A história monetária dos últimos cem anos é repleta de crises financeiras. O padrão revela um investidor otimista, na medida em que as economias se expandem, o crescimento do crédito aumenta e os indivíduos investem para obter retornos de curto prazo, nem sempre atentos ao valor real dos ativos. Investimentos em alta estimulam maiores fontes creditícias, correspondentes ao otimismo peculiar das fases de prosperidade econômica.
Por Samuel Sérgio Salinas *
A bola de neve da manada especulativa nem sequer notou os claros indícios de que a economia norte-americana, em 1929, estava em declínio. Os consumidores se retraiam, grandes quedas na produção, na construção civil e na venda de automóveis delineavam um panorama perigoso Em setembro, o mercado estremeceu e, em outubro, em uma fatídica sexta-feira dia 25, uma onda de falências espalhou o pânico. O valor real das ações ordinárias despencou 40%. A renda agrícola reduziu-se à metade e praticamente cessou a construção civil. Em 1931, um em cada quatro americanos estava desempregado. A Era Dourada do capitalismo atravessava a sua primeira crise e só os crédulos e alguns teóricos acreditavam que seria a última.
Como pôde essa situação ocorrer no país mais rico e poderoso do mundo que supunha todas as suas virtudes econômicas, sociais e políticas resultavam da liberdade de um mercado eficaz e auto-regulador?
As grandes criações tecnológicas pautaram as fases de crescimento do capitalismo ocidental, a exemplo da indústria ferroviária em meados do século XlX, surto que Marx e Engels acompanharam atentamente, como expressão da atividade do capitalismo, enaltecida nesse aspecto pelo Manifesto de 1848. Nos anos subsequentes à Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o crescimento da indústria automotiva norte-americana e o fordismo que estimulava o consumo popular dos veículos mediante uma política salarial adequada, promoveu exuberante crescimento econômico. A Primeira Guerra projetara os norte-americanos para o centro do poder mundial.
A grande queda do mercado de ações em 1929 incrementou o aumento na taxa de juros, mas resultou na redução da compra de ativos estrangeiros dificultando os países da órbita americana de manter a paridade de suas moedas, pois tornava o acesso ao dólar financiado muito caro. A implosão das bolsas em 1929 acelerou uma retração na economia global e grande número de países suspendeu a conversibilidade de suas moedas ao dólar, pois sofreram redução considerável nas exportações, além de pressões especulativas contra suas moedas. Desaparece a liquidez, as falências bancárias aumentam a queda nos preços não tem limites naturais até que o sistema monetário desabou convertido em quase troca (barter).
Com o grande investimento próximo a zero em 1932, a economia estava pronta para recomeçar. No entanto, seria necessário ocorrer um apocalíptico clímax e falências bancárias, o expurgo anticíclico que desaloja todos, mas, principalmente, os menos aptos. Quase desnecessário afirmar que uma lei norte-americana de franco protecionismo, The Smooth-Hawley (1930), criou problemas de pagamentos para outros países e desencadeou reações da mesma natureza por toda parte. Essas tarifas protetoras liquidaram as perspectivas de reativação do comércio externo norte-americano. O presidente Herbert Hoover (1874-1864), que a promulgara, por sua vez, opôs-se a todas as medidas diretas de auxílio desemprego, pois considerava seus graves efeitos prejudiciais à tradição e ao caráter americano.
Nos Estados Unidos, a depressão foi amargamente sentida dada a sua violência e a brusca e inesperada redução dos indicativos macroeconômicos. Doze milhões de operários foram desempregados sem nenhum meio de subsistência, desassistidos de seguro desemprego, resvalaram para a miséria absoluta (na época, o sistema norte-americano deixava os desempregados aos cuidados da caridade). Entre 1929 e 1933 a renda nacional americana caiu 53%, os preços despencaram 25%, a renda per capita regride ao nível de 1908.
Também os homens de negócios sofreram perda de seus ativos, a falência dos seus bancos e a opressão das dívidas impossíveis de serem solvidas. Roosevelt (1882-1945, eleito presidente dos EUA em 1932) tentou adotar o sistema inglês de seguro desemprego, mobilizando consideráveis subsídios. Foram organizados campos de trabalho (Civilian Conservation) para os jovens, com tarifas remuneratórias de caráter sindical; os sindicalistas participavam na administração dos campos. Obras de repovoamento florestal e de construção de estradas contribuíram para evitar um desemprego devastador. Em resumo, as grandes obras que John Maynard Keynes (1883-1946) preconizava desde 1924. Foi cria da a PWA (Public Work Administration) para empreender obras públicas e conceder créditos até um terço do custo do trabalho e materiais utilizados. O exemplo mais conhecido foi a criação da TVA, a Autoridade do Vale do Tenessee, organismo que empreendeu cerca de meia dúzia de enormes represas e a instalação de centrais hidroelétricas e redes de transmissão de energia, com enorme economia nos custos posteriores do produto. Essa autarquia contribuiu para remodelar um sistema fluvial de transporte mediante construção de barragens, além de melhorar o controle de inundações.
