segunda-feira, 23 de maio de 2011

Obama nunca admitiria ao vivo, para o mundo, que...

Fatos de campo decidirão se os EUA realmente "valorizam a dignidade do vendedor de rua tunisiano, mais que o poder brutal do ditador". Comecemos então com um fato. Para o presidente Barack Obama dos EUA, a Arábia Saudita não fica no Oriente Médio. Talvez a Casa de Saud tenha deslocalizado os desertos e o petróleo para a Oceania, sem contar a ninguém. No discurso da 5ª-feira, do qual se extraiu a frase acima, e no qual, segundo o evangelho da Reuters, Obama "exporia uma nova estratégia dos EUA, dirigida a um mundo árabe cético", nem os céticos árabes, nem, aliás, o resto do mundo, absolutamente, ouviram as palavras fatídicas "Arábia" e "Saudita". Até Índia, Indonésia e Brasil foram mencionados.

Muito difícil explicar como os EUA, sempre segundo o evangelho da Reuters, planejam "modelar o resultado dos levantes populares", se começam por sequer pronunciar o nome da potência do Oriente Médio que está por trás da contrarrevolução que se ergue para esmagar a grande revolta árabe de 2011.

Obama tentou modelar o que os Clintonitas definem como "realismo ambicioso". Está mais para ficção ambiciosa. Ao insistir no conjunto de "princípios" dos EUA e ao tentar nada sutilmente monopolizar todo o campo moral – lançando ordenações sobre mudança de regime, de Muammar Gaddafi ("Já era!") a Bashar al-Assad da Síria ("Ou reforma ou Fora!"), Obama tentou reescrever a história, carimbando "Washington" no coração do impulso dos árabes pró-democracia. Talvez engane os norte-americanos. Não enganou a rua árabe.

Foram precisos três meses para Obama conseguir afinal se pronunciar sobre a dinastia al-Khalifa no Bahrain – e ainda não falou do chefe de todos, a Arábia Saudita. Deixou os ditadores do Bahrain escapar do anzol, com luva de veludo oferecida pelo Departamento de Estado, ao mesmo tempo em que se deslocou na direção de um script aprovado por Riad/Telavive, culpando o Irã, mal-mãe-de-todos-os-males: "Constatamos que o Irã tentou tirar vantagem do torvelinho na região, e que o governo do Bahrain tem interesse legítimo no império da lei. Mesmo assim, temos insistido publicamente e privadamente que as prisões em massa e o uso da força bruta conflitam com os direitos universais dos cidadãos do Bahrain, e não são meio legítimo para impedir as reformas."

É ainda mais orweliano que qualquer simples "força bruta": é a Universidade do Bahrain, por exemplo, obrigando os alunos a assinar juramento de obediência ao governo em que prometem não desafiar a monarquia, sob pena de expulsão.

Para encurtar, eis a versão concisa da Nova Política de Obama para o Oriente Médio. Apoiamos os "nossos" filhos da puta (ditadores) que sejam sofisticados o bastante para espancar, prender e matar seus próprios cidadãos sem ultrapassar o degrau mais baixo das centenas (caso do Bahrain). Nos incomodamos ‘só um pouquinho’ com os "nossos" colaboradores na guerra ao terror que espancam, prendem e matam cruelmente o próprio povo, sem sair do padrão "poucas centenas" de vítimas (Iêmen). Estamos fortemente inclinados a reduzir muito nosso apoio a ditadores pouco confiáveis, aliados ao Irã, que espancam, prendem e matam seu próprio povo à escala de "muitas centenas" (Síria).

Declaramos guerra –usando a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) como se fosse braço armado da ONU– contra ditadores encharcados em petróleo e nada confiáveis que espancam, prendem e matam o próprio povo em números pressupostos de milhares (Líbia). E não diremos palavra, mudez total, sobre os "nossos" filhos da puta e monarcas que impedem preventivamente que se ouça qualquer protesto democrático (Jordânia, Marrocos, Arábia Saudita) ou invadem territórios próximos para massacrar qualquer protesto pacífico (Arábia Saudita).

‘Solução final’ ou morte!

Sobre a questão absolutamente central para todo o mundo árabe, Obama fez como se manifestasse prudência e equilíbrio e apoiasse uma solução de dois estados para Israel/Palestina, nas fronteiras de 1967, "com fronteiras permanentes entre a Palestina e Israel, Jordânia e Egito, e fronteiras permanentes entre Israel e a Palestina". É o cutucão mãe de todos os cutucões, fingindo que assim poria fim a todos os cutucões: nenhum governo israelense jamais aceitará tal ideia –nem que, como Obama sugeriu-, ganhe o direito de decidir que percentagem quer conservar, das terras palestinas que roubou.

Israel jamais definiu as próprias fronteiras. Desde 1948 –de fato, desde antes–, os sionistas sonham com uma "Grande Israel" do Nilo ao Eufrates. Como o Eufrates não estava e hoje está ainda muito menos à venda, os sionistas optaram por ocupar toda a Palestina do Mandato britânico. Esse é o significado (sempre ocultado) de o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu insistir em que os palestinos reconheçam Israel como "o estado judeu" [expressão que Obama, sim, usou no discurso, reconhecendo, portanto, o próprio
Obama, o "estado judeu" dos sonhos sionistas (NTs)].

Se os palestinos reconhecerem algum "estado judeu", 1,5 milhão de palestinos –que já são subcidadãos em Israel– ficariam instantaneamente sem nação e seriam expulsos em massa para o bantustão palestino, configurado como "solução final" para o "problema demográfico" dos sionistas.

