quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Chegou a vez dos indignados nos EUA?

Por John Saxe-Fernández | Cidade do México

Michael Bloomberg, o prefeito de Nova York, advertiu que se a crise do desemprego nos Estados Unidos não for resolvida logo, pode haver protestos nas ruas: “Temos muitos recém-formados que não conseguem encontrar emprego. Foi o que aconteceu no Cairo. Foi o que aconteceu em Madri. Não queremos esse tipo de revolta aqui".

Analistas de diferentes posições, de Thomas Kocham, do MIT, até Immanuel Wallerstein, da Universidade Yale, concordam. O primeiro se diz surpreso que ainda não tenham aparecido sinais mais visíveis de descontentamento. “Nosso povo é muito tolerante, não são inclinados à desordem civil. Mas com esta economia, o tempo está se esgotando”.

Para Wallerstein, a incerteza e o caos estão por toda parte. Ele afirma que é a deterioração do dólar como moeda de reserva mundial é irreversível: era "o último poder real exercido pelos Estados Unidos”, disse Sally Burch. E acrescentou “os danos são reais, a situação dos EUA é séria e não é recuperável”.

No interior, cidades pequenas “estão indo à bancarrota e não conseguem pagar seus aposentados”, enquanto a situação da classe média se deteriora rapidamente. “Aqueles que perdem seus empregos, dificilmente encontram outro, especialmente na faixa entre 40 e 60 anos, chegando até mesmo a perder suas casas”.

Para Wallerstein "a situação nos EUA vai piorar" por causa do freio aos gastos públicos imposto pelos republicanos. Ele prevê uma deterioração ainda maior. "A loucura do Tea Party – adverte – está levando os Estados Unidos, e, portanto, o mundo todo, para um crash”.

O desgaste social e econômico interno é evidente: por quarenta meses seguidos, o desemprego crônico se manteve acima de 9%, como revelado pelo BLS (Bureau of Labor Statistics), cuja metodologia, que considera "ajustes sazonais" e outras manipulações, maquia a realidade para que ela não pareça tão ruim.

A manutenção de um desemprego nesses níveis por um período tão longo não é registrada desde o final da Segunda Guerra Mundial e é comparável à Grande Depressão.

Segundo John Williams, "a gravidade extraordinária e a duração dos choques econômicos dos EUA, durante os últimos três ou quatro anos, têm desestabilizado os ajustes sazonais usados nos cálculos do BLS, em algumas séries estatísticas." Após 1994, houve ajustes na metodologia. Williams lembra que de acordo com o procedimento estatístico utilizado atualmente, depois que alguém está desempregado há mais de um ano, não está mais incluído nas contas do governo!”

Desta forma, "se o desemprego fosse calculado como antes de 1994, então o verdadeiro número de desempregados seria de 22,2%".

Entretanto, além do desemprego crônico e realmente elevado, um estudo realizado por Lawrence Mishel do EPI (Economic Policy Institute) mostra um declínio substancial no patrimônio da classe média e de outros grupos, como os negros, cujos principais bens são suas casas: “O valor da propriedade familiar agora é menor do que era em 1983, há uma geração, enquanto a riqueza dos setores de alta renda teve grande expansão”.

Note-se que esta é uma tendência de longo prazo, que mantém e intensifica a polarização social. Mishel mostra que os 5% de famílias mais ricas absorveram cerca de 82% do crescimento da riqueza total gerada entre 1983 e 2009, enquanto 60% dos domicílios tinham menos recursos do que em 1983. Pior ainda, outros estudos do EPI mostram que o crescimento dos salários está desacelerando de 3,8% até 2007, para 1,8% em maio de 2011.

Os dados dão respaldo ao prognóstico de Wallerstein: "Eu vejo guerras civis em muitos países do norte, especialmente nos EUA, onde a situação é muito pior do que na Europa Ocidental, embora lá também haja chance de guerra, porque há um limite até o qual as pessoas comuns aceitam a degradação de suas possibilidades".

