Quais são as vidas que valem mais?
Bin Laden provocou a morte de cerca de duas mil e seiscentas pessoas nos EUA, audácia que foi punida com seu assassinato. O sérvio Radko Mladic ordenou a morte de oito mil europeus brancos e será julgado no Tribunal Penal Internacional. Bernard Munyagishari, um dos líderes do genocídio de Ruanda (foto), levou a cabo a execução de 800 mil negros africanos, numa das mais tristes tragédias do século XX. De sua captura nem se ouviu falar. Atentados no solo da potência hegemônica, genocídio de brancos na Europa e genocídio de negros na África são crimes muito diferentes? Quais são as vidas que valem mais? O artigo é de Larissa Ramina.
Por ocasião do assassinato de Bin Laden, muitas declarações de autoridades ao redor do globo atestaram que a justiça fora feita. Evidente inverdade. Não se trata de defender o terrorismo, a Al Qaeda ou o próprio Bin Laden. Por óbvio, ninguém poderá ser insensível à tragédia de 11 de setembro, nem tampouco desejar que os culpados não sejam julgados e condenados. Entretanto, para condenar é necessário julgar.
Não é possível falar em justiça quando um homem é assassinado por um comando em um país estrangeiro ao seu, ainda que seja um terrorista do calibre de Bin Laden. Trata-se da aplicação da Lei de Talião: olho por olho, dente por dente, ou em outras palavras, vingança. Ao contrário da justiça, a vingança não impõe uma investigação que confronte os fatos, a produção de provas, o trabalho de advogados e promotores, com respeito ao princípio da legalidade, da ampla defesa e do contraditório. A vingança não exige uma condenação com circunstâncias atenuantes ou agravantes, e uma pena dela resultante. Assassinar um terrorista não é, portanto, fazer justiça. É assassinato. Podemos ponderar que mesmo o julgamento de Nuremberg seria mais legítimo do que a morte de Bin Laden.
A operação norte-americana que assassinou o terrorista em Abbottabad faz lembrar a tentativa de resgate dos reféns da Embaixada dos EUA em Teerã, por ocasião da Revolução Islâmica comandada pelo Aiatolá Khomeini em 1979. Jimmy Carter, na época, orquestrou uma operação militar audaciosa que foi mal-sucedida, fazendo com que perdesse a reeleição para Ronald Reagan. Provavelmente Obama não amargará sorte semelhante, apesar de ter violado a soberania do Paquistão e princípios fundamentais do direito internacional e dos direitos humanos.
Poucos dias depois da operação em Abbottabad, a Sérvia anunciou a prisão de Radko Mladic, que será levado a julgamento perante o Tribunal Penal Internacional sediado em Haia. Provavelmente a localização de Bin Laden fez com que a Sérvia, que pretende abrir caminho para uma futura adesão à União Europeia, perdesse argumentos para continuar acobertando o “Açougueiro da Bósnia” ou o “Átila dos Balcãs”.
Mladic é responsabilizado pelo massacre de Srebrenica de julho de 1995, o pior extermínio étnico perpetrado em solo europeu após a 2ª Guerra Mundial. Oito mil homens e meninos bósnios-muçulmanos foram exterminados num campo de refugiados sob proteção de trezentos soldados das Nações Unidas. Falha inexplicável, agravada pela lentidão da reação ocidental, que veio somente após três dias de matança.
Nesse mesmo dia, foi anunciada a prisão no Congo de Bernard Munyagishari, líder da milícia hutu Interahamwe e um dos responsáveis pelo genocídio de Ruanda, em 1994. Na ocasião, oitocentos mil tutsis e hutus moderados foram assassinados, e milhares de mulheres tutsis foram estupradas sob os olhos inertes da comunidade internacional. O acusado será julgado no Tribunal Penal Internacional para a Ruanda, com sede na Tanzânia, mas a notícia não mereceu a devida atenção da mídia ocidental.
Quais são as razões para tratamentos tão diferentes? Bin Laden provocou a morte de cerca de duas mil e seiscentas pessoas em solo norte-americano, audácia que foi punida com seu assassinato. Mladic ordenou a morte de oito mil europeus brancos, será julgado no Tribunal Penal Internacional, e sua captura foi festejada no Ocidente como o fim do isolamento internacional da Sérvia. Munyagishari, um dos líderes do genocídio na Ruanda, levou a cabo a execução de oitocentos mil negros africanos, numa das mais tristes tragédias do século XX. De sua captura nem se ouviu falar. Atentados no solo da potência hegemônica, genocídio de brancos na Europa e genocídio de negros na África são crimes muito diferentes? Quais são as vidas que valem mais? (Larissa ramina - CM)
Não é possível falar em justiça quando um homem é assassinado por um comando em um país estrangeiro ao seu, ainda que seja um terrorista do calibre de Bin Laden. Trata-se da aplicação da Lei de Talião: olho por olho, dente por dente, ou em outras palavras, vingança. Ao contrário da justiça, a vingança não impõe uma investigação que confronte os fatos, a produção de provas, o trabalho de advogados e promotores, com respeito ao princípio da legalidade, da ampla defesa e do contraditório. A vingança não exige uma condenação com circunstâncias atenuantes ou agravantes, e uma pena dela resultante. Assassinar um terrorista não é, portanto, fazer justiça. É assassinato. Podemos ponderar que mesmo o julgamento de Nuremberg seria mais legítimo do que a morte de Bin Laden.
A operação norte-americana que assassinou o terrorista em Abbottabad faz lembrar a tentativa de resgate dos reféns da Embaixada dos EUA em Teerã, por ocasião da Revolução Islâmica comandada pelo Aiatolá Khomeini em 1979. Jimmy Carter, na época, orquestrou uma operação militar audaciosa que foi mal-sucedida, fazendo com que perdesse a reeleição para Ronald Reagan. Provavelmente Obama não amargará sorte semelhante, apesar de ter violado a soberania do Paquistão e princípios fundamentais do direito internacional e dos direitos humanos.
Poucos dias depois da operação em Abbottabad, a Sérvia anunciou a prisão de Radko Mladic, que será levado a julgamento perante o Tribunal Penal Internacional sediado em Haia. Provavelmente a localização de Bin Laden fez com que a Sérvia, que pretende abrir caminho para uma futura adesão à União Europeia, perdesse argumentos para continuar acobertando o “Açougueiro da Bósnia” ou o “Átila dos Balcãs”.
Mladic é responsabilizado pelo massacre de Srebrenica de julho de 1995, o pior extermínio étnico perpetrado em solo europeu após a 2ª Guerra Mundial. Oito mil homens e meninos bósnios-muçulmanos foram exterminados num campo de refugiados sob proteção de trezentos soldados das Nações Unidas. Falha inexplicável, agravada pela lentidão da reação ocidental, que veio somente após três dias de matança.
Nesse mesmo dia, foi anunciada a prisão no Congo de Bernard Munyagishari, líder da milícia hutu Interahamwe e um dos responsáveis pelo genocídio de Ruanda, em 1994. Na ocasião, oitocentos mil tutsis e hutus moderados foram assassinados, e milhares de mulheres tutsis foram estupradas sob os olhos inertes da comunidade internacional. O acusado será julgado no Tribunal Penal Internacional para a Ruanda, com sede na Tanzânia, mas a notícia não mereceu a devida atenção da mídia ocidental.
Quais são as razões para tratamentos tão diferentes? Bin Laden provocou a morte de cerca de duas mil e seiscentas pessoas em solo norte-americano, audácia que foi punida com seu assassinato. Mladic ordenou a morte de oito mil europeus brancos, será julgado no Tribunal Penal Internacional, e sua captura foi festejada no Ocidente como o fim do isolamento internacional da Sérvia. Munyagishari, um dos líderes do genocídio na Ruanda, levou a cabo a execução de oitocentos mil negros africanos, numa das mais tristes tragédias do século XX. De sua captura nem se ouviu falar. Atentados no solo da potência hegemônica, genocídio de brancos na Europa e genocídio de negros na África são crimes muito diferentes? Quais são as vidas que valem mais? (Larissa ramina - CM)
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A antielitização latino-americana
As elites latino-americanas enfrentam uma crise de identidade e estão vendo encurralada sua capacidade ideológica para transfigurar seus interesses privados em projetos políticos majoritários próprios ou afins. Essas elites perderam seus pontos de referência. Elas sempre se refugiaram e se legitimaram em seus vínculos com os países centrais e na promessa de trazer o exterior para o continente como modelo para a modernização do arcaico e do periférico. Mas olhar “para fora” hoje em dia não é motivo de muito entusiasmo. O artigo é de Amílcar Salas Oroño.
1. Boa parte das forças políticas opositoras latino-americanas evidenciam hoje uma crise de identidade. Encontram-se em um pântano de ideias, uma frustração frente a certas propostas políticas impulsionadas por alguns governos da região. Trata-se de uma situação que não é simplesmente de superfície: no fundo, ocorre que as elites latino-americanas estão vendo encurralada sua capacidade ideológica para transfigurar seus interesses privados em projetos políticos majoritários próprios ou afins. Neste sentido, um processo de antielitização latino-americana parece também estar constituindo a cena contemporânea.
2. O dilema para estas forças opositoras é que elas incorporaram quase como único e relevante princípio de ação aquilo que é indispensável para as elites: reeditar uma possível “harmonia” dos interesses sociais, tornarem-se os garantidores de uma sociedade sem conflitos na qual primem os mecanismos “naturais” de resolução de demandas, junto com as posições de privilégio. Frente às “desmedidas” dos governos, a importância prática do “equilíbrio”. Pode-se dizer que elites e forças opositoras se mimetizam, ou melhor, se complementam: os setores opositores funcionam como descarga discursiva das elites, com o apoio dos meios massivos de comunicação. Mas essa mesma pretensão do “fim dos conflitos” apresenta hoje em dia sérios problemas para relançar-se teoricamente em alguns países.
3. Não é no nível concreto da geração de riqueza ou em fatores de poder que as elites perderam terreno, mas sim em uma dimensão que também resulta fundamental para a dialética social: os imaginários coletivos. As elites não estão conseguindo atravessar e organizar discursivamente há algum tempo os diferentes níveis de linguagem das sociedades. Como dado eloquente, cabe destacar que as manchetes do Clarín e do La Nación, na Argentina, do ABC, no Paraguai, ou do Estadão e da Folha de São Paulo, no Brasil, já não geram a mesma comoção na opinião pública. Neste sentido, a capacidade das elites para promover uma extensão de seus (auto) princípios de legitimação – com seus valores, modelos de relações sociais e metas coletivas – está fortemente afetada; é como se uma brecha tivesse sido aberta entre suas interpretações e os imaginários coletivos.
