quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Murdoch em Oslo

Entre as explicações para a grande tragédia de Oslo –  anúncio sangrento de que o nazismo, com outros nomes, está de volta –, uma não mereceu maior atenção dos analistas: a influência dos grandes meios de comunicação, como os controlados por Rupert Murdoch, xenófobos, anti-islâmicos, defensores de uma “Europa limpa e pura”.

Não é difícil associar o processo de homogeneização dos meios de comunicação do mundo inteiro – na defesa de ideias como as de que há uma guerra de civilizações, entre o Islã e o Ocidente Cristão – e o crescimento global de organizações de extrema direita. Melanie Phillips, no Daily Mail, resumiu a situação: “Brejvik talvez seja um psicopata desequilibrado, mas o que emerge agora de seu ato atroz é o delírio de uma cultura ocidental que perdeu sua razão”.

Por mais voltas que dermos à inteligência, na busca de profundas e complexas interpretações para essa tendência ao suicídio da civilização contemporânea, sempre chegaremos à ideia mais simples: o capitalismo apodreceu o que restava de solidariedade no processo de civilização ocidental ao universalizar o american dream, fundado na competição e no êxito individual, de qualquer forma. Quando um líder chinês, Deng Xiaoping, proclama que é bom enriquecer, o calvinismo se une ao taoísmo para sepultar Mao Tsé-tung e execrar Marx.

O grande perigo da infecção que, sob a Alemanha de Hitler, se identificou no nazismo é a combinação do instinto das feras – que lutam pela supremacia em seu espaço de caça – com a aparente lógica científica. O racismo é o mais perfeito “apodrecimento da razão”, conforme a definição de Lukács. Investigações recentes sobre a inteligência revelam que não há a menor diferença da capacidade mental entre todas as etnias do mundo: um negro africano tem, em média, o mesmo QI de qualquer nórdico. O que pode diferenciá-los, como indivíduos, e não como grupos étnicos, é a educação, isto é, o treinamento intelectual.

Desde que as sociedades políticas se organizaram, a linguagem passou a servir como instrumento de convencimento a favor do poder e como arma na resistência contra os opressores. A retórica está a serviço do poder, legítimo ou não; a crítica serve à resistência libertária. Como em tudo o mais, o melhor exemplo é grego: os oradores se dividiam, na praça pública, em defesa dos governantes ou contra eles. E os outros meios de comunicação – textos literários, ensaios filosóficos e, sobretudo, o teatro – iam mais além, na crítica ou no elogio ao sistema político de então.

As coisas não mudaram muito em sua essência, mas a tecnologia ampliou a força da palavra – e da imagem. A maioria dos mais poderosos veículos é controlada pelo poder financeiro, e tem servido para submeter governantes aos seus interesses. A técnica é impor o pensamento único e exacerbar a violência, a fim de manter os povos submissos, reduzir os homens à condição de trabalhadores dóceis e consumidores vorazes.
Murdoch é hoje o símbolo da manipulação da verdade e das ideias, a serviço do fundamentalismo mercantil.

A crise política de 1929 fez com que o capitalismo alemão financiasse Hitler e seus criminosos. E mediante o controle dos meios de comunicação o nazismo envenenou parte do povo alemão com o mito da superioridade racial. A crise atual do capitalismo neoliberal financiou Murdoch e seus 200 jornais no mundo – mas ele não está só.

O ódio ao imigrante, um dos produtos desse jornalismo sórdido, deu origem a Brejvik, e alimenta a direita, da Alemanha à Inglaterra, dos Estados Unidos a São Paulo e ao Rio Grande do Sul. Os muçulmanos são os novos judeus da Europa, enquanto, para a extrema direita nacional, os negros, nordestinos e mestiços são os odiados “muçulmanos” do Brasil.

Fonte: Mauro Santayana - Revista do Brasil

A era do preconceito

Nesta era da internet a informação é instantânea. A desinformação também. A notícia sobre os trágicos atentados de Oslo chegou-me enquanto eu navegava pelos sites que costumo frequentar para me atualizar sobre o que ocorre no mundo. Pus-me imediatamente em busca dos detalhes. Abri a página de uma respeitada revista internacional.