Fonte: Opera Mundi

A invisibilidade dos "indignados"

Por Gilson Caroni Filho - Correio do Brasil

O jogo é repleto de velhos subterfúgios. A grande imprensa, na tentativa de desconstruir o legado do governo Lula, organiza o movimento, mas não pode revelar o sujeito do enunciado. As últimas manifestações contra a corrupção, urdidas nas oficinas do Instituto Millenium, não evidenciam apenas o vazio de uma oposição sem projeto. Vão além. Seus verdadeiros objetivos são por demais ambiciosos para serem expostos à luz do dia. Na verdade, o que se tem em mente é o combate às políticas de redistribuição de renda e os diversos programas de inclusão social levados a cabo nos últimos nove anos de governo petista.
Para tanto, as redações interagem com os “indignados” das redes sociais, apresentados como  protagonistas de uma nova esfera pública singular. Sem organicidade, enraizamento e ojeriza a qualquer coisa que coisa que remeta a práticas políticas transformadoras, os “movimentos espontâneos” são a imagem espelhada de tantos setores que endossam a verdadeira corrupção a ser combatida: aquela que promove a concentração de renda, de terras e a exclusão social, além de assegurar os privilégios das corporações midiáticas.
Mais uma vez, é preciso voltar no tempo para apreender a dinâmica do ocultamento das taxonomias, pressuposto básico para a eficácia do poder simbólico, da capacidade, cada vez mais limitada, de formatar antigas agendas.
Terça-feira, 20 de março de 2007. Mais uma vez, “empenhado” em repor a verdade factual de episódio recente da política brasileira, Ali Kamel, diretor-executivo de jornalismo da TV Globo, voltava à página de “Opinião” do jornal da família Marinho. Desta vez escreveu um artigo que tinha por título “Collor”. Como de hábito, uma redação formalmente correta, escorreita e elegante. Como sempre, uma petição de meias verdades. Algo como um Legacy com problemas no mapa aeronáutico e no painel do tranponder. Se a história tomasse a forma de um Boeing, uma colisão inevitável teria que desaparecer do noticiário do Jornal Nacional.
Dizendo-se chocado com a “reação do Senado ao discurso de estréia de Fernando Collor” na quinta-feira (15/3), o jornalista abria o artigo manifestando indignação com a forma como o ex-presidente classificou seu impeachment: “Uma litania de abusos e preconceitos, uma sucessão de ultrajes e acúmulo de violações das mais comezinhas normas legais”.
Para Kamel, a passividade dos senadores deu margem a uma perigosa releitura da história. Segundo ele, o que Collor queria caracterizar como momento de arbítrio, foi, na verdade, “um exemplo pleno do funcionamento de nossa democracia”. Até aqui não havia o que objetar ao texto do segundo cargo de maior importância na hierarquia da Central Globo de Jornalismo. Os problemas começavam quando, após relato detalhado do funcionamento da CPI e do julgamento de Collor pelo STF, Kamel explicitava o que o levou a escrever o artigo: “A preocupação com os jovens, que não conhecem essa história”. Se a motivação fosse sincera, deveria, então, contar o processo histórico inteiro, não se atendo apenas a seus momentos finais.
Teria que recordar que o ex-presidente foi uma aposta de Roberto Marinho para dar início à desconstrução do Estado, conforme solicitava o receituário neoliberal. O criador do maior conglomerado de mídia e entretenimento do Brasil não hesitou em jogar sujo para assegurar a vitória do “caçador de marajás” em 1989.
A apresentação do debate de Fernando Collor e Luiz Inácio Lula da Silva, às vésperas do segundo turno da eleição presidencial de 1989, é um exemplo dos métodos empregados por Roberto Marinho quando resolvia intervir na política. Em matéria para o Estado de S.Paulo (8/8/2003), José Maria Mayrink revela que…
“…Roberto Marinho não gostou da edição que a Rede Globo fez no noticiário da tarde e determinou que o diretor de jornalismo, Alberico Souza Cruz, reeditasse o material. Seu argumento era que estava parecendo que Lula ganhara o debate quando, de fato, o vencedor havia sido Collor. O episódio provocou uma crise interna na emissora e levou o candidato do PT a dizer que perdeu a eleição por causa da TV Globo“.
Em sua dissertação de mestrado, “Marajás e Caras-Pintadas: a memória do governo Collor nas páginas de O Globo“, o professor e jornalista Luis Felipe Oliveira mostra como a mídia construiu representações identitárias que marcaram o período Collor, da ascensão ao impeachment. Da necessidade de apresentar, acatando a agenda do neoliberalismo ascendente, o serviço público como algo oneroso, inoperante e injusto, nasceu a funcionalidade do “marajá”. Um construto tão eficaz quanto simplificadora.
Para os fins deste artigo, é interessante reproduzir como a Globo afirma suas representações negando o princípio do contraditório. Segundo Luis Felipe…
“…no esforço de representar o marajá, foi preciso evitar que as pessoas identificadas como tal pudessem apresentar ao leitor a sua versão. Nas poucas oportunidades em que permitiu aos acusados o direito de se manifestar, O Globo selecionou e redigiu de tal forma as informações que elas acabavam por corroborar as denúncias das quais os servidores estariam se defendendo. Recursos como este não foram usados apenas com os supostos marajás. Os governadores que não aderiram à caça também eram apresentados nas matérias de O Globo de tal maneira que suas intervenções não faziam efeito”.
O protagonismo da Globo na consolidação da imagem de Collor junto a parcela expressiva do eleitorado foi inegável. Marinho nunca ocultou que escondeu suas cartas. Foi enfático quando declarou à imprensa que “até as acusações, o Collor era para mim motivo de orgulho” (Estado de S.Paulo, 12/9/1992).
Deixemos claro que entre a Globo e Collor não houve relação de causalidade. Um precisava do outro para atingir seus fins. Era um típico caso de afinidade eletiva, formatado do princípio ao fim.
Convém lembrar que as Organizações Globo só abriram espaços para as manifestações públicas quando a sustentabilidade de Collor se tornou inviável. Em momento algum houve inflexão ética. Imolaram um personagem para manter intacto o projeto. Na mobilização pelo impeachment, a conhecida antecipação histórica de Roberto Marinho se fez presente. Os caras-pintadas eram o retorno do movimento estudantil como farsa. A ação política teatralizada neutralizava qualquer possibilidade contra-hegemônica. O espetáculo sobrepujava as contradições históricas. A TV Globo aparecia como vanguarda de um processo que, inicialmente, buscou esvaziar.
Já era possível antever, em meados de 1992, que o saldo final do movimento seria favorável às forças conservadoras. O clamor pela ética, quando acompanhado de vazio político, sempre produz um vaudeville burguês. A edição doJornal Nacional de 2/10/1992, dia do impeachment, foi o modelo acabado da informação espetacularizada. Mostrou multidões concentradas em diversas capitais e terminou ao som de Alegria, Alegria, de Caetano Veloso.
Ainda que reposta parcialmente, a história da Globo e seu candidato talvez explique melhor porque, segundo Kamel, “este é um país em que o decoro pode ser quebrado sem infringir o Código Penal”. Sem meias verdades, encontraremos as digitais do império de Roberto Marinho no que há de mais indecoroso no Brasil. Quem sabe, até o próprio DNA do monopólio informativo.
E que nenhum leitor pense que, passados 18 anos, a Globo atualizou seus métodos. Continua fiel seguidora da velha sentença de Nélson Rodrigues: “Se as versões contrariam os fatos, pior para os fatos.”  Nos critérios de noticiabilidade da emissora não há lugar para fiascos.
Pior para os gatos-pingados que, no vazio de suas palavras de ordem, perdidos no centro do Rio de Janeiro, ficaram no limbo das editorias que tanto apostaram no êxito das articulações. Os caras-pintadas de 20 de setembro de 2011 conheceram a invisibilidade do próprio fracasso.Foi patético, mas de um didatismo exemplar.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista de Carta Maior e colaborador do Correio do Brasil e do Jornal do Brasil.