Esta circunstância se deve, fundamentalmente, ao fato de que as elites periféricas perderam seus pontos de referência. Elas sempre se refugiaram e se legitimaram em seus vínculos com os países centrais e na promessa de trazer o exterior para o continente como modelo para a modernização do arcaico e do periférico. Mas olhar “para fora” hoje em dia não é motivo de muito entusiasmo: crises especulativas com prejuízos na casa dos bilhões, deslocamento forçado de contingentes de imigrantes, perseguições religiosas, modelos de sociedade baseados na redução salarial e no ataque a direitos adquiridos, ou então o avanço de valores como os que impulsionam o Tea Party, nos EUA, ou os partidos de direita na Suécia e na Hungria.
4. Esta desorientação habilita, por sua vez, o giro “antielitista”: arraigam-se outros princípios ordenadores nos imaginários latino-americanos. Há novos sentidos comuns e outras dinâmicas – e outras maneiras de descrevê-las – vinculados com as agendas públicas de certos países: se no Brasil, talvez pela primeira vez em sua história, percebe-se coletivamente a possibilidade de uma mobilidade social para os setores subalternos, isso se deve ao impacto de determinadas políticas, como a reversão da primazia do trabalho informal sobre o formal ou os milhões de novos estudantes que tiveram acesso à universidade; na Venezuela, o declarado “anti-imperialismo” cultural e institucional construiu, como mostram alguns estudos, outros tipos de interação e modelos de relações sociais, inclusive domésticas, a respeito do que implica uma sociedade do consumo; o mesmo poderia se dizer sobre o “bem viver” no Equador ou Bolívia, capítulos constitucionais que, burocraticamente, colocam reparos práticos às tentações neoextrativistas e, ao mesmo tempo, reasseguram sua particularidade política histórica: a inclusão de identidade indígena em seus projetos; ou na Argentina, onde a “democratização” de certos aspectos cotidianos, como o matrimônio igualitário ou a pluralidade da informação, reconfigura o caráter do significado do progresso pessoal.
5. Estas fórmulas, que lutam espiritualmente com outras não tão auspiciosas e também creditáveis aos governos em questão, atravessam os imaginários sociais e se incorporam aos universos simbólicos da cidadania, orientam e organizam a absorção das interpretações circulantes: de alguma maneira, constituem-se nas barreiras ideológicas que encontram as elites para impor suas ideias. Não se trata, como diz Beatriz Sarlo, de uma simples “batalha cultural”; deve reconhecer-se como um avanço político o fato de que os modelos societários das elites estejam sem possibilidades de movimento e capilaridade.
Isso não anula a debilidade e a falta de organicidade com as quais se dão as mudanças, ou que apareçam fricções no interior das coalizões governamentais: ocorre no Equador com a Aliança País e os movimentos sociais, com Dilma Rousseff e a bancada parlamentar do PMDB, ou entre o governo e a CGT na Argentina. Mas essas fricções não são em torno de outros mapas conceituais, como gostariam os meios de comunicação conservadores e as elites, mas sim no interior de um mesmo quadro de ideias – assumidos com maior ou menor honestidade pelos atores – precisamente aquele que, posto em movimento, gera uma antielitização das linguagens de baixo para cima.
6. Os imaginários sociais não são realidades secundárias: ali também se colocam questões chave para o futuro. Está claro que não há condições objetivas para uma radical “mudança de época” na América Latina. No entanto, há certas condições subjetivas, no plano dos imaginários, que parecem ter dado um salto otimista, e que são consequência da interação com certas políticas públicas; daí a crise de identidade e de perspectiva de certas elites e forças opositoras. A região apresenta uma diferença em relação a outras latitudes: ao invés de levantar muros entre comunidades, talvez seja o momento para assumir em sua verdadeira dimensão conceitual aquilo que está comprometido socialmente com a originalidade latino-americana; como insistia José Carlos Mariátegui: nem imitação, nem cópia...criação heroica. (Almicar Salas Oroño - Página/12)
2. O dilema para estas forças opositoras é que elas incorporaram quase como único e relevante princípio de ação aquilo que é indispensável para as elites: reeditar uma possível “harmonia” dos interesses sociais, tornarem-se os garantidores de uma sociedade sem conflitos na qual primem os mecanismos “naturais” de resolução de demandas, junto com as posições de privilégio. Frente às “desmedidas” dos governos, a importância prática do “equilíbrio”. Pode-se dizer que elites e forças opositoras se mimetizam, ou melhor, se complementam: os setores opositores funcionam como descarga discursiva das elites, com o apoio dos meios massivos de comunicação. Mas essa mesma pretensão do “fim dos conflitos” apresenta hoje em dia sérios problemas para relançar-se teoricamente em alguns países.
3. Não é no nível concreto da geração de riqueza ou em fatores de poder que as elites perderam terreno, mas sim em uma dimensão que também resulta fundamental para a dialética social: os imaginários coletivos. As elites não estão conseguindo atravessar e organizar discursivamente há algum tempo os diferentes níveis de linguagem das sociedades. Como dado eloquente, cabe destacar que as manchetes do Clarín e do La Nación, na Argentina, do ABC, no Paraguai, ou do Estadão e da Folha de São Paulo, no Brasil, já não geram a mesma comoção na opinião pública. Neste sentido, a capacidade das elites para promover uma extensão de seus (auto) princípios de legitimação – com seus valores, modelos de relações sociais e metas coletivas – está fortemente afetada; é como se uma brecha tivesse sido aberta entre suas interpretações e os imaginários coletivos.
Esta circunstância se deve, fundamentalmente, ao fato de que as elites periféricas perderam seus pontos de referência. Elas sempre se refugiaram e se legitimaram em seus vínculos com os países centrais e na promessa de trazer o exterior para o continente como modelo para a modernização do arcaico e do periférico. Mas olhar “para fora” hoje em dia não é motivo de muito entusiasmo: crises especulativas com prejuízos na casa dos bilhões, deslocamento forçado de contingentes de imigrantes, perseguições religiosas, modelos de sociedade baseados na redução salarial e no ataque a direitos adquiridos, ou então o avanço de valores como os que impulsionam o Tea Party, nos EUA, ou os partidos de direita na Suécia e na Hungria.
4. Esta desorientação habilita, por sua vez, o giro “antielitista”: arraigam-se outros princípios ordenadores nos imaginários latino-americanos. Há novos sentidos comuns e outras dinâmicas – e outras maneiras de descrevê-las – vinculados com as agendas públicas de certos países: se no Brasil, talvez pela primeira vez em sua história, percebe-se coletivamente a possibilidade de uma mobilidade social para os setores subalternos, isso se deve ao impacto de determinadas políticas, como a reversão da primazia do trabalho informal sobre o formal ou os milhões de novos estudantes que tiveram acesso à universidade; na Venezuela, o declarado “anti-imperialismo” cultural e institucional construiu, como mostram alguns estudos, outros tipos de interação e modelos de relações sociais, inclusive domésticas, a respeito do que implica uma sociedade do consumo; o mesmo poderia se dizer sobre o “bem viver” no Equador ou Bolívia, capítulos constitucionais que, burocraticamente, colocam reparos práticos às tentações neoextrativistas e, ao mesmo tempo, reasseguram sua particularidade política histórica: a inclusão de identidade indígena em seus projetos; ou na Argentina, onde a “democratização” de certos aspectos cotidianos, como o matrimônio igualitário ou a pluralidade da informação, reconfigura o caráter do significado do progresso pessoal.
5. Estas fórmulas, que lutam espiritualmente com outras não tão auspiciosas e também creditáveis aos governos em questão, atravessam os imaginários sociais e se incorporam aos universos simbólicos da cidadania, orientam e organizam a absorção das interpretações circulantes: de alguma maneira, constituem-se nas barreiras ideológicas que encontram as elites para impor suas ideias. Não se trata, como diz Beatriz Sarlo, de uma simples “batalha cultural”; deve reconhecer-se como um avanço político o fato de que os modelos societários das elites estejam sem possibilidades de movimento e capilaridade.
Isso não anula a debilidade e a falta de organicidade com as quais se dão as mudanças, ou que apareçam fricções no interior das coalizões governamentais: ocorre no Equador com a Aliança País e os movimentos sociais, com Dilma Rousseff e a bancada parlamentar do PMDB, ou entre o governo e a CGT na Argentina. Mas essas fricções não são em torno de outros mapas conceituais, como gostariam os meios de comunicação conservadores e as elites, mas sim no interior de um mesmo quadro de ideias – assumidos com maior ou menor honestidade pelos atores – precisamente aquele que, posto em movimento, gera uma antielitização das linguagens de baixo para cima.
6. Os imaginários sociais não são realidades secundárias: ali também se colocam questões chave para o futuro. Está claro que não há condições objetivas para uma radical “mudança de época” na América Latina. No entanto, há certas condições subjetivas, no plano dos imaginários, que parecem ter dado um salto otimista, e que são consequência da interação com certas políticas públicas; daí a crise de identidade e de perspectiva de certas elites e forças opositoras. A região apresenta uma diferença em relação a outras latitudes: ao invés de levantar muros entre comunidades, talvez seja o momento para assumir em sua verdadeira dimensão conceitual aquilo que está comprometido socialmente com a originalidade latino-americana; como insistia José Carlos Mariátegui: nem imitação, nem cópia...criação heroica. (Almicar Salas Oroño - Página/12)
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Sociedade civil se mobiliza contra a “cidade neoliberal”
Segundo a Carta do Rio, aprovada no Fórum Social Urbano, as empresas transnacionais e as agências multilaterais, assim como seus ideólogos e representantes políticos, têm um modelo próprio de cidade ideal: “É a cidade globalizada, associada aos mercados globais por fluxos e hierarquias e submetida aos interesses daqueles poucos que controlam e regulam os mercados desde seus escritórios nas metrópoles centrais”
RIO DE JANEIRO - Os representantes de movimentos sociais, universidades, ONGs e sindicatos reunidos no Fórum Social Urbano - evento paralelo ao Fórum Urbano Mundial, realizado no Rio de Janeiro - votaram ao final do encontro um documento no qual “convocam todos os que lutam contra a cidade neoliberal, a serviço do mercado e do capital, a unirem-se, solidários, num movimento internacional pelo direito à cidade e pela democracia e justiça urbanas”. Batizado como Carta do Rio, o documento foi aprovado na sexta-feira (26) e será encaminhado a uma comissão responsável por sua redação final.