Além de alguns pormenores, obtive também a primeira explicação, que veria em seguida nas versões eletrônicas dos jornais brasileiros, segundo a qual o perpetrador dos atos terríveis era alguém a serviço de um movimento fundamentalista islâmico. Dois dias depois do acontecido, quando ficou claro que, na verdade, se tratava de um extremista de direita que pertenceu a movimentos neonazistas, ainda é possível encontrar, mesmo com ressalvas (porque a internet comete essas “traições”), a mesma interpretação apressada, baseada no preconceito contra muçulmanos.

No caso da revista internacional, a interpretação não se limitou a essa caracterização genérica. Deu “nome e endereço” do facínora, que seria um iraquiano curdo ligado a sunitas fanáticos, vivendo no exílio desde 1991. O articulista foi mais longe. Apontou as possíveis motivações do crime hediondo, que estariam relacionadas com a presença de tropas norueguesas no Afeganistão e com a percepção, por parte dos tais fundamentalistas, da cumplicidade da imprensa norueguesa com caricaturas ofensivas ao Profeta.

Evidentemente, tudo isso era muito plausível, à luz do ocorrido no 11 de Setembro, descartando-se as hipóteses conspiratórias sobre aquele trágico episódio. Mas era igualmente plausível a hipótese, que acabou confirmada, de que se tratasse de outro tipo de fundamentalista, do gênero “supremacista branco”. O alvo do ataque era um governo da esquerda moderada, visto como tolerante em relação a imigrantes e aberto ao diálogo com as mais diversas facções em situações conflituosas, inclusive no Oriente Médio. Para sublinhar a natureza ideológico-religiosa do ato de violência, o terrorista visou também a juventude do partido, pacificamente acampada em uma ilha.

Algo semelhante havia ocorrido seis anos antes do atentado contra as Torres Gêmeas, quando outro fanático havia feito explodir um prédio público na cidade de Oklahoma, nos Estados Unidos. Daquela feita, o Estado – e tudo o que ele simboliza como limitação ao indivíduo, percebido como independente e antagônico em relação à sociedade – foi o objeto da ira destruidora. Também naquela época, quando a Al-Qaeda ainda não havia ganhado notoriedade, as primeiras análises apontaram para os movimentos islâmicos.

Não ponhamos, porém, a culpa na internet. Ela apenas faz com que visões baseadas em preconceitos, que não deixam de refletir certo tipo de fundamentalismo, se espalhem mais rapidamente, com o risco de gerarem “represálias” contra o suposto inimigo. Felizmente, neste caso, a eficiente ação da polícia norueguesa impediu que isso ocorresse. Mas o risco existe de que, em outras situações, as tragédias se multipliquem, por vezes com o apoio de movimentos marginais inconsequentes, que buscam tirar partido dos eventos, assumindo responsabilidade por algo que não fizeram.

Não é possível ignorar que, no caso da invasão do Iraque, o preconceito, e não apenas a manipulação deliberada (que também existiu), estava por trás de vinculações absurdas, usadas para justificar decisões que causaram centenas de milhares de vítimas (há quem fale em 1 milhão). O suposto elo entre Saddam Hussein e o terrorismo nunca se comprovou, da mesma forma que eram falsas as alegações quanto à posse por Bagdá de armas de destruição em massa. Num primeiro momento, contudo, essas justificativas foram aceitas pela maioria da população norte-americana.

Não sejamos inocentes. Interesses econômicos e políticos, e não apenas preconceitos, motivaram a decisão de atacar o Iraque. Mas o pano de fundo de uma visão particularista do mundo, em que “diferente” se torna sinônimo de “inimigo”, ajuda a criar o caldo de cultura de que se valem os líderes para obter, das populações que governam, o indispensável apoio às suas custosas aventuras bélicas.

A Noruega não corre esse risco. Como disse o primeiro-ministro Stoltenberg, o terrorismo insano não destruirá a democracia do país nórdico, que, ademais, se tem notabilizado por importantes iniciativas em favor da paz. Aliás, é o ódio às pessoas que promovem a paz e o entendimento, além da intolerância e do fanatismo, que está na raiz desse bárbaro atentado. Infelizmente, não só o orgulho, como queria a romancista inglesa, mas também o ódio costuma ser um companheiro inseparável do preconceito.