Infame Entrega de Olga Benário e Sabo ao Nazismo

Diorge Konrad * (Vermelho)


Em abril de 1935, clandestinamente, Luiz Carlos Prestes e Olga Benário chegaram ao Brasil. Ele com o passaporte em nome de Antônio Villar e ela, como sua mulher, chamando-se Maria Bergner Villar. Na mesma época, ingressaram no País os argentinos Rodolfo e Carmen Ghioldi, os alemães Arthur Ernst e Elise Saborowski Ewert, o belga Leon Julles Vallé e o norte-americano Victor Allan Baron, entre outros, todos integrantes da III Internacional Comunista (IC), todos para apoiar e construir o movimento revolucionário em curso.

A influência da Internacional na Aliança Nacional Libertadora (ANL), a frente antifascista, antiimperialista e anti-latifundiária criada no início do ano, logo se faria sentir. Como demonstra a historiadora Anita Prestes, por sugestão da IC, Prestes lançou a palavra de ordem do Governo Nacional Popular Revolucionário, conquistando a adesão da ANL e de seus seguidores.[1] Porém, a direção do Partido Comunista do Brasil  (PCB) que se mantivera fiel à tese de “poder soviético”, só na segunda metade de maio, após a realização do pleno do Comitê Central do Partido, passou a seguir a nova orientação da IC para a formação das frentes populares.