O conjunto de condições que os palestinos teriam de aceitar foi como Obama repetir um press release emitido em Telavive: contra a unificação dos partidos Hamas e Fatah; e contra o plano de os palestinos requerem que a Assembleia Geral da ONU, em setembro, reconheça o estado palestino. Nem um pio sobre a expansão das colônias já construídas em territórios ocupados da Cisjordânia; apenas uma solicitação a Israel para que cesse "atividades de assentamento" (o que é isso?! Será primo da "atividade militar cinética"?) Não surpreende que a imprensa em Israel esteja festejando o discurso como vitória de Netanyahu.

E quando Obama disse que "adiamentos sem fim não farão desaparecer o problema", aí, errou completamente. Adiamentos sem fim estão, sim, fazendo desaparecer o problema, estão fazendo a limpeza étnica do problema. Exatamente porque sempre usaram a tática dos "adiamentos sem fim" é que todos os governos israelenses jamais pararam de construir nos territórios ocupados, até cercarem completamente Jerusalém Leste, ao mesmo tempo em que, sem parar um dia, usaram uma estratégia de "dividir para governar" (jogando o Fatah contra o Hamás) para debilitar o moral e a resistência dos palestinos.

Nenhuma retórica de florilégio consegue ocultar o fato de que se tratou, só e sempre, de "proteger" Israel (mencionada 28 vezes no discurso). Quem queira ainda mais provas, espere o fim de semana, quando Obama falará na Conferência Anual do American Israel Public Affairs Committee, AIPAC [Comitê EUA-Israel de Assuntos Públicos]; e depois, na 2ª-feira, quando Netanyahu falará àquele parlatório deslocalizado de Telavive conhecido como Congresso dos EUA.

Por hora, a rua árabe esbraveja que Obama estragou tudo, de vez. E Israel, furiosa, disse que não, não, não, nenhuma concessão, em nenhum caso.

A culpa é do "crescente xiita"

Obama e sua retórica escorregadia jamais poriam em risco o pacto de trocar petróleo-por-segurança que liga os EUA aos sauditas e ambos ao diabo. (O lado preferido do diabo ainda é tema a ser debatido). Sobretudo quando a Casa de Saud –e os fabricantes norte-americanos de armas– lambem os beiços, antegozando um negócio monstro de $60 bilhões, que envolve dúzias de jatos de combate F-15, que hão de derrotar a "ameaça existencial" chamada Irã. (Epa! Mas não é o que Israel repete, à guisa de explicação para o que faz? Ora... EUA, Israel... É tudo a mesma coisa.)

Obama nunca, em nenhum caso, admitiria ao vivo, para o mundo, que está em curso uma contrarrevolução na qual se reúnem EUA, Arábia Saudita e Israel, ativos desde o final de fevereiro, para esmagar a grande revolta árabe de 2011 – como Asia Times Online noticia desde o início.

Obama em nenhum caso admitiria que a arma de escolha dessa contrarrevolução é o chamado "antixiismo" – contra os xiitas persas no Irã, tanto quanto contra os xiitas árabes no Bahrain, na Arábia Saudita, no Iraque, no Líbano, em Omã e na Síria. Epa! Em sentido trágico, mas previsível, aí está uma estratégia típica da al-Qaeda!

Obama em nenhum caso admitiria que a ideia do "crescente xiita" –invenção do rei Abdullah II, rei-de-Playstation da Jordânia, em 2004– foi desengavetada, deram-lhe uma espanada para tirar o pó, e está sendo usada, esperam eles todos, com mais sucesso.

Obama em nenhum caso admitiria que a obsessão demente de Washington contra o Irã – demência à qual Israel acrescenta combustível e assopra – já pode ser vista hoje, graficamente exposta, como preconceito sectário de EUA/Sauditas/Israel contra o xiismo. (E que consagração para os xiitas, serem discriminados, simultaneamente, pelos preconceitos religiosos de cristãos/judeus/wahabitas, unidos todos numa só "coalizão de vontades"!)

Obama em nenhum caso admitiria que –como observou Joseph Massad, professor de política árabe em Columbia (um dos raros comentaristas que viu a identidade)– "a repressão violenta apoiada pelos EUA no Bahrain, na Arábia Saudita, em Omã, no Iêmen, na Jordânia, no Marrocos, na Argélia e nos Emirados Árabes Unidos anda de mãos dadas com a intervenção por EUA-UE-Qatar na Líbia. Em todos os casos, trata-se de salvaguardar os poços de petróleo para as empresas do ocidente, depois de haver novos governos nos países em que os cidadãos levantaram-se e exigiram democracia."

Obama em nenhum caso admitiria que a luta em curso, da qual depende a definição dos tempos que vivemos, trava-se entre a grande revolta árabe de 2011, conduzida nas ruas pelas multidões, e a contrarrevolução comandada por EUA/Arábia Saudita/Israel.

As classes do diz-que-disse em Washington apelidaram o discurso de "Cairo II" – atualização do discurso original, em 2009, para "vender" democracia ao mundo árabe. Washington comprou o discurso: encontrou baratinho, em banca de saldão.

Cairo, isso sim, teria muito mais a dizer sobre democracia no mundo árabe, que a retórica de Obama em versão "Yes-vocês-podem-acreditar-se-se-esforçarem".

Temos de esperar que o Cairo e o resto do Egito consigam eleger governo soberano e independente. Se acontecer, então, sim, começará a revolução árabe real. Agora, somos todos egípcios.

Pepe Escobar
Global Research / Asia Times Online
 

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