Segundo a Carta do Rio, as empresas transnacionais e as agências multilaterais, assim como seus ideólogos e representantes políticos, têm um modelo próprio de cidade ideal: “É a cidade globalizada, associada aos mercados globais por fluxos e hierarquias e submetida aos interesses daqueles poucos que controlam e regulam os mercados desde seus escritórios nas metrópoles centrais”. O documento afirma ainda que o modelo neoliberal prega a existência de uma cidade “dirigida por administradores-empreendedores, livre de qualquer controle público e ávida por parcerias público-privadas”.
Para os participantes do FSU, as conseqüências dessa visão de cidade são perversas e evidentes: “Mais desigualdade, mais desemprego, pobreza crescente, degradação da qualidade de vida para milhões, injustiça e crise ambientais, aumento da violência, criminalização dos pobres, frustração e desespero”. No modelo urbano neoliberal, prossegue a Carta do Rio, “a cidade se transfigura numa aglomeração de cidadelas para os ricos, enclaves para as classes médias, bairros vulneráveis para as classes trabalhadoras e guetos para os mais pobres e grupos discriminados”.
A última crise financeira global, segundo o documento, fez “cair definitivamente a máscara” do modelo urbano neoliberal: “Tendo por origem a mercantilização e financeirização ilimitada das cidades, a crise se rebate sobre essas mesmas cidades, com mais desemprego, mais trabalhadores sem teto, mais desigualdade”. No entanto, dizem os participantes do FSU, “as grandes corporações e agências multilaterais não têm nada a oferecer a não ser mais do mesmo” às cidades: “No contexto de uma nova e perversa distribuição desigual dos ônus da crise, a cidade se reafirma como lugar de produção e reprodução da desigualdade e da pobreza urbanas”.
A Carta do Rio defende a criação de alternativas ao modelo neoliberal, “baseadas em valores e objetivos diferenciados, em outros ideais de cidade, numa urbanidade e num planejamento urbano insurgentes, que desafiam e contrariam o mercado”. As alternativas, segundo os participantes do FSU, já começam a aparecer: “Mundo afora vêm brotando alternativas a este modelo de cidade. Em muitas cidades com governos progressistas, populares e democráticos, mas também em bairros e comunidades dentro de cidades sob hegemonia neoliberal”.
Movimento internacional
Feito o diagnóstico da crise do modelo neoliberal de cidade, o próximo passo, de acordo com o FSU, é aprofundar o movimento internacional alternativo. Para tanto, ficou definido que 25 de março passa a ser “o dia internacional de luta pelo direito à cidade e pela democracia e justiça urbanas”. Também foi decidida a realização do segundo Fórum Social Urbano daqui a dois anos, quando acontecerá a próxima edição do Fórum Urbano Mundial: “Estamos agora desafiados a dar um novo passo: construir e estruturar um forte movimento que cimente nossa solidariedade internacional e nos ajude a coletar, organizar e difundir nossas conquistas”.
A iniciativa de mobilização internacional é importante, pois raras têm sido as oportunidades, segundo a Carta do Rio, de reunir os militantes das lutas urbanas entre si e destes com pesquisadores, planejadores e urbanistas progressistas: “Apesar de sua riqueza e universalidade, raramente tais experiências têm sido olhadas e pensadas como um processo qualitativamente novo e, sobretudo, com uma dinâmica abrangente, capaz de oferecer novas maneiras de desafiar a agenda urbana dominante”, diz o documento.
Criado em Harvard
Um dos organizadores do FSU, o professor Carlos Vainer, da UFRJ, afirma que “o plano estratégico das cidades neoliberais é criado em Harvard e obedece a um modelo empresarial”. Essa forma de pensar e organizar a realidade urbana, segundo Vainer, tem como base um tripé que coloca a cidade como mercadoria, empresa e pátria: “A idéia de cidade mercadoria, por exemplo, está presente nos planejamentos do Rio de Janeiro, de Lisboa (Portugal) ou de Rosário (Argentina). É sempre o mesmo blá-blá-blá, com a cidade sendo apresentada como um objeto de luxo a ser vendido para um cliente preferencial, que é o grande capital internacional”.
Vainer afirma que o conceito de cidade empresa, por sua vez, é aquele que coloca como prioridade a necessidade de aumentar o poder de atração e a competitividade das cidades num cenário de intensa concorrência neoliberal: “É a cidade entregue aos empresários”, resume. Por fim, o conceito de cidade pátria, segundo o professor, é aquele que “realiza a idéia de cidadania sem política, onde toda divergência é uma ameaça a nossa competitividade”. Como exemplo, Vainer cita a mobilização das elites dirigentes em torno da realização das Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016: “O uso patriótico desse tipo de evento, na base do ame-o ou deixe-o, busca tornar refém a maior parte da população da cidade”. (Maurício Thuswuoi - CM)
Segundo a Carta do Rio, as empresas transnacionais e as agências multilaterais, assim como seus ideólogos e representantes políticos, têm um modelo próprio de cidade ideal: “É a cidade globalizada, associada aos mercados globais por fluxos e hierarquias e submetida aos interesses daqueles poucos que controlam e regulam os mercados desde seus escritórios nas metrópoles centrais”. O documento afirma ainda que o modelo neoliberal prega a existência de uma cidade “dirigida por administradores-empreendedores, livre de qualquer controle público e ávida por parcerias público-privadas”.
Para os participantes do FSU, as conseqüências dessa visão de cidade são perversas e evidentes: “Mais desigualdade, mais desemprego, pobreza crescente, degradação da qualidade de vida para milhões, injustiça e crise ambientais, aumento da violência, criminalização dos pobres, frustração e desespero”. No modelo urbano neoliberal, prossegue a Carta do Rio, “a cidade se transfigura numa aglomeração de cidadelas para os ricos, enclaves para as classes médias, bairros vulneráveis para as classes trabalhadoras e guetos para os mais pobres e grupos discriminados”.
A última crise financeira global, segundo o documento, fez “cair definitivamente a máscara” do modelo urbano neoliberal: “Tendo por origem a mercantilização e financeirização ilimitada das cidades, a crise se rebate sobre essas mesmas cidades, com mais desemprego, mais trabalhadores sem teto, mais desigualdade”. No entanto, dizem os participantes do FSU, “as grandes corporações e agências multilaterais não têm nada a oferecer a não ser mais do mesmo” às cidades: “No contexto de uma nova e perversa distribuição desigual dos ônus da crise, a cidade se reafirma como lugar de produção e reprodução da desigualdade e da pobreza urbanas”.
A Carta do Rio defende a criação de alternativas ao modelo neoliberal, “baseadas em valores e objetivos diferenciados, em outros ideais de cidade, numa urbanidade e num planejamento urbano insurgentes, que desafiam e contrariam o mercado”. As alternativas, segundo os participantes do FSU, já começam a aparecer: “Mundo afora vêm brotando alternativas a este modelo de cidade. Em muitas cidades com governos progressistas, populares e democráticos, mas também em bairros e comunidades dentro de cidades sob hegemonia neoliberal”.
Movimento internacional
Feito o diagnóstico da crise do modelo neoliberal de cidade, o próximo passo, de acordo com o FSU, é aprofundar o movimento internacional alternativo. Para tanto, ficou definido que 25 de março passa a ser “o dia internacional de luta pelo direito à cidade e pela democracia e justiça urbanas”. Também foi decidida a realização do segundo Fórum Social Urbano daqui a dois anos, quando acontecerá a próxima edição do Fórum Urbano Mundial: “Estamos agora desafiados a dar um novo passo: construir e estruturar um forte movimento que cimente nossa solidariedade internacional e nos ajude a coletar, organizar e difundir nossas conquistas”.
A iniciativa de mobilização internacional é importante, pois raras têm sido as oportunidades, segundo a Carta do Rio, de reunir os militantes das lutas urbanas entre si e destes com pesquisadores, planejadores e urbanistas progressistas: “Apesar de sua riqueza e universalidade, raramente tais experiências têm sido olhadas e pensadas como um processo qualitativamente novo e, sobretudo, com uma dinâmica abrangente, capaz de oferecer novas maneiras de desafiar a agenda urbana dominante”, diz o documento.
Criado em Harvard
Um dos organizadores do FSU, o professor Carlos Vainer, da UFRJ, afirma que “o plano estratégico das cidades neoliberais é criado em Harvard e obedece a um modelo empresarial”. Essa forma de pensar e organizar a realidade urbana, segundo Vainer, tem como base um tripé que coloca a cidade como mercadoria, empresa e pátria: “A idéia de cidade mercadoria, por exemplo, está presente nos planejamentos do Rio de Janeiro, de Lisboa (Portugal) ou de Rosário (Argentina). É sempre o mesmo blá-blá-blá, com a cidade sendo apresentada como um objeto de luxo a ser vendido para um cliente preferencial, que é o grande capital internacional”.
Vainer afirma que o conceito de cidade empresa, por sua vez, é aquele que coloca como prioridade a necessidade de aumentar o poder de atração e a competitividade das cidades num cenário de intensa concorrência neoliberal: “É a cidade entregue aos empresários”, resume. Por fim, o conceito de cidade pátria, segundo o professor, é aquele que “realiza a idéia de cidadania sem política, onde toda divergência é uma ameaça a nossa competitividade”. Como exemplo, Vainer cita a mobilização das elites dirigentes em torno da realização das Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016: “O uso patriótico desse tipo de evento, na base do ame-o ou deixe-o, busca tornar refém a maior parte da população da cidade”. (Maurício Thuswuoi - CM)
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Plano anti-miséria quer achar 800 mil famílias fora do Bolsa Família
Em entrevista exclusiva à Carta Maior, Secretária Extraordinária de Combate à Pobreza Extrema, Ana Fonseca, conta que programa de erradicação da miséria tentará achar brasileiros ignorados pelo Estado com direito à transferência de renda. Previsto para ser lançado dia 2 de junho, plano terá metas anuais, ênfase na zona rural, uso de obras públicas como 'inclusão produtiva' e o desafio de enfrentar pobreza de crianças de adolescentes, que 'têm de brincar e estudar, não trabalhar'.