A crise relançou problemas de organização sindical e o período foi muito profícuo nesse sentido, contando os sindicatos com a cooperação do governo Roosevelt.
A esperança de que o desatino seria passageiro aliviava as expectativas fundadas nas alternativas de situações semelhantes, que se recuperavam sem grandes percalços, ou seja, os negócios, como de costume, envolviam fases boas e más, do saudável regime de concorrência. A débil esperança não se mostrou ativa e a economia norte-americana, a despeito dos esforços do governo democrata de Roosevelt, resvalou para um abismo que perdurou por mais de uma década. O New Deal, a política de recuperação de Roosevelt, ousou enfrentar o tradicionalismo econômico dos norte-am ericanos, mas não foi uma revolução, nem debelou os efeitos desastrosos da crise. O laissez-faire liberal foi abandonado pela decisão de encontrar na intervenção estatal a recuperação do investimento bancado pelo governo. Abandonou-se a política de guerra contra os sindicatos. Admitiu-se a organização sindical. Não há dúvida de que os trabalhadores, com suas reivindicações alimentavam a demanda. Optou-se pela regulação bancária e a garantia dos depósitos bancários (Commodity Credit Corporation). A despeito dessas e outras medidas que alteraram o relacionamento das classes sociais, não ocorreu transferência de poder de uma para outra. Nada de revolução social pela cúpula. Roosevelt usou o dinheiro público para garantir as suas decisões. Não só, mas uma eloquência e simpatia pessoais que se tornaram famosas. Diante das corridas bancá rias que buscou evitar, disse Roosevelt “os vendilhões do templo tinham fugido do recinto sagrado”, o que não o impediu de restituir aos banqueiros os seus postos. Os três “Rs” de Relief, Reform e Recovery caracterizaram o programado New Deal. Anote-se a primazia do primeiro R = Auxílio, expressão que revela a disposição de ultrapassar as medidas recomendadas pela tradição econômica conservadora.
A depressão, porém, fora devastadora. A fantasiosa e periclitante melhoria de 1937 só contribuiu para alimentar ilusões, pois logo se diluiu no ar com o regresso imediato da longa depressão. Em 1938 o número de desempregados foi estimado em 10 milhões.
A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) descortinou uma inesperada recuperação, ou seja, o país se tornou o armeiro da Europa e seu maior credor. Esta oportunidade foi preenchida com o retorno dos trabalhadores a seus postos, acompanhados da inesperada presença do trabalho feminino em áreas que não lhe eram próprias até a época. O trabalho feminino, em decorrência da guerra, ingressou para sempre na classe trabalhadora numa posição a cada dia mais expressiva.
O financiamento, decorrente da produção de armamentos e bens duráveis para a Europa, durante a guerra, não decorreu do retorno da iniciativa privada aos negócios, mas dos déficits públicos. Logo após a guerra, com o regresso dos milhões de soldados e o declínio do esforço de guerra, aumentou nos Estados Unidos o desemprego. Desde 1946 ocorreu um amplo movimento destinado a reconstruir a economia em geral e levantar empréstimos para as nações europeias devastadas pela destruição, as quais buscaram adquirir dos norte-americanos os bens de capital de que necessitavam para a reconstrução de seus parques industriais. A recuperação alemã, importante para a condução da guerra fria contra a União Soviética, foi beneficiada pelo Plano Marshall, do general norte-americano George Marsha ll (1880-1959) que elaborou e conduziu o Programa de Recuperação Econômica Europeu. Na maioria dos países europeus, em poucos anos, o nível de emprego e produção emparelhou-se com os de pré-guerra. O conflito coreano (1950-1953) acresceu oportunidades de investimento que beneficiaram excepcionalmente os japoneses. Dessa maneira, os anos de meados de 1950 até a década de 1970 foram favoráveis à economia norte-americana e europeia, aumentando o PIB internacional e a renda per capita.
A depressão dos anos 1930, porém, deixou suas marcas nos corações e mentes dos norte-americanos, bem mais talvez do que as perdas humanas, proporcionalmente muito pequenas em relação aos beligerantes europeus e asiáticos.