Flores e política: Marcha das Margaridas prova ser a maior mobilização de mulheres do Brasil e da América Latina

Por Letícia Verdi (Caros Amigos)

marchamargaridas1“Enquanto persistir o modelo de desenvolvimento dominante, focado no agronegócio, não haverá desenvolvimento sustentável, justiça, autonomia, igualdade e liberdade neste país”. Com essa convicção, as Margaridas floriram Brasília nos dias 16 e 17 de agosto. Elas são dezenas de milhares de trabalhadoras do campo e da floresta, organizadas em sindicatos, que pela quarta vez, desde 2000, marcharam em Brasília para reivindicar políticas públicas por melhores condições de vida na área rural. A estimativa da organização era reunir 100 mil mulheres. O número que saiu na imprensa foi 70 mil, a polícia militar contou 45 mil. Seja qual for a contagem real, trata-se da maior mobilização de mulheres do Brasil e da América Latina.

Desde a base, nas federações e sindicatos de trabalhadoras e trabalhadores rurais, até a cabeça do movimento, em Brasília, o esforço coletivo garantiu a ida dessas mulheres à capital federal. O que as move é real: as demandas das Margaridas são baseadas na experiência. Elas sabem do que estão falando, viram e vêem as terras sendo tomadas pela soja e pelo gado, as matas derrubadas, rios poluídos, meninas caindo na prostituição, mulheres sendo vítimas de violências, crianças ficando doentes e sem acesso a serviços de saúde.

“O modelo atual de desenvolvimento expande as monoculturas, destrói a biodiversidade e o meio ambiente, compromete a agricultura familiar, reproduz a violência, gera empobrecimento e miséria no país”. A frase está na carta-aberta da Marcha das Margaridas à sociedade. Mas o objetivo principal das Margaridas é sensibilizar o Governo para a implementação de políticas públicas específicas para as mulheres rurais. No dia 13 de julho, em comitiva, elas foram ao Palácio do Planalto entregar uma pauta de reivindicações com 158 pontos, distribuídos em sete eixos - biodiversidade e democratização dos recursos naturais; terra, água e agroecologia; soberania e segurança alimentar e nutricional; autonomia econômica, trabalho e renda; educação não sexista, sexualidade e violência; saúde e direitos reprodutivos; democracia, poder e participação política.

As Margaridas são articuladas, organizadas, conscientes. Conseguiram um espaço de diálogo com o governo, que resultou na ida da presidenta Dilma Rousseff à Cidade das Margaridas (montada no Parque da Cidade, em Brasília), e a atenção da mídia durante os dias de mobilização. Coisa surpreendente foi a simpatia que conquistaram junto à população da cidade. Apesar do transtorno gerado no trânsito em horário de pico, os cidadãos da capital federal demonstraram apoio e compreensão com a causa das mulheres do campo e da floresta – tão distantes e tão próximas naqueles dias.

No encerramento da Marcha, dia 17, a presidenta Dilma entregou à Coordenadora Nacional da Marcha e Secretária de Mulheres da Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura (Contag), Carmenmarchamargaridas2 Foro, um caderno de respostas. Em sua fala, anunciou medidas importantes: mutirões de três barcos para tirar documentos das ribeirinhas; 16 unidades fluviais de saúde; escritura conjunta do casal para imóveis rurais obtidos por meio do Programa Nacional de Crédito Fundiário; funcionamento, até 2012, de 10 unidades móveis de atendimento às mulheres em situação de violência na área rural; ações para a redução da mortalidade materna e infantil para as mulheres rurais; campanha contra o câncer de colo de útero e de mama para as mulheres do campo e da floresta; realização do Mapa da Saúde para aspopulações rurais; trinta por cento da merenda escolar a ser adquirido da agricultura familiar; acesso ao Crédito de Apoio à Mulher, no valor de R$ 3mil, em uma parcela.

Apesar de ser um dos pontos estruturantes da pauta das Margaridas, reforma agrária não foi sequer citada nas palavras de Dilma. “Compreendemos que isso é um processo, não poderíamos entender que tudo seria resolvido apenas nessa Marcha. Abrimos um caminho de negociação com o governo”, ponderou Carmen Foro, afirmando que a resposta da presidenta não corresponde ao tamanho da mobilização.

Na carta-aberta, o movimento deixou claro: “A Marcha das Margaridas 2011 reafirma a necessária realização de uma Reforma Agrária ampla e massiva como condição primeira para vencer a miséria, transformar efetivamente a realidade econômica e social e construir um país justo, soberano, democrático e sustentável. Essa necessidade é imperiosa para as mulheres, que representam, segundo o IBGE, 47,9% da população do campo e da floresta, dentre as quais predomina a pobreza e a permanência em acampamentos espalhados por todo o país”.