BRASILIA – O artigo número três da Constituição brasileira de 1988, um calhamaço de 347 artigos entre permanentes e transitórios, lista como um dos “objetivos fundamentais” do país “erradicar a pobreza e a marginalização”. Vinte e três anos e cinco presidentes depois, a erradicação da pobreza extrema vai se tornar a bandeira principal de um governo, com o lançamento, previsto para 2 de junho, do programa Brasil Sem Miséria.
Num evento planejado para lotar o Palácio do Planalto com ministros, governadores, prefeitos e representantes da sociedade civil e se transformar num grande fato positivo para o governo, às voltas com problemas patrimoniais do ministro Antonio Palocci, a presidente Dilma Rousseff anunciará como deseja transformar a vida de 16,2 milhões de pessoas que, nas contas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vivem no máximo com R$ 70 mensais.
O programa combinará três tipos diferentes de ações. O governo continuará fazendo transferência de renda via Bolsa Família, mas vai juntar a isso esforços para levar mais infra-estrutura (luz, água, esgoto, escolas) aos miseráveis, ao mesmo tempo em que tentará criar condições, por meio de “inclusão produtiva”, para que eles consigam tocar a vida sozinhos.
“Se reduzir a pobreza exclusivamente à renda, não resolvemos a falta de luz, de água, de saneamento, o problema das escolas", diz em entrevista exclusiva à Carta Maior a secretária Extraordinária de Combate à Pobreza Extrema do Ministério do Desenvolvimento Social, Ana Fonseca.
Uma das principais coordenadoras do plano, a historiadora cearense conta que uma das ações mais importantes do programa será uma “busca ativa” por 800 mil famílias que o governo acredita que têm direito a transferência de renda, mas que não recebem porque até agora não foram identificadas pelo Estado brasileiro.
Segundo Ana, seria impossível tocar o plano sem crescimento econômico. O país não teria fôlego financeiro para sustentar um Bolsa Família com mais de R$ 15 bilhões anuais, nem canteiros de obras públicas que pudessem ser aproveitados na “inclusão produtiva”. “Uma década atrás, não faríamos esse programa”, afirma.
De acordo com ela, o programa terá metas parciais para serem atingidas ano a ano, começando já por 2011. Dará atenção especial à zona rural, onde um quarto da população vive na pobreza extrema (nas cidades, são 5%). E marcará um gol de placa se superar o desafio de tirar da pobreza crianças e adolescentes, que “têm de brincar e estudar, não trabalhar”.
Abaixo, os principais trechos da entrevista, concedida na última sexta-feira, dia 27/05.
O plano contra a miséria está pronto para ser lançado dia 2 de junho?
Ana Fonseca: Está pronto, mas não está fechado, são duas coisas diferentes. O orçamento ainda precisa que a presidenta bata o martelo. Mas várias das ações já estão definidas. Por exemplo, na inclusão produtiva rural, vamos trabalhar com fomento a fundo perdido, distribuição de sementes da Embrapa, com água. Também vamos ter uma atividade importante que chamamos de “busca ativa”. Imaginamos que existam ainda 800 mil famílias não localizadas pelo Estado brasileiro com direito a transferência de renda mas que não recebem.
Essa “busca ativa” vai aumentar o público-alvo do plano, que são aqueles 16,2 milhões de brasileiros que vivem com até 70 reais por mês identificados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)?
Ana Fonseca: Nós ainda não sabemos quem, dentro deste grupo de 16 milhões de pessoas, recebe transferência de renda, porque até agora só trabalhamos com o censo preliminar do IBGE, não com o definitivo. O definitivo é que trará uma informação mais completa sobre a renda das pessoas, se elas trabalham, se recebem aposentadoria, pensão, transferência do tipo BPC (Benefício de Prestação Continuada) ou Bolsa Família. Então, aquelas 800 mil famílias podem ou não estar aí dentro. Só vamos enxergar isso quanto tivermos o questionário completo do censo, com a renda aberta das pessoas.
Quando este cruzamento vai estar pronto?
Ana Fonseca: O IBGE nos prometeu o censo completo para o mês de outubro.
Por que o governo desconfia de que há 800 mil famílias fora do Bolsa Família?
Ana Fonseca: Porque o cadastramento de pessoas pobres em alguns estados está muito abaixo da nossa expectativa.
Está abaixo do “potencial de pobreza”...
Ana Fonseca: É triste falar isso, mas é verdade. Por isso que estamos falando de uma busca ativa e, na pactuação com os estados, estamos pedindo empenho para a localização desses brasileiros.
A linha de corte do plano são pessoas com até 70 reais por mês, mas elas não têm contracheque, a identificação delas, imagino, é até visual. Só que a vida de quem ganha, digamos, 80 reais não é muito diferente. Como o governo fará para efetivamente chegar ao público-alvo?
Ana Fonseca: A linha de corte de renda não é critério de elegibilidade para participar do plano, mas para o monitoramento do plano. Nós pegamos aquele grupo identificado pela renda e fomos olhar: “tem energia elétrica? Tem água? Tem esgoto? Tem documento?” Ou seja, fomos atrás das outras dimensões da pobreza. O que é a pobreza se não o déficit de direitos? A linha de 70 reais nos serviu para mensurar o déficit de bem-estar social no Brasil. Depois, ela vai servir para monitorar o plano.
Se a renda não é um critério, significa que é possível que uma pessoa que viva com 70 reais esteja fora do plano, assim como uma que ganhe 80 reais esteja dentro?
Ana Fonseca: É difícil responder porque não teremos um modelo padrão para o Brasil. Nós vamos fazer um plano mais adequado à região Nordeste, outro mais adequado à região Norte, ao Centro-Oeste, ao Sul, ao Sudeste. É isso que mais se destaca no plano, a pactuação com os estados, para que as parcerias atendam as necessidades específicas de cada um. É possível que um estado com mais orçamento queira atuar mais na transferência de renda, enquanto outro, sem recursos, precise mais da gente na questão dos serviços, da infra-estrutura.
Como o impacto da pobreza no campo é maior que nas cidades, o plano vai dar atenção especial à zona rural?
Ana Fonseca: A pobreza no campo é muito mais acentuada, vamos dar sim uma atenção especial. Seja no tema do acesso à água, à assistencia técnica, acesso a mercados, isso é funamental no plano.
É mais fácil enxergar inclusão produtiva no campo, porque a pessoa pode viver de agricultura, é quase um caminho natural. Mas, e nas cidades?
Ana Fonseca: Se pensarmos apenas nas obras relacionadas à Copa [de 2014 no Brasil] e às Olimpíadas [de 2016 no Rio], você vai ver que temos muitas oportunidades nas cidades. Além disso, o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] tem arranjos produtivos locais em 22 estados, e nós estamos conversando para que haja atividades por aí também.
Como funcionaria essa inclusão por meio de obras da Copa e da Olimpíada? O governo vai pedir para as empreiteiras contratarem trabalhadores pobres?
Ana Fonseca: É algo semelhante a isso. Estamos olhando também atividades do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] e do Minha Casa, Minha Vida em busca de oportunidades de ocupação. Na construção de creches e de unidades de saúde, vamos colocar no plano que se busquem ao redor da obra, no nosso cadastro único, pessoas com X características, para que elas sejam capacitadas.
O plano está dividido em três dimensões: transferência de renda, inclusão produtiva e infra-estrutura. Alguma delas tem mais peso que as outras?
Ana Fonseca: Se o problema da pobreza extrema fosse transferência de renda, estava resolvido. Nós temos capacidade, infra-estrutura bancária para chegar a todos os pobres. Mas, se reduzir a pobreza exclusivamente à renda, não resolvemos a falta de luz, de água, de saneamento, o problema das escolas. Então, as três dimensões têm de estar juntas, para a gente potencializar a oportunidade atual. É claro que a sociedade fica contente com o tema da inclusão produtiva, por causa da leitura da “porta de saída”. E essa inclusão fica mais fácil com o Brasil crescendo. Mas a transferência de renda será uma perna forte do plano.
A senhora disse que o crescimento ajuda na inclusão produtiva. Esse é um raciocínio que o governo aplicaria ao programa todo, quer dizer, seria possível fazer o Brasil Sem Miséria sem crescimento?
Ana Fonseca: Uma década atrás, não faríamos esse programa. Ontem, tive chance de ver trechos daquele documentário Garapa. Tinha uma cena em que o marido saía com um jumento e duas criancianhas atrás de água, enquanto a mulher ia buscar cesta básica que alguém ia distribuir, mas ela volta sem nada. Para enganar a fome, ela dava água com açúcar para as crianças. Esse filme foi gravado em 2002. De 2003 para cá, o Brasil mudou muito. Houve ampliação do mercado interno, e nisso as transferências de renda como o Bolsa Família e o BPC foram importantes, junto com a valorização do salário mínimo. Já reduzimos drasticamente a pobreza, então, parte do caminho já foi percorrido.
Como será a mensuração do plano? Ele vai ter metas parciais, ano a ano?
Ana Fonseca: Teremos um sistema de monitoramento que não definimos ainda se será quadrimestral. Olharemos pelos déficits. Por exemplo, temos 308 mil domicílios sem luz elétrica, e a expectativa é que eu chegue a 2014 com isso zerado. Sei que tenho 150 mil brasileiros sem documentos, queremos zerar esse número até 2014 também. Vamos ter metas parciais, inclusive já para 2011. Existem algumas áreas na zona rural que se não plantar agora, não produz até dezembro.
Quando se embalam todas as ações do plano, e muitas já existem, o plano é sobretudo uma articulação de ações, qual é o tamanho dele em termos financeiros?
Ana Fonseca: Mas nós teremos muita inovação também, então, ainda não fechamos o orçamento. Fizemos ontem [dia 26/05] uma reunião com a junta orçamentária para apresentar os números e depois vamos apresentar para a presidenta, para que ela bata o martelo.
Qual a senhora diria que será o grande desafio do Brasil Sem Miséria, aquilo que, se for concretizado, poderá ser considerado um gol de placa?
Ana Fonseca: Ah, superar a pobreza dos jovens. Veja que 39% da pobreza extrema atinge jovens até 14 anos. Você não bota crianças e adolescentes para trabalhar, não tem inclusão produtiva para eles, eles têm de brincar e estudar. Para eles, o fundamental é a educação.
Fontye: André Barrocal - Carta Capital
Num evento planejado para lotar o Palácio do Planalto com ministros, governadores, prefeitos e representantes da sociedade civil e se transformar num grande fato positivo para o governo, às voltas com problemas patrimoniais do ministro Antonio Palocci, a presidente Dilma Rousseff anunciará como deseja transformar a vida de 16,2 milhões de pessoas que, nas contas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vivem no máximo com R$ 70 mensais.