Decretada a ilegalidade da ANL pelo Presidente Getúlio Vargas, em 11 de julho, a decisão do PCB foi construir a Insurreição Nacional-Libertadora de 1935. Este processo já é bastante conhecido: o levante ocorrido em novembro de 1935 fracassou, desencadeando um violento processo de repressão, de prisões e de exílios dos que integraram a ANL, perseguidos pelos Estados de Sítio e de Guerra, pela criação do Tribunal de Segurança Nacional (TSN) e da Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo (CNRC). Em decorrência da intensa perseguição policial, Prestes e Olga foram presos em 5 de março do ano seguinte.  Logo, começaram as mobilizações nacionais e internacionais para a liberdade do casal.

Cerca de 75 anos atrás, a União Feminina do Brasil (UFB), criada na esteira da ANL, enviou carta para Darci Vargas, a mulher de Getúlio.[2] A missiva pedia para que intercedesse contra a possível deportação de Olga Benário, então grávida de sete meses de Anita Leocádia Prestes. Olga, judia e comunista, sendo entregue ao governo nazista, correria grande risco de vida. Naquele momento, também eram ameaçadas de deportação a alemã Elise Saborowski, a Sabo, e a argentina Carmen Ghioldi, incursas no artigo 15 da Lei de Segurança Nacional (LSN) pela participação na Insurreição Comunista de 1935. O artigo 15 da LSN estabelecia que a União poderia expulsar do território nacional os estrangeiros “perigosos à ordem pública ou nocivos aos interesses do País”.

Mas a deportação das militantes estrangeiras já estava praticamente decidida pelo governo, de tal forma que, Heitor Lima, professor de Direito da Universidade do Brasil, foi constituído advogado de Olga Benário para a sua defesa. Lima se encontrava regularmente com o advogado e delegado Bellens Porto, responsável pelo inquérito dos acontecimentos de novembro de 1935, e com o capitão e delegado de Segurança Política e Social, Miranda Corrêa.

Ainda em 17 de julho, Heitor Lima havia escrito carta para Filinto Müller, reclamando do “ranço da bacharelice” de Bellens Porto, o qual impedia que recursos financeiros chegassem até ela para auxílio de sua alimentação e ao próprio advogado para a defesa.[3]
Hermes Lima também escrevera para Darci Vargas, em 18 de junho, solicitando para a mulher de Vargas que ela poderia ser “apta a perceber os problemas femininos”, devido “aos sentimentos maternais da primeira dama da sociedade brasileira”, interferindo na intermediação, junto ao Presidente da República, para chegar até Olga uma passagem de primeira classe, a fim de que a sua cliente pudesse cercar-se “durante a travessia e no porto de desembarque, dos cuidados exigidos pelo seu delicadíssimo estado de saúde”, preservando assim a vida do filho que iria nascer. Nem Hermes Lima tinha dimensão do perigo de vida que Olga corria.

Esta carta, definitivamente, derruba a tese de que Getúlio Vargas não sabia da deportação de Olga e da sua entrega a Gestapo. [4] Entretanto, em 23 de setembro de 1936, na calada da noite, Olga Benário e Sabo foram embarcadas em navio com destino às prisões da Gestapo, em Berlim, vindo a morrer em campo de concentração, em 1942, enquanto Prestes somente foi libertado em 1945.
75 anos depois, os revolucionários do mundo continuam prestando homenagens a Olga Benário, a Elise Saborowski e a todas as mulheres que deram suas vidas pelo socialismo. Não fosse a infame entrega das duas ao nazismo, como a de Luiz Carlos Prestes, suas trajetórias poderiam ter tido vida longa no também longo século XX brasileiro.

* Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de História da UFSM, Doutor em História Social do Trabalho pela UNICAMP. 
Notas
[1] PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes e a Aliança Nacional Libertadora. Os caminhos da luta antifascista no Brasil (1934/1935). Petrópolis: Vozes, 1997, p. 110-1.
[2] Cf. Arquivo Flores da Cunha, FC 32.00.00 – Situação Política Nacional – 1935 a 1937, doc. II-29, CPDOC/FGV.
[3] Cf. Arquivo Filinto Müller, FM 33.03.23, 1933 a 1939 – Presos e Instituições Penitenciárias, doc. I-69, CPDOC/FGV.
[4] Ver a carta no Arquivo Getúlio Vargas, GV 36.06.18. doc. XXII-11, Rolo 4, CPDOC/FGV.