Mesmo assim, motivo não falta para comemorar. “A Marcha em si já é vitoriosa por ter mobilizado tantas mulheres”, lembrou Carmen.
Por que Margaridas?
marchamargaridas3A Marcha das Margaridas tem esse nome em homenagem à dirigente sindical Margarida Alves (1943-1983), grande símbolo da luta das mulheres por terra, trabalho, igualdade, justiça e dignidade. Rompeu com padrões tradicionais de gênero ao ocupar por 12 anos a presidência do sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alagoa Grande, na Paraíba. Sua trajetória sindical foi marcada pela luta contra a exploração, pelos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, contra o analfabetismo e pela reforma agrária. Margarida Alves foi brutalmente assassinada com um tiro no rosto pelos usineiros da Paraíba em 12 de agosto de 1983.

Libia, quarto país vítima de agressão militar dos EUA

Por Georges Pezmatzoglu
 
A iminente derrubada do regime de Kadafi na Líbia como resultado de uma guerra de quase seis meses que travam os EUA e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) traz novamente em foco um tema colossal, cuja seriedade o mundo não conscientizou-se ainda.
Independente de se alguém simpatiza ou antipatiza com Muamar Kadafi, o fato indiscutível é que a Líbia se constitui o quarto - em sequência - país que desaba vítima de ataque militar dos EUA e de seus aliados na primeira década do século XXI, os últimos 12 anos para sermos exatos.

A começar de março de 1999, quando o presidente democrata Bill Clinton desfechou uma guerra contra a então "pequena" Iugoslávia, que era constituída pela Sérvia e por Montenegro, com resultado de despedaçar a Iugoslávia e amputar a Sérvia, arrancando-lhe Kosovo e derrubando Slobodan Milocevitz, o qual, em seguida, foi executado "por processo médico", dentro de sua cela em Haya.

Observa-se que está sendo repetido gradualmente e, em caráter permanente, o seguinte fenômeno: quando os EUA sentem antipatia por um líder ou um regime, atacam cruamente, fazem guerra contra o país, derrubam seu líder e o regime e instalam em seus lugares os espantalhos de Washington.

Começaram com a Sérvia e Milocevitz. Continuaram com o Afeganistão e o Talibã, que em três meses completam uma década inteira de ocupação do país e massacre de sua população desarmada.

Em seguida, foi a vez do Iraque e de Saddam Hussein, onde já foram completados oito anos de ocupação norte-americana, destruição e pilhagem desde o petróleo até o Museu Histórico deste outrora orgulhoso país árabe.

Agora chegou a vez da Líbia e, naturalmente, não é necessário alguém ser adivinho para prever o triste destino deste país que sucumbe ao agressivo poderio bélico norte-americano.

Sem protestos

Estes fatos são horripilantes e, o pior é que os povos da Europa acostumam-se cada vez mais com estas guerras de conquista dos EUA e da Otan e as consideram quase fenômenos fisiológicos, assim como, gradualmente, têm deixado de expressar o seu mesmo inconsequente protesto. Ninguém, mesmo, emocionou-se e posicionou-se contra a guerra dos EUA e da Otan contra a Líbia.

Se alguém pensar sobre isto: seis meses EUA e Otan bombardeando impiedosamente dia e noite o país e matando os líbios para arrancar-lhes seu petróleo, enquanto todos os europeus e norte-americanos permaneceram indiferentes sobre os crimes de guerra cometidos pelos EUA e Otan a tal ponto que haviam quase esquecido esta guerra, até que de repente foram informados que o regime de Muamar Kadafi está desabando.

O mundo enfrenta intervenções militares cruas de forças imperialistas do tipo mais clássico. Os pretextos, como "caráter humanitário" ou "ajuda para as forças opositoras", não conseguem encobrir as guerras de conquista. São as guerras de conquista que caracterizam a nova época neste mundo do século XXI.

___________

Fonte:
Monitor Mercantil

De céticos a cínicos


Por Emir sader, em seu Blog

O ceticismo parece um bom refúgio em tempos em que já se decretou o fim das utopias, o fim do socialismo, até mesmo o fim da história. É mais cômodo dizer que não se acredita em nada, que tudo é igual, que nada vale a pena. O socialismo teria dado em tiranias, a política em corrupção, os ideais em interesses. A natureza humana seria essencialmente ruim: egoísta, violenta, propensa à corrupção.

