Militarização do cotidiano
Enquanto nos preocupamos com os minutos de fama do Capitão Bolsonaro, em performances patéticas tão ao gosto da grande mídia, está em marcha (muitas vezes silenciosa) um processo bem mais complexo de militarização do nosso próprio cotidiano.
Existem as evoluções mais ruidosas e visíveis, exemplificadas pelos ataques selvagens da Polícia Militar à primeira Manifestação pela Liberdade de Expressão na Avenida Paulista. Ou, antes disso, os intensos debates em torno da entrada da polícia no Campus da Universidade de São Paulo, depois do assassinato brutal de um jovem aluno da Faculdade de Economia e Administração (FEA-USP).
E, por falar na USP, às vésperas da semana de Luta Antimanicomial, cujo dia de comemoração é o 18 de maio, eis que nos deparamos com o caso de um aluno que deveria ter sido cuidado com os recursos da psicologia e da psicanálise, num lugar de proficiência nesse sentido; mas foi encarado como um caso de polícia no âmbito do próprio Instituto de Psicologia (IP) da USP, uma das maiores universidades da América Latina.
Diante das manifestações sucessivas de comportamento agressivo do aluno do quarto ano de Psicologia, que chegou ao ponto de ameaçar colegas e professores com uma faca, a polícia foi chamada. Houve uma intervenção de alguns professores pelo encaminhamento a um serviço especializado, mas mesmo assim a direção do Instituto não hesitou em registrar um boletim de ocorrência, e posteriormente uma sindicância para apurar a responsabilidades dos professores envolvidos e que defendiam um tratamento adequado ao caso. Nos episódios que se sucederam, alguns pais e alunos clamaram por mais segurança e a resposta veio pela via da sociedade do controle. Além da guarda universitária, que já vinha permanecendo no Instituto, e da proibição de que o aluno assistisse às aulas, foi decidido que o mesmo seria acompanhado por um segurança sempre que circulasse pelo Instituto.
O impacto da solução encontrada, no âmbito de um centro de pesquisas que deveria esgotar à exaustão todos os recursos de cuidado em relação aos sofrimentos psíquicos alheios, representa a metáfora mais bem acabada do processo de privatização e militarização dos espaços institucionais públicos.
Nesse sentido, a fala providencial da juíza Kenarik Boujikian vale tanto para as manifestações pela liberdade de expressão na Paulista, como para o caso do aluno da Psicologia da USP. “Não é o código penal que deve estar à mão, quando se decide sobre estes direitos, pois este tem como ápice a repressão, a criminalização. O paradigma deve ser o constitucional, sempre, pois o norte é o nível de proteção que os direitos fundamentais exigem e que devem ser priorizados”, afirmou a juíza.
Mas o que fazer se estamos metidos num estado de exceção generalizado, quando os direitos existem mas não têm força para serem colocados em prática? E, além disso, como agir quando o nosso cotidiano parece militarizado por práticas que já estão introjetadas no comportamento do cidadão comum e na lógica institucional? Será que a retomada das praças públicas pode ter algo a ver com a desmilitarização do nosso comportamento? (Sílvio Mieli - Brasil de fato)
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