Os sinhozinhos vão a Paris

Por Rodrigo Vianna, no blog Escrevinhador:

O Eduardo Guimarães já havia escrito sobre o comportamento patético de jornalistas brasileiros em Paris. Meus colegas (!) parecem ter vergonha do presidente que tivemos durante 8 anos. Ou então, querem agradar aos patrões. Numa entrevista coletiva com o diretor da “Sciences Po” (instituição francesa que vai dar um título “honoris causa” a Lula), repórteres brasileiros pareciam enojados: por que Lula vai ganhar a honraria? “Ele não é um dos nossos”.

Qualquer presidente merece sempre tratamento crítico. E é nisso que os jornalistas vão se apegar para explicar o comportamento patético em Paris. Mas o que ocorreu lá foi diferente. Foi a manifestação de uma doença social brasileira. Doença que é mais grave entre esse batalhão raivoso que não suporta as 3 derrotas seguidas sofridas em 2002, 2006 e 2010.

Poder-se-ia (pronto, com ridículas mesóclises os brasileiros mostram que foram à Universidade, feito Janio Quadros) atribuir as perguntas ridículas em Paris a um certo mau-humor. O sujeito vai a Paris, vê aquela cidade maravilhosa, e fica de mau-humor. Sei. Na verdade, trata-se da herança escravocrata que está impregnada em tantos de nós brasileiros. A turma da Senzala só pode entrar na Casa-Grande se for “criado da casa”. Lula entrou na Casa-Grande pela porta da frente. Imperdoável.

Mas o relato fica mais eloquente na descrição do jornalista argentino do “Página 12″, que também estava lá. Normalmente, não gosto de argentino falando mal do Brasil. Dessa vez, é diferente. Ele fala mal da nossa imprensa trôpega, filha ideológica da Casa-Grande. Expõe o ridículo das perguntas feitas pelos repórteres brasileiros. E a classe do professor francês ao respondê-las. Na verdade, a descrição feita pelo “Página 12″ não é uma crítica ao Brasil. Ao contrário: é um tremendo elogio!

Apesar dessa imprensa, o Brasil elegeu Lula 2 vezes. O Brasil derrotou a mentalidade escravocrata que domina nossa imprensa. Derrotou as capas da “Veja”. Derrotou Ali Kamel e sua obsessão de relativizar essa história de “preconceito racial”. Derrotou a família Frias (num almoço na “Folha, na campanha de 2002, Otavinho tentou humilhar Lula pelo fato de o líder o petista não ter diploma e não falar inglês). Derrotou a mentalidade de senhor de engenho que domina muitas redações brasileiras.

Mas os derrotados insistem.

A doutrina Kassab está pegando

Kassab criou um mote genial para o PSD: “Não é de esquerda, de direita e nem de centro”, diz ele, para definir o indefinível. O PSD surge para ser situação em toda parte, pouco importando quem esteja por cima. O que importa é estar por cima. O partido nasce como situação em 18 estados, em coligações que abrangem o PT, o PMDB, o PSDB e o PSB.

Há muita coisa em comum entre o surgimento do Partido Social Democrático (PSD), do prefeito Gilberto Kassab, e a instalação da chamada Comissão da Verdade, aprovada pela Câmara dos Deputados. Elas vão muito além de uma proximidade no tempo e no espaço. Trata-se da volta da fórmula que possibilita a polos contrários quase nunca criarem curto-circuito no Brasil. Comecemos pelo PSD.

Kassab criou um mote genial para a agremiação: “Não é de esquerda, de direita e nem de centro”, diz ele, para definir o indefinível. O PSD surge para ser situação em toda parte, pouco importando quem esteja por cima. O que importa é estar por cima. O partido nasce como situação em 18 estados, em coligações que abrangem o PT, o PMDB, o PSDB e o PSB. Em várias localidades, a legenda alia-se ao PCdoB, ao PV e ao DEM.

Kassab, talvez sem querer, detonou uma verdadeira reestruturação partidária que pode balizar a vida institucional nos próximos anos. Há o rubicão do registro a ser obtido no início de outubro, é verdade. Mas nada indica que o alcaide paulistano parará por aí.

Político apagado até ser reinventado por José Serra, que o escolheu para vice-prefeito sua chapa em 2006, Kassab deixa de ser uma expressão local para fazer articulações mais altas. Suas possibilidades só frutificaram diante da virtual falência dos partidos mais claramente identificados com a direita no Brasil. O fato não se deveu a uma derrota, mas a um acerto.

