O caso envolvendo assassinatos cometidos por neonazistas na Alemanha vem provocando uma torrente de debates na mídia e fora dela, envolvendo políticos, autoridades, policiais, associações comunitárias, e começou a repercutir no exterior. A chanceler Ângela Merkel definiu o caso como "uma vergonha para a Alemanha.
Flávio Aguiar - Carta Maior
A chanceler Ângela Merkel qualificou o fato – ou melhor, os fatos – como “uma vergonha para a Alemanha”.
Flávio Aguiar - Carta Maior
A chanceler Ângela Merkel qualificou o fato – ou melhor, os fatos – como “uma vergonha para a Alemanha”.
Que fatos?
Esse é um problema: ainda não se sabe muito bem. Mas já se sabe que são “uma vergonha”.
Recapitulemos.
No começo de novembro dois homens encapuzados assaltaram uma agência bancária na cidade de Eisenach, ex-Leste alemão. No dia 4 eles foram cercados num trailer, em outra cidade, Zwickau.
Diz a polícia que ao entrar no trailer, que estava em chamas, deparou com os dois mortos, e que eles atiraram um no outro. Suicídio a quatro mãos? Uma disputa que desandou em violência? Não se sabe.
O que poderia ser a solução de um caso revelou-se o portal de outro, até agora um verdadeiro saco sem fundo.
No trailer a polícia encontrou várias armas de fogo. Duas delas chamaram mais a atenção do que as outras. Uma pertencera a uma jovem policial assassinada em 2007, na cidade de Heilbronner. A outra fora a arma usada para cometer uma série de crimes, em várias cidades alemãs. Mais exatamente, nove crimes: oito cidadãos de origem turca, um de origem grega, todos donos de pequenas lojas de alimentos. Por isso os assassinos vêm sendo chamados de “Döner-Mörder”. Döner é a palavra para aquele sanduíche de carne típico desses bistrôs. Além das armas, a polícia encontrou um vídeo onde os dois – Uwe Börnhardt e Uwe Mundlos – praticamente confessavam os crimes, e mais 14 assaltos a banco nos últimos treze anos.
No mesmo dia uma casa em Zwickau pegou fogo, depois de uma explosão. Descobriu-se que os dois Uwe(s) moravam nessa casa, e que ela pertencia a Beate Zschäpe, que se entregou à poloícia e está detida, e acusada, primeiro, de ter explodido a própria casa para destruir provas, e segundo, de ser cúmplice, senão mentora, dos crimes cometidos pela dupla.
Os três foram reconhecidos como membros de grupos e atividades neonazistas há pelo menos 20 anos, originários da cidade de Jena. Foram indiciados várias vezes por essas atividades, que na Alemanha são consideradas como criminosas. Entretanto, a partir de 1998 caíram na clandestinidade. Sumiram. Desde então, não participaram das atividades comuns aos grupos neonazistas: panfletagens, comícios embandeirados, agressões públicas contra estrangeiros. Limitaram-se aos assaltos e aos crimes contra os pequenos negociantes estrangeiros, além de outras agressões que não redundaram em morte.
Ainda com relação a esse caso, na segunda-feira passada (14) a polícia deteve um quarto suspeito de estar implicado nas atividades dos outros três, identificado como “Holfer G.”.
Mais ainda: um quinto suspeito, um policial do serviço secreto regional, foi apontado como estando de serviço nas proximidades de seis dos nove assassinatos contra os estrangeiros. Quando esse policial deixou o serviço, trasnferido, os crimes pararam de acontecer. Mais tarde o serviço de inteligência alemão confirmou que um de seus agentes estivera presente pelo menos num dos assassinatos, cometido num internet café, e que ele deixara o local sem nada fazer.
As perguntas começaram a se acumular.
A primeira, mais evidente, é a de como puderam essas pessoas passar tanto tempo na clandestinidade, sem serem nem mesmo incomodadas pela polícia? A suspeita decorrente é a de que de algum modo houve cumplicidade e proteção.