Nesse cenário, só restaria não acreditar em nada, para o que é indispensável desqualificar tudo, aderir ao cambalache: nada é melhor, tudo é igual. Exercer o ceticismo significa tratar de afirmar que nenhuma alternativa é possível, nenhuma tem credibilidade. Umas são péssimas, outras impossíveis. Alguns órgãos, como já foi dito, são máquinas de destruir reputações. Porque se alguém é respeitável, se alguma alternativa demonstra que pode conquistar apoios e protagonizar processos de melhoria efetiva da realidade, o ceticismo não se justificaria.

Na realidade o ceticismo se revela, rapidamente, na realidade, ser um cinismo, em que tanto faz como tanto fez, uma justificativa para a inércia, para deixar que tudo continue como está. Ainda mais que o ceticismo-cinismo está a serviço dos poderes dominantes, que costumam empregar esses otavinhos, dando-lhes espaço e emprego.

Seu discurso é que o mundo está cada vez pior , à beira da catástrofe ecológica, tudo desmorona e outros cataclismos. Concitam a essa visão pessimista, ao ceticismo e a somar-se à inercia, que permite que os poderosos sigam dominando, os exploradores sigam explorando, os enganadores – como eles – sigam enganando.

Por mais que digam que tudo está pior, que o século passado foi um horror – como se o mundo estivesse melhor no século XIX -, que nada vale a pena, não podem analisar a realidade em concreto. Para não ir mais longe, basta tomar a América Latina – tema sobre o qual a ignorância dessa gente é especialmente acentuada. Impossível não considerar que o século XX foi o mais importante da sua história, o primeira em que a região começou a ser protagonista da sua historia. De economias agro exportadoras, se avançou para economias industrializadas em vários países, para a urbanização , para a construção de sistemas públicos de educação e de saúde, para o desenvolvimento do movimento operário e dos direitos dos trabalhadores.

Mas bastaria concentrar-nos no período recente, no mundo atual, para nos darmos conta de que as sociedades latino-americanas – o continente mais desigual do mundo – ou pelo menos a maioria delas, avançaram muito na superação das desigualdades e da miséria. Ainda mais em contraste com os países do centro do capitalismo, referência central para os cético-cínicos, que giram em falso em torno de políticas que a América Latina já superou.

As populações da Venezuela, da Bolívia, do Equador, estão vivendo muito melhor do que antes dos governos de Hugo Chavez, de Evo Morales e de Rafael Correa. A Argentina dos Kirdhcner esta’ muito melhor do que com Menem. O Brasil de Lula e de Dilma esta’ muito melhor do que com FHC.

Mas o ceticismo-cinismo desconhece a realidade concreta, não conhece a história. É pura ideologia, estado de ânimo, que dá cobertura aos poderosos, lado que escolheram, ao optar por deixar o mundo como ele está. Trata de passar sentimentos de angustia diante dos problemas do mundo, mas é apenas uma isca para fazer passar melhor seu compromisso com que o mundo não mude, continue igual. Até porque a vida está bem boa para eles que comem da mão dos ricos e poderosos.

Ser otimista não é desconsiderar os graves problemas de toda ordem que o mundo vive, não porque a natureza humana seja ruim por essência, mas porque vivemos em um sistema centrado no lucro e não nas necessidades humanas – o capitalismo, na sua era neoliberal. Desconhecer as raízes históricas dos problemas, não compreender que é um sistema construído historicamente e que, portanto, pode ser desconstruído, que teve começo, tem meio e pode ter fim. Que a história humana é sempre um processo aberto de alternativas e que triunfam as alternativas que conseguem superar esse ceticismo-cinismo que joga água no moinho de deixar tudo como está, pela ação consciente, organizada, solidária dos homens e mulheres concretamente existentes.

As patologias do capital

Brasil, China e turbulências mundiais

Por Wladimir Pomar, no sítio Correio da Cidadania:

Parece haver certo consenso de que o mundo está entrando numa era de turbulências agudas em todos os terrenos. Isto é, na volatilidade das finanças, nas taxas de câmbio e de juros, nos índices de emprego e de padrão de vida, nas insatisfações sociais e nacionais, nas tendências e nas alianças políticas e nas apreciações ideológicas sobre esse conjunto de situações e sobre cada uma delas.