O programa combinará três tipos diferentes de ações. O governo continuará fazendo transferência de renda via Bolsa Família, mas vai juntar a isso esforços para levar mais infra-estrutura (luz, água, esgoto, escolas) aos miseráveis, ao mesmo tempo em que tentará criar condições, por meio de “inclusão produtiva”, para que eles consigam tocar a vida sozinhos.
“Se reduzir a pobreza exclusivamente à renda, não resolvemos a falta de luz, de água, de saneamento, o problema das escolas", diz em entrevista exclusiva à Carta Maior a secretária Extraordinária de Combate à Pobreza Extrema do Ministério do Desenvolvimento Social, Ana Fonseca.
Uma das principais coordenadoras do plano, a historiadora cearense conta que uma das ações mais importantes do programa será uma “busca ativa” por 800 mil famílias que o governo acredita que têm direito a transferência de renda, mas que não recebem porque até agora não foram identificadas pelo Estado brasileiro.
Segundo Ana, seria impossível tocar o plano sem crescimento econômico. O país não teria fôlego financeiro para sustentar um Bolsa Família com mais de R$ 15 bilhões anuais, nem canteiros de obras públicas que pudessem ser aproveitados na “inclusão produtiva”. “Uma década atrás, não faríamos esse programa”, afirma.
De acordo com ela, o programa terá metas parciais para serem atingidas ano a ano, começando já por 2011. Dará atenção especial à zona rural, onde um quarto da população vive na pobreza extrema (nas cidades, são 5%). E marcará um gol de placa se superar o desafio de tirar da pobreza crianças e adolescentes, que “têm de brincar e estudar, não trabalhar”.
Abaixo, os principais trechos da entrevista, concedida na última sexta-feira, dia 27/05.
O plano contra a miséria está pronto para ser lançado dia 2 de junho?
Ana Fonseca: Está pronto, mas não está fechado, são duas coisas diferentes. O orçamento ainda precisa que a presidenta bata o martelo. Mas várias das ações já estão definidas. Por exemplo, na inclusão produtiva rural, vamos trabalhar com fomento a fundo perdido, distribuição de sementes da Embrapa, com água. Também vamos ter uma atividade importante que chamamos de “busca ativa”. Imaginamos que existam ainda 800 mil famílias não localizadas pelo Estado brasileiro com direito a transferência de renda mas que não recebem.
Essa “busca ativa” vai aumentar o público-alvo do plano, que são aqueles 16,2 milhões de brasileiros que vivem com até 70 reais por mês identificados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)?
Ana Fonseca: Nós ainda não sabemos quem, dentro deste grupo de 16 milhões de pessoas, recebe transferência de renda, porque até agora só trabalhamos com o censo preliminar do IBGE, não com o definitivo. O definitivo é que trará uma informação mais completa sobre a renda das pessoas, se elas trabalham, se recebem aposentadoria, pensão, transferência do tipo BPC (Benefício de Prestação Continuada) ou Bolsa Família. Então, aquelas 800 mil famílias podem ou não estar aí dentro. Só vamos enxergar isso quanto tivermos o questionário completo do censo, com a renda aberta das pessoas.
Quando este cruzamento vai estar pronto?
Ana Fonseca: O IBGE nos prometeu o censo completo para o mês de outubro.
Por que o governo desconfia de que há 800 mil famílias fora do Bolsa Família?
Ana Fonseca: Porque o cadastramento de pessoas pobres em alguns estados está muito abaixo da nossa expectativa.
Está abaixo do “potencial de pobreza”...
Ana Fonseca: É triste falar isso, mas é verdade. Por isso que estamos falando de uma busca ativa e, na pactuação com os estados, estamos pedindo empenho para a localização desses brasileiros.
A linha de corte do plano são pessoas com até 70 reais por mês, mas elas não têm contracheque, a identificação delas, imagino, é até visual. Só que a vida de quem ganha, digamos, 80 reais não é muito diferente. Como o governo fará para efetivamente chegar ao público-alvo?
Ana Fonseca: A linha de corte de renda não é critério de elegibilidade para participar do plano, mas para o monitoramento do plano. Nós pegamos aquele grupo identificado pela renda e fomos olhar: “tem energia elétrica? Tem água? Tem esgoto? Tem documento?” Ou seja, fomos atrás das outras dimensões da pobreza. O que é a pobreza se não o déficit de direitos? A linha de 70 reais nos serviu para mensurar o déficit de bem-estar social no Brasil. Depois, ela vai servir para monitorar o plano.
Se a renda não é um critério, significa que é possível que uma pessoa que viva com 70 reais esteja fora do plano, assim como uma que ganhe 80 reais esteja dentro?
Ana Fonseca: É difícil responder porque não teremos um modelo padrão para o Brasil. Nós vamos fazer um plano mais adequado à região Nordeste, outro mais adequado à região Norte, ao Centro-Oeste, ao Sul, ao Sudeste. É isso que mais se destaca no plano, a pactuação com os estados, para que as parcerias atendam as necessidades específicas de cada um. É possível que um estado com mais orçamento queira atuar mais na transferência de renda, enquanto outro, sem recursos, precise mais da gente na questão dos serviços, da infra-estrutura.
Como o impacto da pobreza no campo é maior que nas cidades, o plano vai dar atenção especial à zona rural?
Ana Fonseca: A pobreza no campo é muito mais acentuada, vamos dar sim uma atenção especial. Seja no tema do acesso à água, à assistencia técnica, acesso a mercados, isso é funamental no plano.
É mais fácil enxergar inclusão produtiva no campo, porque a pessoa pode viver de agricultura, é quase um caminho natural. Mas, e nas cidades?
Ana Fonseca: Se pensarmos apenas nas obras relacionadas à Copa [de 2014 no Brasil] e às Olimpíadas [de 2016 no Rio], você vai ver que temos muitas oportunidades nas cidades. Além disso, o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] tem arranjos produtivos locais em 22 estados, e nós estamos conversando para que haja atividades por aí também.
Como funcionaria essa inclusão por meio de obras da Copa e da Olimpíada? O governo vai pedir para as empreiteiras contratarem trabalhadores pobres?
Ana Fonseca: É algo semelhante a isso. Estamos olhando também atividades do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] e do Minha Casa, Minha Vida em busca de oportunidades de ocupação. Na construção de creches e de unidades de saúde, vamos colocar no plano que se busquem ao redor da obra, no nosso cadastro único, pessoas com X características, para que elas sejam capacitadas.
O plano está dividido em três dimensões: transferência de renda, inclusão produtiva e infra-estrutura. Alguma delas tem mais peso que as outras?
Ana Fonseca: Se o problema da pobreza extrema fosse transferência de renda, estava resolvido. Nós temos capacidade, infra-estrutura bancária para chegar a todos os pobres. Mas, se reduzir a pobreza exclusivamente à renda, não resolvemos a falta de luz, de água, de saneamento, o problema das escolas. Então, as três dimensões têm de estar juntas, para a gente potencializar a oportunidade atual. É claro que a sociedade fica contente com o tema da inclusão produtiva, por causa da leitura da “porta de saída”. E essa inclusão fica mais fácil com o Brasil crescendo. Mas a transferência de renda será uma perna forte do plano.
A senhora disse que o crescimento ajuda na inclusão produtiva. Esse é um raciocínio que o governo aplicaria ao programa todo, quer dizer, seria possível fazer o Brasil Sem Miséria sem crescimento?
Ana Fonseca: Uma década atrás, não faríamos esse programa. Ontem, tive chance de ver trechos daquele documentário Garapa. Tinha uma cena em que o marido saía com um jumento e duas criancianhas atrás de água, enquanto a mulher ia buscar cesta básica que alguém ia distribuir, mas ela volta sem nada. Para enganar a fome, ela dava água com açúcar para as crianças. Esse filme foi gravado em 2002. De 2003 para cá, o Brasil mudou muito. Houve ampliação do mercado interno, e nisso as transferências de renda como o Bolsa Família e o BPC foram importantes, junto com a valorização do salário mínimo. Já reduzimos drasticamente a pobreza, então, parte do caminho já foi percorrido.
Como será a mensuração do plano? Ele vai ter metas parciais, ano a ano?
Ana Fonseca: Teremos um sistema de monitoramento que não definimos ainda se será quadrimestral. Olharemos pelos déficits. Por exemplo, temos 308 mil domicílios sem luz elétrica, e a expectativa é que eu chegue a 2014 com isso zerado. Sei que tenho 150 mil brasileiros sem documentos, queremos zerar esse número até 2014 também. Vamos ter metas parciais, inclusive já para 2011. Existem algumas áreas na zona rural que se não plantar agora, não produz até dezembro.
Quando se embalam todas as ações do plano, e muitas já existem, o plano é sobretudo uma articulação de ações, qual é o tamanho dele em termos financeiros?
Ana Fonseca: Mas nós teremos muita inovação também, então, ainda não fechamos o orçamento. Fizemos ontem [dia 26/05] uma reunião com a junta orçamentária para apresentar os números e depois vamos apresentar para a presidenta, para que ela bata o martelo.
Qual a senhora diria que será o grande desafio do Brasil Sem Miséria, aquilo que, se for concretizado, poderá ser considerado um gol de placa?
Ana Fonseca: Ah, superar a pobreza dos jovens. Veja que 39% da pobreza extrema atinge jovens até 14 anos. Você não bota crianças e adolescentes para trabalhar, não tem inclusão produtiva para eles, eles têm de brincar e estudar. Para eles, o fundamental é a educação.
Fontye: André Barrocal - Carta Capital
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A estratégia do sim, mas não
Perante a chegada de Hugo Chávez à Argentina muitos são os observadores que assinalam tratar-se de um "bom amigo" do nosso país. Isso é certo, mas essa qualificação, sem dúvida benévola na sua formulação, é insuficiente porque oculta o facto de que Chávez é um dos mais lúcidos governantes da América Latina e, de longe, aquele que foi ratificado democraticamente como nenhum outro, não só na região como no mundo. Em eleições, convém recordar, sempre supervisionadas por instituições tais como a Organização dos Estados Americanos ou o Centro Carter que nunca objetaram sua impressionante série de vitórias.