A segunda, que vem sendo feita com insistência também em outros casos, como o do assassino norueguês que matou dezenas de jovens num acampamento do Partido Social Democrata recentemente, remete a se saber por que os serviços secretos não prestaram a devida atenção às ameaças de terrorismo de direita, mesmo quando os indícios se acumulavam. Será por causa de uma obsessão em relação ao terrorismo provável ou só possível apenas por parte de grupos identificados como islâmicos? Houve negligência?
Um acontecimento paralelo, mais antigo, é revelador de uma tendência pré-concebida. Em 2009 uma jovem egípcia foi assassinada por um neonazista (embora sem militância, só com os preconceitos) em pleno tribunal de Dresden. A jovem movia um processo contra ele por agressão e insultos. O réu, que já havia sido condenado em primeira instância, entrou armado com uma faca na sala do tribunal (o detector de metal estava com defeito - !) e matou a jovem a facadas. O marido – um doutorando em Medicina, também egípcio, tentou impedi-lo. Um policial, chamado às pressas, entrou na sala. O que viu? Um homem de aparência germânica (russo descendente de alemães, na verdade) atracado com um outro homem de aparência, genericamente falando, “muçulmana”. O policial não teve dúvida: atirou no egípcio. Não o matou, mas facilitou assim o assassinato que se consumou.
No caso em questão, diante dos assassinatos dos imigrantes, a polícia sempre insistiu de que se tratava de crimes cometidos por uma "máfia turca" que nunca foi descoberta. A investigação mobilizou 160 policiais que, durante anos, vasculharam as atividades de 11 mil suspeitos, sem resultado. A possibilidade de que se tratasse de crimes de extrema-direita foi descartada liminarmente. A investigação foi chamada de "Operação Bósforo", nome do estreito que divide a cidade de Istambul e separa a Europa da Ásia, na Turquia.
Novas pistas conduziram à hipótese de que o trio e quem mais os ajudou sejam também os responsáveis pelo assassinato de um chefe de polícia na Baviera, em 2008. O assassino (que desferiu uma facada no policial, pelas costas) gritou frases nazistas logo em seguida. Descobriu-se também que eles estavam ligados a atentados em Colônia e Düsseldorf, sempre contra estrangeiros, que deixaram mais de 30 feridos, usando, inclousive, bombas de fragmentação. De onde veio esse arsenal todo?
Além disso, há outras perguntas que ficam no ar.
O quê, afinal, se passou no trailer onde os dois assaltantes foram encontrados mortos?
Todos os assassinados (com exceção da policial) eram pequenos comerciantes. Haveria, além do preconceito contra estrangeiros, um esquema de extorsão? Em caso positivo, haveria mais gente na polícia envolvida com um esquema desses?
Seria possível ter havido uma tentativa de queima de arquivo disfarçada de suicídio a quatro mãos ou disputa entre os dois? Se houve disputa, qual o motivo? Qual o papel da mulher nessa disputa? Poderia ela ter sido a assassina dos dois?
Por que a jovem policial foi assassinada em 2007? Teria ela descoberto algo? Teria alguém “descoberto que ela descobrira” algo, e encomendado a sua morte? Além da sua arma, foram encontradas no trailer suas algemas, além do tubo de gás pimenta que lhe pertencia. Por que? Seriam "troféus"?
As motivações do trio/quarteto, parece, passavam tanto por preconceitos quanto por razões financeiras. Por que então o dinheiro roubado em Eisenach foi encontrado queimado no trailer? A temperatura neste foi tão alta que derreteu algumas armas. Por que a da policial e a dos "Dönner-Morder" não derreteram também, nem as algemas? Por que o tubo de gás pimenta não explodiu?
O caso vem provocando uma torrente de debates na mídia e fora dela, envolvendo políticos, autoridades, policiais, associações comunitárias, e começou a repercutir no exterior.“
Uma vergonha”, como muito bem disse a chanceler. Mas também uma preocupação, porque casos assim podem voltar a acontecer. E desconfia-se que isso é apenas a ponta de um iceberg.
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