Aliança de contrários
Os governos do PT no plano federal tiveram a notável característica dei atrair e abrigar contrários na composição do governo e da “base aliada”. Ninguém mais se espanta de ver contemplados no imenso guarda chuva oficial políticos de primeira linha da ditadura militar (1964-85), como o senador José Sarney, destacadas lideranças ruralistas, como a senadora Katia Abreu, representantes do grande capital, como Jorge Gerdau Johannpeter e Henrique Meirelles, sindicalistas da CUT, como Arthur Henrique, lideranças do MST, como o deputado Walmir Assunção e um grupo trotskista, como a corrente O Trabalho. Não é algo novo. Getulio Vargas já cativara latifundiários do PSD, sindicalistas do PTB e do PCB, dirigentes industriais e correntes nacionalistas.

A questão está em definir que tipo de projeto poderia galvanizar setores que, teoricamente, teriam interesses díspares. Como unir os que vivem da especulação, a grande indústria, o agronegócio exportador, a nata do movimento sindical, os trabalhadores sem terra e os miseráveis do país?

Somente com uma ação de governo que satisfaça os poderosos, ofereça melhorias aos fracos e amorteça demandas sociais agudas com paliativos eficazes. E, especialmente, que não imponha perdas aos primeiros. É uma ação sofisticada, que demanda crescimento econômico, obtido através de mais ingresso de recursos externos – via diversificação de exportações e capacidade de atrair investimentos em moeda forte – e alargamento do mercado interno. Lula colheu imenso sucesso ao realizar isso tudo sem mexer nos fundamentos da política econômica de seu antecessor. Mesmo a distribuição desigual de seus saldos atenua demandas seculares em um país de imensas disparidades sociais.

Mudança sem transformação
Uma política capaz de contemplar tais ações é uma política que muda sem transformar. Que encontra brechas para alargar o modelo econômico vigente sem tocar em seus pilares. Assim, o crescimento do mercado interno se faz principalmente através da expansão de crédito. Os números do Banco Central são eloquentes: de pouco menos de 20% em julho de 2004, o total de crédito ofertado na economia chegou a 45,7% do PIB em junho de 2010. Os empréstimos do BNDES, com juros subsidiados (TJLP) de 6% ao ano, saltaram de R$ 35,1 bilhões em 2003, para R$ 140 bilhões em 2010. A isso se somam aumentos reais no salário mínimo, políticas sociais focadas e expansão do emprego, possibilitados pela expansão econômica. São avanços? Sim, são avanços notáveis!

Ao mesmo tempo, não há reforma agrária, a transferência de recursos ao setor financeiro, via pagamento de juros, bate recordes e o governo anuncia a volta das privatizações, através das concessões dos aeroportos à iniciativa privada.

A representação tradicional da direita brasileira – PSDB, DEM e PPS - ficou sem discurso, sem bandeira e, pior, sem base social. Seu eleitorado tradicional definhou. Os setores mais pobres e desorganizados mudaram o voto com a melhoria de seu padrão de vida. A essa direita, que não vive longe da máquina pública, dos financiamentos e dos cargos resta a saída de aderir ao governo. O PSD é a ponte para a adesão sem culpa e sem turbulências. É uma espécie de câmara de descompressão, que adapta interesses e amolda demandas. Mais do que o PMDB, que é ao mesmo tempo situação e oposição, o PSD pode ser a métrica da elasticidade de propósitos, sem que isso salte muito à vista.

Como classificar uma política de governo que abrigue tal conduta? Ela certamente não é de esquerda. Ao mesmo tempo, quando se olha o que os ultraliberais brasileiros pretendem – como na reunião de ex-integrantes de equipes econômicas, realizada há pouco mais de um mês no Instituto FHC -, podemos concluir que tampouco o governo pratica uma política de direita. Alguns aspectos poderiam ser classificados como centristas. O fato é que o mote de Gilberto Kassab – “nem de esquerda, nem de direita e nem de centro” – parece ter contaminado a ação oficial.

Tudo funcionará se ninguém fizer marola.

Evitar marolas
Uma das marolas significativas pode ser representada pela apuração dos crimes da ditadura na Comissão da Verdade. Não apenas vários políticos do regime militar seguem na ativa, como setores do empresariado que financiam campanhas eleitorais de diversos partidos apoiaram e financiaram a tortura.

Se for fundo na apuração do passado, a Comissão vai mexer no presente.