Lúcido, dizíamos, porque é consciente como poucos da importância de fomentar a integração econômica e política dos nossos países. Sabe que os grandes centros do capitalismo metropolitano juntam suas forças em esquemas de integração, como a União Européia, que potenciam sua capacidade de pressionar e extorquir o Sul; ou mediante tratados de "livre comércio" onde os Estados Unidos, como centro do império, reorganiza em seu proveito a vida econômica das suas províncias exteriores com a cumplicidade das oligarquias latino-americanas e dos governos de turno.
Chávez sabe muito bem que este processo de progressiva unificação das metrópoles capitalistas, sob a hegemonia incontestada de Washington, para ser eficaz exige manter na sua dispersão e desunião os países da periferia. Daí a insistência em convocar à união dos nossos povos e a absoluta coerência das suas iniciativas políticas continentais – sempre criticadas e até ridicularizadas pela assim chamada "imprensa de referência" e pela opinião "bem pensante" como faraônicas, megalomaníacas, etc – com esta idéia central. Lamentavelmente, Chávez encontra poucos acompanhantes do seu porte entre os governantes da região. Se Bolívar comprovou, no final da sua vida, contemplando horrorizado o panorama de guerras civis e governos em decomposição que o cercavam, que havia "arado no mar", até que ponto Chávez não estará a "arar no mar"?
Pergunta que se justifica quando se observa que as suas principais iniciativas de integração, como o Banco do Sul ou o Gasoduto do Sul, despertam a aprovação retórica dos governantes do Mercosul mas estes a seguir remetem o assunto aos "organismos técnicos" dos seus respectivos governos onde uma legião de tecnocratas neoliberais (habitualmente ex ou futuros consultores ou funcionários do Banco Mundial ou do FMI) encarregam-se de erguer todos os obstáculos possíveis para demonstrar a inviabilidade "técnica" do projecto.
O pacto diabólico do governo Lula
Sem dúvida o campeão desta estratégia do "sim, mas não", compartilhada pelos países do Mercosul, foi o governo Lula, o qual outrora foi a esperança de milhões dentro e fora do Brasil e hoje é mais uma decepção: sim ao Banco do Sul mas não à sua implementação; sim ao Gasoduto do Sul, mas não a sua construção; sim à Petrosul mas não ainda; sim à entrada da Venezuela no Mercosul mas aí temos um probleminha no Senado. Um Senado, convém recordar, que com ou sem as manobras não santas dos seus operadores políticos jamais foi obstáculo às decisões presidenciais.
Em suma, sempre "sim, mas não". Mais ainda, ao invés de avançar na concretização destas iniciativas Lula selou um "pacto diabólico" – na expressão sintética de João Petro Stédile, líder dos Sem Terra – com Bush para reconverter grande parte da agricultura brasileira à produção do etanol em prejuízo dos alimentos que o seu próprio povo necessita.
Com efeito, quem pode duvidar que é mais importante assegurar o abastecimento de combustíveis para os automóveis que circulam nos Estados Unidos do que tornar realidade a sua promessa de garantir a todos os brasileiros três refeições diárias, como ele prometeu no seu discurso inaugural de 2003? O ignominioso abraço com "o amigo Bush" em São Paulo e o reconhecimento dos múltiplos encantos de "Condy" Rice como uma afrodescendente exemplar constituem um dos capítulos mais ignóbeis disso que um grande intelectual marxista do Brasil, Ruy Mauro Marini, denominou correctamente "o sub-imperialismo brasileiro". Num continente como este, com países sedentos de energia e sobretudo de gás, opor-se de fato ao Gasoduto do Sul revela uma combinação pouco frequente de estupidez e mesquinharia.
Não só a Argentina, prostrada pela actual crise energética que paralisa indústrias e resfria habitações, como todos os membros do Mercosul, além do Chile, se beneficiariam muito da iniciativa do bolivariano. O gás abundante e barato (porque a Venezuela o ofereceria a preços preferenciais, abaixo dos assinalados pelo mercado mundial) seria uma importante contribuição para promover o crescimento económico e o acesso a melhores níveis de vida. Mas como o próprio Chávez admitiu publicamente por ocasião da VI Cúpula Social, que acaba de concluir em Caracas, o Gasoduto do Sul ficou no limbo.
O imperialismo moveu rapidamente suas peças, dentro e fora dos próprios governos de "centro-esquerda" da região, mobilizou as suas falanges jornalísticas que alertaram para os "perigos extremos" que implicaria a dependência dos nossos países em relação ao gás venezuelano (deixaram de mencionar, por exemplo, que a Europa burguesa firmou um acordo semelhante com a própria União Soviética e jamais houve problemas) e o assunto foi arquivado. Chávez deverá esperar um tempo prudente para ver se os seus "sócios" do Mercosul reagem com elevação e patriotismo, ainda que tenha outras opções: pode vender o gás aos Estados Unidos, a preço de mercado. Seria um negócio altamente rentável e esquecer-se-ia dos seus pusilânimes amigos do Sul, cujas luzes são muito curtas e não lhes permitem sequer ver o que é evidente.
Mas o presidente venezuelano é um homem fiel à tradição de Simón Bolívar e certamente esperará pacientemente que os governos do Mercosul façam o seu processo e, eventualmente, embarquem no projecto. O problema é que se trata de uma iniciativa estratégica, demasiado importante porque significaria um reforço da autonomia nacional dos nossos países, o fortalecimento do setor público e uma diminuição da nossa dependência das grandes transnacionais, tudo o que é inaceitável para as classes dominantes dos países da região e, naturalmente, para a Casa Branca.
E nossos governos, sempre surdos para ouvir as reclamações do povo, têm um ouvido finíssimo na hora de escutar os murmúrios dos ricos e poderosos, de dentro e de fora. Enfim, uma triste história que está a ponto de repetir-se com o Banco do Sul, que financiaria os projetos de desenvolvimento que tanto precisam os nossos países. Mas isto desperta as iras do capital financeiro e do seu operador internacional: a Casa Branca. E então a proposta é encaixotada com artimanhas, chicanices e sutilezas técnicas que, no fundo, não podem ocultar a natureza essencialmente política da recusa.
Não importa que o Banco do Sul pudesse proporcionar empréstimos a taxas preferenciais, bem abaixo das que imperam no mercado. Tampouco que viesse a favorecer as empresas nacionais, as PMEs e as agências do nosso deprimido setor público. Mas, ao diminuir a nossa dependência dos abutres, dos jogadores aldrabões e dos "lavadores de dólares" que controlam o sistema financeiro internacional o Banco do Sul converte-se numa ameaça imperdoável e os senhores do dinheiro ordenaram que a sua concretização fosse adiada sine die.
Chávez está a arar no mar? Talvez sim, se os seus referentes forem os governos da região; mas não quando se leva em conta a crescente projeção do seu exemplo, suas iniciativas e projetos entre os movimentos sociais e as forças populares da região. E serão estes e não aqueles que, mais cedo do que tarde, terão a última palavra. (Atílio Bóron- Resistir.info)
Lúcido, dizíamos, porque é consciente como poucos da importância de fomentar a integração econômica e política dos nossos países. Sabe que os grandes centros do capitalismo metropolitano juntam suas forças em esquemas de integração, como a União Européia, que potenciam sua capacidade de pressionar e extorquir o Sul; ou mediante tratados de "livre comércio" onde os Estados Unidos, como centro do império, reorganiza em seu proveito a vida econômica das suas províncias exteriores com a cumplicidade das oligarquias latino-americanas e dos governos de turno.
Chávez sabe muito bem que este processo de progressiva unificação das metrópoles capitalistas, sob a hegemonia incontestada de Washington, para ser eficaz exige manter na sua dispersão e desunião os países da periferia. Daí a insistência em convocar à união dos nossos povos e a absoluta coerência das suas iniciativas políticas continentais – sempre criticadas e até ridicularizadas pela assim chamada "imprensa de referência" e pela opinião "bem pensante" como faraônicas, megalomaníacas, etc – com esta idéia central. Lamentavelmente, Chávez encontra poucos acompanhantes do seu porte entre os governantes da região. Se Bolívar comprovou, no final da sua vida, contemplando horrorizado o panorama de guerras civis e governos em decomposição que o cercavam, que havia "arado no mar", até que ponto Chávez não estará a "arar no mar"?
Pergunta que se justifica quando se observa que as suas principais iniciativas de integração, como o Banco do Sul ou o Gasoduto do Sul, despertam a aprovação retórica dos governantes do Mercosul mas estes a seguir remetem o assunto aos "organismos técnicos" dos seus respectivos governos onde uma legião de tecnocratas neoliberais (habitualmente ex ou futuros consultores ou funcionários do Banco Mundial ou do FMI) encarregam-se de erguer todos os obstáculos possíveis para demonstrar a inviabilidade "técnica" do projecto.
O pacto diabólico do governo Lula
Sem dúvida o campeão desta estratégia do "sim, mas não", compartilhada pelos países do Mercosul, foi o governo Lula, o qual outrora foi a esperança de milhões dentro e fora do Brasil e hoje é mais uma decepção: sim ao Banco do Sul mas não à sua implementação; sim ao Gasoduto do Sul, mas não a sua construção; sim à Petrosul mas não ainda; sim à entrada da Venezuela no Mercosul mas aí temos um probleminha no Senado. Um Senado, convém recordar, que com ou sem as manobras não santas dos seus operadores políticos jamais foi obstáculo às decisões presidenciais.
Em suma, sempre "sim, mas não". Mais ainda, ao invés de avançar na concretização destas iniciativas Lula selou um "pacto diabólico" – na expressão sintética de João Petro Stédile, líder dos Sem Terra – com Bush para reconverter grande parte da agricultura brasileira à produção do etanol em prejuízo dos alimentos que o seu próprio povo necessita.
Com efeito, quem pode duvidar que é mais importante assegurar o abastecimento de combustíveis para os automóveis que circulam nos Estados Unidos do que tornar realidade a sua promessa de garantir a todos os brasileiros três refeições diárias, como ele prometeu no seu discurso inaugural de 2003? O ignominioso abraço com "o amigo Bush" em São Paulo e o reconhecimento dos múltiplos encantos de "Condy" Rice como uma afrodescendente exemplar constituem um dos capítulos mais ignóbeis disso que um grande intelectual marxista do Brasil, Ruy Mauro Marini, denominou correctamente "o sub-imperialismo brasileiro". Num continente como este, com países sedentos de energia e sobretudo de gás, opor-se de fato ao Gasoduto do Sul revela uma combinação pouco frequente de estupidez e mesquinharia.