É verdade que, como mostrou a crise de 2008, essas turbulências não ocorrem na mesma extensão e gravidade em todos os países e regiões. Em 2008 concentraram-se principalmente nos Estados Unidos e, agora, concentram-se na Europa, a partir dos países de economias mais fracas. Mas não há qualquer dúvida de que elas causam instabilidades globais que rebatem, de forma mais ou menos intensa, e mais ou menos graves, em todos os demais países.

Também é verdade que é impossível fazer previsões de curto prazo sobre como, e com que rapidez, tais turbulências evoluirão, não apenas nos países centrais, mas no resto do mundo. Em tais condições, basta isso para gerar uma série de ações desencontradas, em cada um dos países ou regiões. Alguns destes tendem a adotar medidas protecionistas, enquanto outros pensam tirar proveito máximo da crise dos outros. No entanto, nada garante que a situação crítica dos Estados Unidos e da Europa possa levar algum benefício a quem quer que seja, em especial no caso de se firmar a tendência de ascensão das correntes políticas de direita e para-fascistas.

No caso do Brasil, o quadro recomenda uma avaliação estratégica mais consistente das relações do país, tanto com as regiões em crise quanto com os BRICS, com a América Latina e com as regiões que ainda estão relativamente a salvo. Talvez seja mais conveniente ao Brasil se preparar para o pior e tratar mais seriamente tal possibilidade.

Nesse sentido, é necessário tratar com especial atenção nossas relações com a China. No momento, parece predominar não só em certos setores empresariais, mas também em diversos setores governamentais e acadêmicos, uma visão negativa sobre tais relações, como se os chineses fossem única e exclusivamente uma ameaça.

Num quadro geral de crise, o predomínio dessa visão não só impedirá o Brasil de aproveitar as oportunidades oferecidas pelo desenvolvimento chinês, como também pode tornar o Brasil o único prejudicado, já que a China é um dos poucos países do mundo que possui um mercado doméstico suficientemente grande para suportar, em certa medida, uma crise realmente global.

Segundo dados conhecidos, a corrente de comércio bilateral Brasil-China saltou de 760 milhões de dólares, em 1989, para 56,8 bilhões de dólares, em 2010. Em outras palavras, a corrente de comércio do Brasil com o país asiático saltou de 1,5% para 15%. Esse aumento do comércio com a China contribuiu não só para reduzir os déficits das contas correntes brasileiras, mas também para manter a inflação brasileira sob controle, tendo em conta os custos mais baixos dos bens importados daquele país.

Além disso, enquanto os investimentos diretos (IED) realizados pela China no Brasil somaram 250 milhões de dólares, entre 1990 e 2009, essa soma se elevou a 13,7 bilhões de dólares em 2010. Ou seja, 28% de todos os investimentos estrangeiros no Brasil. As estimativas são de que, nos próximos anos, esses investimentos oriundos da China se elevem ainda mais, embora muitos temam que eles se dirijam unicamente à fabricação de produtos básicos exportáveis.

A maioria dos analistas considera que esse é o lado aparentemente bom das relações com a China. Mas essa maioria também considera que tal lado bom é apenas um canto de sereia, ou a reedição do infausto acordo Inglaterra-Portugal, como escreveu Luis Nassif em seu blog. Para demonstrar essa tese, apontam vários aspectos preocupantes do comércio externo brasileiro e das relações com a China.

Os produtos básicos e semi-manufaturados, que antes constituíam 43,5% das exportações brasileiras, saltaram para 58,6% em 2010. Em contrapartida, as exportações de manufaturados caíram de 54,3%, em 2006, para 39,4% em 2010. Para tornar ainda mais sombria essa situação do Brasil, estima-se que 71,5% dos investimentos previstos entre 2011/2014 (não só chineses) estarão voltados para commodities, como petróleo, gás e mineração, enquanto os investimentos destinados aos setores de manufaturas exportáveis, como veículos, papel e celulose e têxteis e confecções, cairão para 11,9%.

A participação da indústria no valor total da economia brasileira caiu de 19,2%, em 2004, para 14,8% em 2009. Teria ocorrido, portanto, uma desindustrialização. Os analistas supõem que essa situação é ainda mais grave porque tal desindustrialização não teria sido acompanhada do surgimento de um setor de serviços dinâmico e sofisticado, como ocorreu nos Estados Unidos e em vários países da Europa. Só esquecem de dizer que isso não teria sido vantagem alguma, já que serviços dinâmicos e sofisticados não salvaram os Estados Unidos e a Europa da crise, colocando em xeque as vantagens da pretensa modernidade pós-industrial.