Assim, é urgente monitorar seus passos, restringir suas atribuições, limitar suas iniciativas e dispersar seus objetivos para que suas conclusões não sejam incômodas. Tenta-se fazer dela o que o filósofo esloveno Slavoj Zizek fala sobre os novos tempos, em seu livro Bem vindo ao deserto do real (Boitempo, 2003):

“No mercado atual, encontramos uma série ampla de produtos desprovidos de suas propriedades malignas: café sem cafeína, cremes sem gordura, cerveja sem álcool… e a lista continua: que tal sexo virtual enquanto sexo sem sexo, a doutrina de Colin Powell da guerra sem baixas (do nosso lado, é claro) enquanto guerra sem guerra, a redefinição contemporânea da política como arte da administração especializada enquanto política sem política”...

Analogamente, podemos dizer que se pretende uma Comissão da Verdade sem “propriedades malignas”. Uma Comissão que não acuse, não incomode e não puna. Uma Comissão que siga o exemplo do PSD e não crie problemas à esquerda, à direita ou ao centro.

Se isso acontecer, o Brasil perderá a grande chance de esclarecer não apenas o que ocorreu naqueles anos terríveis, mas de jogar luz em grandes acordos atuais. Mudar tal situação é possível apenas se houver muita pressão da sociedade. Caso ela tenha sucesso, esquerda, direita e centro podem voltar a ter contornos nítidos como sempre tiveram e haverá avanços significativos na vida nacional. Caso contrário, a doutrina Kassab triunfará...

Os escravistas contra Lula

 

Em meio ao debate sobre a crise econômica internacional, Lula chegou a França. Seria bom que soubesse que, antes de receber o doutorado Honoris Causa da Sciences Po, deveria pedir desculpas aos elitistas de seu país. Um trabalhador metalúrgico não pode ser presidente. Se por alguma casualidade chegou ao Planalto, agora deveria guardar recato. No Brasil, a casa grande das fazendas estava reservada aos proprietários de terras e escravos. Assim, Lula, agora, silêncio, por favor. Os da casa grande estão enojados. O artigo é de Martín Granovsky, do Página/12.

Podem pronunciar “sians po”. É, mais ou menos, a fonética de “sciences politiques”. E dizer Sciences Po basta para referir o encaixe perfeito de duas estruturas: a Fundação nacional de Ciências Políticas da França e o Instituto de Estudos Políticos de Paris. Não é difícil pronunciar “sians po”. O difícil é entender, a esta altura do século XXI, como as ideias escravocratas seguem permeando os integrantes das elites sul-americanas. Na tarde desta terça, Richar Descoings, diretor da Sciences Po, entregará pela primeira vez o doutorado Honoris Causa a um latino-americano: o ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva. Descoings falará e, é claro, Lula também.

Para explicar bem sua iniciativa, o diretor convocou uma reunião em seu escritório na rua Saint Guillaume, muito perto da igreja de Saint Germain des Pres. Meter-se na cozinha sempre é interessante. Se alguém passa por Paris para participar como expositor de duas atividades acadêmicas, uma sobre a situação política argentina e outra sobre as relações entre Argentina e Brasil, não está mal que se meta na cozinha de Sciences Po.

Pareceu o mesmo à historiadora Diana Quattrocchi Woisson, que dirige em Paris o Observatório sobre a Argentina Contemporânea, é diretora do Instituto das Américas e foi quem teve a ideia de organizar as duas atividades acadêmicas sobre a Argentina e o Brasil, das quais também participou o economista e historiador Mario Rapoport, um dos fundadores do Plano Fênix há dez anos.

Naturalmente, para escutar Descoings foram citados vários colegas brasileiros. O professor Descoings quis ser amável e didático. Sciences Po tem uma cátedra de Mercosul, os estudantes brasileiros vão cada vez mais para a França, Lula não saiu da elite tradicional do Brasil, mas chegou ao máximo nível de responsabilidade e aplicou planos de alta eficiência social.

Um dos colegas perguntou se era correto premiar alguém que se jacta de nunca ter lido um livro. O professor manteve sua calma e o olhou assombrado. Talvez saiba que essa jactância de Lula não consta em atas, ainda que seja certo que não tem título universitário. Certo também é que, quando assumiu a presidência, em 1° de janeiro de 2003, levantou o diploma que os presidentes recebem no Brasil e disse: “É uma pena que minha mãe morreu. Ela sempre quis que eu tivesse um diploma e nunca imaginou que o primeiro seria o de presidente da República”. E chorou.