Não só a Argentina, prostrada pela actual crise energética que paralisa indústrias e resfria habitações, como todos os membros do Mercosul, além do Chile, se beneficiariam muito da iniciativa do bolivariano. O gás abundante e barato (porque a Venezuela o ofereceria a preços preferenciais, abaixo dos assinalados pelo mercado mundial) seria uma importante contribuição para promover o crescimento económico e o acesso a melhores níveis de vida. Mas como o próprio Chávez admitiu publicamente por ocasião da VI Cúpula Social, que acaba de concluir em Caracas, o Gasoduto do Sul ficou no limbo.
O imperialismo moveu rapidamente suas peças, dentro e fora dos próprios governos de "centro-esquerda" da região, mobilizou as suas falanges jornalísticas que alertaram para os "perigos extremos" que implicaria a dependência dos nossos países em relação ao gás venezuelano (deixaram de mencionar, por exemplo, que a Europa burguesa firmou um acordo semelhante com a própria União Soviética e jamais houve problemas) e o assunto foi arquivado. Chávez deverá esperar um tempo prudente para ver se os seus "sócios" do Mercosul reagem com elevação e patriotismo, ainda que tenha outras opções: pode vender o gás aos Estados Unidos, a preço de mercado. Seria um negócio altamente rentável e esquecer-se-ia dos seus pusilânimes amigos do Sul, cujas luzes são muito curtas e não lhes permitem sequer ver o que é evidente.
Mas o presidente venezuelano é um homem fiel à tradição de Simón Bolívar e certamente esperará pacientemente que os governos do Mercosul façam o seu processo e, eventualmente, embarquem no projecto. O problema é que se trata de uma iniciativa estratégica, demasiado importante porque significaria um reforço da autonomia nacional dos nossos países, o fortalecimento do setor público e uma diminuição da nossa dependência das grandes transnacionais, tudo o que é inaceitável para as classes dominantes dos países da região e, naturalmente, para a Casa Branca.
E nossos governos, sempre surdos para ouvir as reclamações do povo, têm um ouvido finíssimo na hora de escutar os murmúrios dos ricos e poderosos, de dentro e de fora. Enfim, uma triste história que está a ponto de repetir-se com o Banco do Sul, que financiaria os projetos de desenvolvimento que tanto precisam os nossos países. Mas isto desperta as iras do capital financeiro e do seu operador internacional: a Casa Branca. E então a proposta é encaixotada com artimanhas, chicanices e sutilezas técnicas que, no fundo, não podem ocultar a natureza essencialmente política da recusa.
Não importa que o Banco do Sul pudesse proporcionar empréstimos a taxas preferenciais, bem abaixo das que imperam no mercado. Tampouco que viesse a favorecer as empresas nacionais, as PMEs e as agências do nosso deprimido setor público. Mas, ao diminuir a nossa dependência dos abutres, dos jogadores aldrabões e dos "lavadores de dólares" que controlam o sistema financeiro internacional o Banco do Sul converte-se numa ameaça imperdoável e os senhores do dinheiro ordenaram que a sua concretização fosse adiada sine die.
Chávez está a arar no mar? Talvez sim, se os seus referentes forem os governos da região; mas não quando se leva em conta a crescente projeção do seu exemplo, suas iniciativas e projetos entre os movimentos sociais e as forças populares da região. E serão estes e não aqueles que, mais cedo do que tarde, terão a última palavra. (Atílio Bóron- Resistir.info)
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Entrevista com Oscar Niemeyer – 103 anos
Em entrevista, Oscar Niemeyer diz admirar Dilma, mas espera volta de Lula.
A aposentadoria é algo impensável para Oscar Niemeyer. Aos 103 anos, o arquiteto cultiva a rotina. Veste terno — sem gravata — e cumpre jornada de trabalho no escritório com uma das mais belas vistas do mar de Copacabana, na cobertura do edifício Ypiranga. O visual é impressionante, assim como a disposição do anfitrião para a vida. Niemeyer reclama de que há um mês está sem andar, mesmo com a fisioterapia. A mente, no entanto, segue perfeita. Além de projetos, da revista de arquitetura de que se orgulha, Niemeyer anda satisfeito com o samba composto em parceria com um de seus enfermeiros, Caio Almeida. Tranquilo com a vida foi criado na UTI, quando ele se recuperava de duas cirurgias no ano passado. Vera Lúcia, a mulher do arquiteto, conta que um dia chegou ao hospital e o tumulto estava formado em volta do marido. Eram médicos e enfermeiros curiosos para ouvir a música. Um Niemeyer que continua a encantar e a surpreender. Nesta entrevista ao Correio, ele fala com lucidez sobre arquitetura, política e conta histórias. Jura que voltará a Brasília, mas com uma ressalva: "Quando for preciso”. Em muitos momentos, revela um lado mais emocional. Diz que a mulher e os amigos são o melhor da vida. O resto, "seja o que Deus quiser”. Fã do ex-presidente Lula, aposta na volta dele ao Palácio do Planalto, embora demonstre admiração por Dilma Rousseff. No rol de elogios, não faltam palavras especiais dedicadas ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e ao líder cubano Fidel Castro. Ainda comunista, Niemeyer ataca o imperialismo e a burguesia. Sobre Brasília, lamenta a paralisação da obra da Torre Digital. E divaga quanto aos rumos da cidade: "Na época de JK, as coisas eram diferentes”.
O que a vida tem de melhor?
Você sabe que uma vez um amigo meu me perguntou: Oscar, e a vida? Eu disse: mulher do lado e seja o que Deus quiser.
O resto pouco importa?
O resto, paciência...
O senhor mantém isso?
Lógico. Olha aí a minha mulher. Amizade, respeito, amor, entusiasmo. Hoje eu ganhei uns livros (audiobook). Ontem eu coloquei Platão. Mas hoje ouvimos Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Era uma choradeira, o sujeito está morrendo, mas descrevia tão bem. É formidável. É muito bom esse aparelho para ouvir. O livro é bom e tem uma entonação... É uma nova paixão, um caminho interessante de revisitar as coisas e ir tocando a vida.
E a arquitetura, o senhor ainda tem paixão?
Desde que nasci, gostava de desenhar. Meu pai não fazia muita fé de eu ser arquiteto, não. Mas eu quis ir. Fui para a escola, fui trabalhar com o Lucio (arquiteto Lucio Costa) durante um tempo. Depois veio Pampulha (conjunto arquitetônico em Belo Horizonte). Depois que eu fiz Pampulha, o mundo clareou. Começou a aparecer muito trabalho. Defendo uma arquitetura diferente. Acho que a arquitetura não basta servir bem ao homem. Ela tem que ser bonita e, para ser bonita, tem que ser diferente, tem que criar surpresa. De modo que adotei um trabalho que é uma invenção.
Como tem sido a sua rotina? O senhor vem ao escritório todo dia?
A pessoa tem que se ocupar. Ficar parado, não dá. O mundo não é tão amigo. É tanta complicação, quando não é com a gente, é com os amigos. O trabalho alivia a dureza da vida.
Além de projetos, como ocupa sua cabeça?
Você viu a nossa revista? (Nosso Caminho, publicação idealizada pelo arquiteto) A revista é o que queremos fazer da vida. Levar o conhecimento aos outros, ser útil, aos mais jovens, fazer eles compreenderem e despertarem para ler muito. Senão o sujeito fica fora da jogada, não sabe o que está se passando. De modo que é muito bom trabalhar olhando para o futuro.
E aos jovens? Que conselho daria?
Leiam muito. Leiam sempre. Ler para conhecer, para descobrir, se encantar. A revista de arquitetura é um pretexto para levar ao mais jovem o conhecimento. A gente procura dar o exemplo. Nós temos um professor que nos dá aula de filosofia e sobre o cosmo há cinco anos. Toda terça-feira aqui. A gente precisa se distrair, conhecer as coisas, saber por que estamos aqui neste mundo, por que aparecemos, saber a vida como é. Gosto tanto de ouvir o professor falar sobre o cosmo, sobre o universo, vendo que somos um pigmeuzinho em cima da Terra. Somos insignificantes diante da grandeza do mundo.
A arrogância hoje impera?
Temos de lutar para mudar as coisas, contra as injustiças. A gente quer todos iguais, com as mesmas possibilidades. É difícil, mas com o tempo todo mundo consegue compreender. O importante, para mim, por exemplo, é ser útil. Se eu vejo uma pessoa nova, que me apresentam, não vou ficar imaginando os defeitos que ela possa ter. Eu quero ser útil. É um companheiro. Isso é que é posição para ficar mais tranquilo. O arrogante é um tolo.
Dentre os arquitetos da atualidade, tem algum que se destaca?
Tem muitos que começam a pensar melhor, fazem palestras, reuniões. Tem muita gente boa pensando diferente.
A vida vale à pena?
A vida é difícil. É complicada, mas vale à pena. Eu tinha seis irmãos. Agora estou sozinho.
O senhor se sente só?
Sozinho, não. Estou com a Vera. (risos)
Ela é uma eterna companheira.
Lógico. A vida tem que ser bem vivida, de coração aberto, o sujeito sentindo que pode ser útil, que não é um sacana qualquer. Esse mundo é complicado. As escolhas são tudo na vida.
O senhor tem arrependimentos?
Olhando para trás, vejo coisas que eu poderia ter evitado. Todo mundo tem um lado bom e um ruim. Mas pelo menos tem predominado essa ideia. Na minha casa, na sala de visitas tinha cinco janelas, eu me lembro que a minha avó fez de uma das janelas o oratório e tinha missa em casa, então eu lidava com aquele pessoal, a família toda religiosa, os amigos religiosos, e eu, aos 17 anos, gostava daquela gente, eram bons. Marcou para mim, que sou ateu, uma tendência de aceitar a religião. Eu conheci diversos padres que frequentavam a minha casa...
Mas agora o senhor tem se aproximado mais da religião e tem desenhado igrejas.
Bastante... É curioso esse reencontro com a minha juventude, com a religião. Sabe, tenho lembrado muito da Pampulha. Minha vida de arquiteto começou lá. Juscelino me chamou, me entusiasmou. Depois fiz outros projetos para ele. Engraçado, eu fui sempre cercado pelos mineiros, no meio dessa coisa, o Rodrigo Melo Franco era o amigo quase predileto. Era uma pessoa tão boa, tão correta. Ele me chamou para o Patrimônio. Eu ia com ele ver as obras antigas, ia a Ouro Preto. Ele foi formidável. Defendeu esse passado de arte do Brasil e arquitetura. Minas foi marcante na minha vida.