A partir desses dados, e do fato de o comércio realizado entre as diversas indústrias brasileiras, destinado a fortalecer suas cadeias produtivas, ter caído de 57% para 50%, entre 2006 e meados de 2011, a maior parte dos analistas conclui que a China estaria contribuindo para agravar essa situação. Afinal, 83,6% das exportações brasileiras para ela são de produtos básicos, contra apenas 4,5% de produtos manufaturados. Em contrapartida, 85% das importações brasileiras da China são de produtos industriais e de altos componentes tecnológicos.

Esses críticos das relações atuais do Brasil com a China reconhecem que o país asiático se tornou importante fonte de crédito externo para o Brasil. Mas não concordam que tais créditos estejam, em geral, vinculados a projetos de produção, logística ou comercialização de produtos brasileiros. E citam como exemplo o empréstimo de 10 bilhões de dólares, concedido em 2009, pelo China Development Bank (CDB) à Petrobrás, em troca da exportação de 200 mil barris de petróleo/dia, durante 10 anos.

Isso comprovaria que as relações econômicas e comerciais com a China, incluindo os investimentos e os créditos, teriam contribuído para estimular a produção e a exportação de produtos básicos e fazer regredir a produção industrial. Por outro lado, os ínfimos 85,3 milhões de dólares (outros falam em 150 milhões de dólares) investidos pelo Brasil na China demonstrariam a existência de barreiras aos investimentos brasileiros naquele país.

Numa análise superficial, os números apresentados podem levar à conclusão de que tais assertivas sobre as relações Brasil-China estão corretas e que a China não passa mesmo de uma das sereias que tentou levar o grego Ulisses ao naufrágio, após a guerra de Tróia. No entanto, uma análise mais acurada, inclusive partindo da experiência industrial da China, pode indicar que tais analistas estão construindo mitos, que pouco têm a ver com a realidade de ambos os países, e que pouco ajudarão a construir uma estratégia de parceria e benefício mútuo de longo prazo. Mas isso é assunto para a próxima semana.

Sete pontos acerca da Líbia

Gaddafi
Rebeldes rumam a Sirte, cidade natal de Gaddafi, com o apoio dos jatos da Otan

Doravante mesmo os cegos podem ver e compreender o que está em curso na Líbia:

1. O que se passa é uma guerra promovida e desencadeada pela OTAN. Esta verdade acaba por se revelar até mesmo nos órgãos de “informação” burgueses. No La Stampa de 25 de Agosto, Lucia Annunziata escreve: é uma guerra “inteiramente externa, ou seja, feita pelas forças da OTAN”; foi “o sistema ocidental que promoveu a guerra contra Gaddafi”. Uma peça do International Herald Tribune de 24 de Agosto mostra-nos “rebeldes” que se regozijam, mas eles estão comodamente instalados num avião que traz o emblema da OTAN.

2. Trata-se de uma guerra preparada desde há muito tempo. O Sunday Mirror de 20 de Março revelou que “três semanas” antes da resolução da ONU já estavam em ação na Líbia “centenas” de soldados britânicos, enquadrados num dos corpos militares mais refinados e mais temidos do mundo (SAS). Revelações ou admissões análogas podem ser lidas no International Herald Tribune de 31 de Março, a propósito da presença de “pequenos grupos da CIA” e de uma “ampla força ocidental a atuar na sombra”, sempre “antes do desencadeamento das hostilidades a 19 de Março”.

3. Esta guerra nada tem a ver com a proteção dos direitos humanos. No artigo já citado, Lucia Annunziata observa com angústia: “A OTAN que alcançou a vitória não é a mesma entidade que lançou a guerra”. Nesse intervalo de tempo, o Ocidente enfraqueceu-se gravemente com a crise econômica; conseguirá ele manter o controle de um continente que, cada vez mais frequentemente, percebe o apelo das “nações não ocidentais” e em particular da China? Igualmente, este mesmo diário que apresenta o artigo de Annunziata, La Stampa, em 26 de Agosto publica uma manchete a toda a largura da página: “Nova Líbia, desafio Itália-França”. Para aqueles que ainda não tivessem compreendido de que tipo de desafio se trata, o editorial de Paolo Paroni (Duelo finalmente de negócios) esclarece: depois do início da operação bélica, caracterizada pelo frenético ativismo de Sarkozy, “compreendeu-se subitamente que a guerra contra o coronel ia transformar-se num conflito de outro tipo:   guerra econômica, com um novo adversário: a Itália obviamente”.