“Por que premiam a um presidente que tolerou a corrupção?” – foi a pergunta seguinte.

O professor sorriu e disse: “Veja, Sciences Po não é a Igreja Católica. Não entra em análises morais, nem tira conclusões apressadas. Deixa para o balanço histórico esse assunto e outros muitos importantes, como a instalação de eletricidade em favelas em todo o Brasil e as políticas sociais”. E acrescentou, pegando o Le Monde: “Que país pode medir moralmente hoje outro país? Se não queremos falar destes dias, recordemos como um alto funcionário de outro país teve que renunciar por ter plagiado uma tese de doutorado de um estudante”. Falava de Karl-Theodor zu Guttenberg, ministro de Defesa da Alemanha até que se soube do plágio.

Mais ainda: “Não desculpamos, nem julgamos. Simplesmente não damos lições de moral a outros países”.

Outro colega perguntou se estava bem premiar alguém que, certa vez, chamou Muamar Kadafi de “irmão”.

Com as devidas desculpas, que foram expressadas ao professor e aos colegas, a impaciência argentina levou a perguntar onde Kadafi havia comprado suas armas e que país refinava seu petróleo, além de comprá-lo. O professor deve ter agradecido que a pergunta não tenha mencionado com nome e sobrenome França e Itália.

Descoings aproveitou para destacar Lula como “o homem de ação que modificou o curso das coisas”, e disse que a concepção de Sciences Po não é o ser humano como “uns ou outros”, mas sim como “uns e outros”. Marcou muito o “e”, “y” em francês.

Diana Quattrocchi, como latino-americana que estudou e se doutorou em Paris após sair de uma prisão da ditadura argentina graças à pressão da Anistia Internacional, disse que estava orgulhosa que Sciences Pos desse o Honoris Causa a um presidente da região e perguntou pelos motivos geopolíticos.

“Todo o mundo se pergunta”, disse Descoings. “E temos que escutar a todos. O mundo não sabe sequer se a Europa existirá no ano que vem”.

Na Sciences Po, Descoings introduziu estímulos para o ingresso de estudantes que, supostamente, estão em desvantagem para serem aprovados no exame. O que se chama discriminação positiva ou ação afirmativa e se parece, por exemplo, com a obrigação argentina de que um terço das candidaturas legislativas devam ser ocupadas por mulheres.

Outro colega brasileiro perguntou, com ironia, se o Honoris Causa a Lula fazia parte da política de ação afirmativa da Sciences Po. Descoings observou-o com atenção antes de responder. “As elites não são só escolares ou sociais”, disse. “Os que avaliam quem são os melhores são os outros, não os que são iguais a alguém. Se não, estaríamos frente a um caso de elitismo social. Lula é um torneiro mecânico que chegou à presidência, mas segundo entendi não ganhou uma vaga, mas foi votado por milhões de brasileiros em eleições democráticas”.

Como Cristina Fernández de Kirchner e Dilma Rousseff na Assembleia Geral das Nações Unidas, Lula vem insistindo que a reforma do FMI e do Banco Mundial está atrasada. Diz que esses organismos, tal como funcionam hoje, “não servem para nada”. O grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) ofereceu ajuda para a Europa. A China sozinha tem o nível de reservas mais alto do mundo. Em um artigo publicado no El País, de Madri, os ex-primeiros ministros Felipe González e Gordon Brown pediram maior autonomia para o FMI. Querem que seja o auditor independente dos países do G-20, integrado pelos mais ricos e também, pela América do Sul, pela Argentina e pelo Brasil. Ou seja, querem o contrário do que pensam os BRICS.

Em meio a essa discussão, Lula chega a França. Seria bom que soubesse que, antes de receber o doutorado Honoris Causa da Sciences Po, deve pedir desculpas aos elitistas de seu país. Um trabalhador metalúrgico não pode ser presidente. Se por alguma casualidade chegou ao Planalto, agora deveria guardar recato. No Brasil, a casa grande das fazendas estava reservada aos proprietários de terras e escravos. Assim, Lula, agora, silêncio, por favor. Os da casa grande estão enojados.

Tradução: Katarina Peixoto

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Emir Sader

Como foi possível que Lula, um torneiro mecânico, sem diploma universitário, tenha recebido o titulo de Doutor Honoris Causa da Science Po de Paris, e FHC, renomado sociólogo, com grande obra publicada, que tambem foi presidente do Brasil, não?