políticas são autodestrutivas economicamente e suicidas politicamente.

A Grécia e a Irlanda se converteram na pedra de toque para saber se as economias serão sacrificadas para pagar umas dívidas que não podem ser pagas. A ameaça que está no horizonte é um intervalo no qual o caminho para a quebra e a austeridade permanente trará consigo o crescente despojo de terras e empresas públicas subtraídas do domínio comum, o crescente desvio de mais e mais receitas dos consumidores para pagar o serviço da dívida, o aumento dos impostos para que os governos paguem aos portadores de títulos públicos e uma crescente proporção das receitas empresariais para pagar banqueiros.

Se isso não é uma guerra, o que é?

(*) Michael Hudson é ex-economista de Wall Street e atualmente um Pesquisador destacado na Universidade do Missouri, Kansas City (UMKC), e presidente do Instituto para o estudo das tendências de longo prazo da economia (Institute for the Study of Long-Term Economic Trends ISLET). É autor de vários livros, incluindo Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire (new ed., Pluto Press, 2002) [Super Imperialismo: A Estratégia Econômica do Império Ameicano] e Trade, Development and Foreign Debt: A History of Theories of Polarization v. Convergence in the World Economy. [Comércio, Desenvolvimento e Dívida Exerna: Uma História das Teorias da Polarização versus Convergência na Economia Mundial

Tradução: Katarina Peixoto - Carta Maior

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