No período de guerra e nas seguintes foram relevantes para os norte-americanos e ingleses as recomendações do economista John Maynard Keynes que foram aplicadas em grau maior ou menor dependendo das situações concretas emergentes do pós-guerra. Preconizava Keynes o financiamento público e fiscal das grandes obras necessárias à retomada. Keynes e Roosevelt só se encontraram oficialmente duas vezes. Segundo as personalidades que estiveram presentes, sem grandes proveitos para ambos. Os economistas ligados a Roosevelt conheciam a obra do economista inglês e compartilhavam de suas ideias quanto ao financiamento da guerra e das atividades destinadas a apoiar a reconstrução mediante obras públicas.
Após a Guerra (1945), os EUA puderam desenvolver políticas expansionistas graça ao enorme poderio econômico acumulado. As despesas públicas foram necessárias para escoar os recursos obtidos em proporção por vezes maior do que o crescimento dos produtos brutos nacionais. Tais gastos nem sempre decorreram de déficits públicos, mas resultaram de tributos sobre a renda pessoal e das empresas. Keynes, desde 1924, estimulara as despesas dessa natureza, ampliando a demanda efetiva e trabalhando para o aumento do emprego, aspecto pelo qual fundamentava o seu apego ao pleno emprego como forma de sustentar as economias em qualquer circunstância, mas, principalmente, nas fases depressivas. Os decênios que se sucederam foram conhecidos como os anos do compromisso keynesiano
As circunstâncias históricas exerceram pressões desvinculadas de estrita preocupação econômica, dentre elas a Guerra Fria e os enormes investimentos armamentistas. A extensão do crédito aos consumidores, uma sequência do propósito de alimentar a demanda para o consumo, ampliou-se, mas adquiriu, nos Estados Unidos, uma proporção que iria induzir o consumidor americano a sustentar-se nos créditos, e créditos das bolsas, de forma tal que a subsistência do consumo depende do financiamento de um sistema complexo e altamente criativo, inclusive de subprimes.
O período inaugurado pelo redesenho do papel financeiro e do Estado aliviou as contradições capitalistas e propiciou uma fase de elucubrações sobre a perenidade do capitalismo. O keynesianismo foi um dos mais interessantes aspectos da nova teorização. A Revolução Keynesiana inaugurou a intervenção do Estado no processo econômico, a redução do desemprego, o controle dos investimentos e do consumo, dos preços e juros. As sugestões de John Maynard Keynes foram precedidas de uma devastadora crítica da Lei dos mercados, da economia clássica e neoclássica, a Lei de Say, que sustentava que toda produção seria sempre absorvida pelo consumo.
O keynesianismo acentuou-se nos Estados Unidos enfileirando nomes de economistas de grande prestígio universitário, tais como Alvin Hansen, Schumpeter, Samuelson, Galbraith. Este último publicou um livro de grande repercussão – O Novo Estado Industrial – onde acolhia as recomendações de Keynes e formulava o conceito de tecnoestrutura como a camada de especialistas que já substituíam os empresários individuais na administração das grandes empresas. O mercado é agora a variável dependente. O planejamento do capital eliminaria as incertezas da produção e do consumo, afastando, dessa maneira, as lutas sociais pela renda gerada. Em resumo não haveria dispersão de investimentos, nem luta de classes.
O desencadear da crise mais recente, de caráter financeiro, como equivocadamente apregoam os economistas liberais, despertam a avaliação entrevista no que ocorreu durante o programa de recuperação econômica, mas não social, do New Deal, o keynesianismo, o pós-keynesianismo e seus avatares.
Resta-nos regressar a Marx que revelou a natureza do capitalismo e seus estertores. Se toda crise parece financeira, no seu âmago desvela-se o todo que revela as crises, as guerras, o desemprego e as dores do parto das fugazes recuperações. Keynes acreditava no capitalismo e buscava nos interstícios desse modo de produção o meio permanente, vale a pena assinalar, de livrá-lo do desemprego e perdurar ao largo de um mar tranquilo. Marx demonstra que as crises nascem no seio do modo de produção capitalista que alia a exploração das pessoas a uma inevitável e permanente sucessão de crises, onde o desemprego é a sua marca feroz.
O capitalismo traz em seu âmago a morte, pois a cada momento se exaure a sua vitalidade, logre-se ou não fugazes momentos keynesianos.
* Sociólogo, jornalista e advogado. É procurador de justiça aposentado do Estado de São Paulo e colaborador do portal Vermelho. Tem diversos livros publicados, entre eles Islã, Esse Desconhecido, pela Editora Anita Garibaldi. E-mail: sssalinas@uol.com.br
Fonte: www.vermelho.org.br
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