4. Desejada por motivos abjetos, a guerra é conduzida de modo criminoso. Limito-me apenas a alguns pormenores tomados de um diário acima de qualquer suspeita. O International Herald Tribune de 26 de Agosto, num artigo de K. Fahim e R. Gladstone, relata: “Num acampamento no centro de Tripoli foram encontrados os corpos crivados de balas de mais de 30 combatente pró Gaddafi. Pelo menos dois deles estavam atados com algemas de plástico e isto permite pensar que sofreram uma execução. Dentre estes mortos, cinco foram encontrados num hospital de campo; um estava numa ambulância, estendido numa maca e amarrado por um cinturão e tendo ainda uma transfusão intravenosa no braço”.

5. Bárbara como todas as guerras coloniais, a guerra atual contra a Líbia demonstra como o imperialismo se torna cada vez mais bárbaro. No passado, foram inumeráveis as tentativas da CIA de assassinar Fidel Castro, mas estas tentativas eram efetuadas em segredo, com um sentimento de que se não é por vergonha é pelo menos de temer possíveis reações da opinião pública internacional. Hoje, em contrapartida, assassinar Gaddafi ou outros chefes de Estado não apreciados no Ocidente é um direito abertamente proclamado. O Corriere della Sera de 26 de Agosto de 2011 titula triunfalmente: “Caça a Gaddafi e seus filhos, casa por casa”. Enquanto escrevo, os Tornado britânicos, aproveitando também a colaboração e informações fornecidas pela França, são utilizados para bombardear Syrte e exterminar toda a família de Gaddafi.

6. Não menos bárbara do que a guerra foi a campanha de desinformação. Sem o menor sentimento de pudor, a OTAN martelou sistematicamente a mentira segundo a qual suas operações guerreiras não visavam senão a proteção dos civis! E a imprensa, a “livre” imprensa ocidental? Ela, em certo momento, publicou com ostentação a “notícia” segundo a qual Gaddafi enchia seus soldados de viagra de modo a que eles pudessem mais facilmente cometer violações em massa. Como esta “notícia” caiu rapidamente no ridículo, surge então uma outra “nova” segundo a qual os soldados líbios atiram sobre as crianças. Nenhuma prova é fornecida, não se encontra nenhuma referência a datas e lugares determinados, nenhuma remessa a tal ou tal fonte: o importante é criminalizar o inimigo a liquidar.

7. Mussolini, no seu tempo, apresentava a agressão fascista contra a Etiópia como uma campanha para libertar este país da chaga da escravidão; hoje a OTAN apresenta a sua agressão contra a Líbia como uma campanha para a difusão da democracia. No seu tempo Mussolini não cessava de trovejar contra o imperador etíope Hailé Sélassié chamando-o “Negus dos negreiros”; hoje a OTAN exprime seu desprezo por Gaddafi chamando-o “ditador”. Assim como a natureza belicista do imperialismo não muda, também as suas técnicas de manipulação revelam elementos significativos de continuidade. Para clarificar quem hoje realmente exerce a ditadura a nível planetário, ao invés de citar Marx ou Lénine quero citar Emmanuel Kant. Num texto de 1798 (O conflito das faculdades), ele escreve: “O que é um monarca absoluto? Aquele que, quando comanda: ‘a guerra deve fazer-se’, a guerra seguia-se efetivamente”. Argumentando deste modo, Kant tomava como alvo em particular a Inglaterra do seu tempo, sem se deixar enganar pela forma “liberal” daquele país. É uma lição de que devemos tirar proveito: os “monarcas absolutos” da nossa época, os tiranos e ditadores planetários da nossa época têm assento em Washington, em Bruxelas e nas mais importantes capitais ocidentais.

Por Domenico Losurdo - Correio do Brasil

O original encontra-se em http://domenicolosurdo.blogspot.com/; com a versão em francês em http://www.legrandsoir.info/sept-points-sur-la-libye.html. Também foi reproduzido no portal http://resistir.info/.