E Brasília? Dos monumentos que o senhor criou para Brasília, qual é o mais bonito?
De Brasília, não falo não, porque a maioria fui eu quem fez.
Mas qual é o mais bonito de sua autoria?
O Palácio do Congresso. Por dentro, foi muita confusão porque é difícil. A obra demora e, quando ela pede a presença do governo, o governo está se modificando e criando problemas. De modo que é difícil. Mas gosto muito do Congresso. Minha profissão é boa, cheia de surpresas. Quero fazer uma arquitetura diferente. Não quero que a arquitetura seja apenas útil. Tem que ser bonita. E se tem que ser bonita, tem que criar surpresas. O princípio da obra de arte é a surpresa. Importante é o sujeito se espantar com o que está vendo, com o novo, a novidade. De modo que a coisa caminha assim.
O senhor sabe que tem um comunista administrando Brasília?
Acho bom, desde que entrei no partido conheci muita gente boa lá... Agora na última revista nós estamos lembrando do Gregório Bezerra, que foi apedrejado nas ruas do Recife. São essas coisas que prendem a gente no partido. O partido tem lutado muito. Tem companheiros que dão força pra gente, que são tão corretos. Eu me lembro do Agildo Barata, um militar que era do partido. Era uma coragem total. Dava o exemplo. Era formidável.
E a Praça da Soberania, na Esplanada dos Ministérios, o senhor desistiu?
Eu não desisti, mas eles desistiram. Eu nunca tive muito ânimo de mexer no trabalho do Lucio, que era um amigo, um sujeito muito competente. Aquele projeto, ele fez às pressas, um projeto muito bem pensado. De modo que eu queria dar um tom de espanto a quem fosse a Brasília, que tivesse uma praça que fosse um monumento, mas agora é melhor não mexer mesmo. O Lucio merece cuidado em não mexer em Brasília. Foi ele que fez, com muito empenho. Fez de um dia para o outro.
Não é pela pressão daquele grupo de arquitetos contrários a obra, né?
Houve uma pressão, houve uma certa má vontade, sim, porque o governador (Arruda) estava entusiasmado. Mas era difícil fazer. Por outro lado, vi que mexia no projeto do Lucio, isso não me agradava. Eu quero que o projeto dele seja respeitado. Mas a praça poderia dar a Brasília um ar mais monumental. Deixa pra lá. Não tem importância. Brasília está bem. É uma cidade muito calma, muito tranquila. Está tudo bem.
Brasília é um grande orgulho?
De vez em quando, encontro um arquiteto de fora que diz que entrou para a Escola de Arquitetura por minha causa. São coisas assim que fazem a gente ficar mais contente com a profissão. Estou satisfeito com meu trabalho. Arquitetura é invenção. É você modificar. O concreto permite tudo. Eu fiz agora na Espanha (em Avilés) um conjunto, uma grande praça com auditório e um museu. Então a praça está fazendo sucesso. Muita gente está visitando a praça. Isso nos dá um certo prazer. É verdade que eu tive muitas oportunidades.
O senhor teve sorte?
É... Tive sorte (risada).
Os engenheiros ajudavam ou atrapalhavam a colocar em prática sua ideia de beleza?
Ajudaram muito. Primeiro foi (Joaquim) Cardozo. Depois (Emílio) Baumgart, gênio do concreto. Ele foi o primeiro que fez uma ponte sem apoios. Sobe e encontra no meio. Era um sistema assim naquela época, fantástico. Agora tem o (José Carlos) Sussekind, que é muito inteligente, muito competente. De modo que caminhamos de braços dados, com mais tranquilidade.
Qual é a melhor forma de envelhecer?
Envelhecer? É esquecer a velhice e fazendo o que é possível.
E vivendo feliz?
Ah... Nós temos coisas que são exemplo de felicidade, mas o mundo é terrível. Os que vão embora e a gente tem que participar do drama. É complicado. Mas a vida é assim. Não acho que o mundo seja muito generoso com alguns... A vida é dura. É difícil. Tem que se arrumar, se organizar para poder atravessar o caminho sem se chatear muito.
O trabalho ajuda a envelhecer?
Ajuda também. A família, a minha mulher que está me olhando. Isso tudo ajuda a aguentar a parada com mais tranquilidade. A vida é assim: nasce e morre num sopro. Hoje estava lendo esse livro de Machado de Assis, ele contando da vida dele. Ele teve sorte. Tinha talento. De modo que sempre fez o que gostaria de ter feito. Fazer o que se gosta é fundamental. O sujeito viver contrariado é um horror.
O senhor fez o que gostaria de ter feito?
Eu fiz uma parte. Fiz um pouquinho.
Daqui a 200 anos, alguns brasileiros serão lembrados. O senhor e Pelé serão dois nomes mais citados. Isso o deixa feliz?
Eu cumpro meu trabalho tranquilamente. Estou de braços dados com os amigos. Isso tudo é importante, é, mas a vida é muito mais que isso. E a vida está correndo.
São muitos amigos?
Tenho muitos amigos. Sempre tive muitos amigos. É bom marchar junto. Ter bons amigos é extraordinário. Um apoiar no outro. Mesmo quando entrei no partido, as tarefas que surgiram, os contatos que tive, conheci os sujeitos mais dignos, os intelectuais que lidavam com a gente, e o povo entusiasmado com as pequenas coisas que conseguíamos melhorar. Mas a reforma, a mudança final ainda está de pé.
O senhor se mantém otimista em relação à vida?
Eu acho. Eu me proponho à igualdade, à solidariedade. É importante demais para desaparecer porque a maioria é pobre, a maioria é miserável, tem fome.
Mas os políticos só pensam em si mesmos e em enriquecer...
Ah bom, mas a burguesia é assim mesmo.
Isso não tem jeito?
A luta é antiga. Eu me lembro dos primeiros comunistas da União Soviética, os intelectuais — a gente lia sobre eles. Eram enviados para a Sibéria, eram presos porque começavam a pensar em fazer o mundo melhor. Mas tem gente tão boa. Quando fui à Europa pela primeira vez, fui de navio. Eu ia daqui para a França, então no meio da viagem estourou o golpe aqui. A polícia, como tinha que ser, invadiu meu escritório, invadiu o meu apartamento, se divertiram. Quando cheguei à Europa, o André Malraux (ministro da Cultura da França) compreendeu essa mudança. Ele arranjou com De Gaulle um decreto para eu poder ficar na França como arquiteto francês. Quer dizer, nessas lutas que a gente encontra um braço amigo, a solidariedade, isso tudo satisfaz, dá coragem e fortalece. Eu fiquei na França o tempo que quis, mas quando cheguei aqui... eu não queria vir, até escrevi um texto dizendo que não queria vir porque aqui tinha a polícia, mas eu voltei. Quando cheguei, a polícia estava me esperando, me levaram, eu prestei declarações. Nunca me maltrataram, mas me chamaram lá. Isso incomodava.
Se sentia vigiado?
Eu me lembro uma vez que tinha uma fileira de mesas e me apresentaram a todos os policiais. Era uma coisa que humilhava um pouco.
Os tempos são outros.
São, mas ainda há muito a ser feito.
O senhor está confiante no governo do DF?
Estou confiante, sim. Conheci o pai dele, que era muito simpático. Amigo nosso. Ele parece ser um rapaz com as mesmas qualidades.
O Agnelo?
Não. Estou falando do Sérgio Cabral. Fiz confusão, com o do Rio.
No DF, Agnelo, que é governador, foi comunista...
Esse eu não conheço. Conheço o que saiu. Era inteligente e ia fazer um bom governo, mas a vida é assim, com seus contrastes.
Mas o Agnelo teve aqui com o Tadeu Filippelli...
O Arruda vinha sempre. Ah, estou me lembrando... Agnelo é muito simpático. Espero que faça um trabalho decente. Brasília merece. É que o Arruda me visitava mais. Agnelo só veio uma vez.
O senhor está satisfeito com o governo Dilma?
Até agora, sim. Ela é inteligente, preparada e firme nas posições. Uma pessoa muito capaz e dedicada. Tem tudo para fazer um bom governo. Acho que Dilma fará o povo brasileiro feliz.
Chegou o momento de o povo brasileiro sorrir um pouco mais?
Pois é. Chegou a oportunidade. Foram tantos desafios, tantos sofrimentos... É inegável que hoje a populaçao está mais feliz e satisfeita. Mas vida é tão complicada. Tão inesperada... Sorrir certamente ajuda a enfrentar a dureza do cotidiano. Dilma precisar aprender isso.
Mas a sua paixão mesmo é o ex-presidente Lula. Não sente falta dele?
O Lula foi ótimo. Ele compreendeu bem o problema da América Latina. Compreendeu o trabalho de Fidel, de Chávez, dessa turma... Sabe o que interessa ao Brasil.
Chávez ainda é uma boa opção, mesmo com tantas críticas à sua tirania, apesar de tantos tropeços?
Ele esteve aqui. É uma figura fascinante. Tão inteligente. Eu tenho confiança nele. Tem que ter um brigador. Ele é um guerreiro. Se não brigar, não se faz nada.
E o Fidel ainda o surpreende?
Ele se recuperou. Ele escreveu recentemente um artigo tão bom. Falou até da bomba atômica. Um dia ele mandou para mim uma roupa, mas era o dobro do meu tamanho. Com dois metros. Era dele. Roupa de andar no campo. (risos).
Chávez tem apanhado muito da imprensa internacional...
Chávez é ótimo. Isso é balela. Ele defende o país dele contra o imperialismo. Defende também a paz na América Latina.
O que achou da visita do Obama ao Brasil?
Ainda tenho esperança no Obama. Estou aguardando, com confiança. Mas está demorando para aparecer com o entusiasmo que nós esperávamos. Gosto mesmo é do Lula. Ele soube compreender o problema da América Latina, a posição do Fidel... Está tudo muito bem.
Dilma vai manter a política externa?
A gente espera, né? Ela é inteligente, é competente. Mas vamos ver como caminha. Temos esperança. Não podemos retroceder.
A inflação é uma ameaça?
Pois é. A vida é complicada e o mundo mais ainda. Ela precisa ter pulso firme, não ceder às pressões, ser ainda mais corajosa.
Em que áreas precisamos avançar para melhorar?
Em muitas, mas Lula tem que ter tempo para agir.
Mas ele não vai mais agir. Está fora do governo.
Mas ele tem força popular. É estimado. Foi uma pessoa muito importante para o Brasil. Por trás, ele tem influência. Deve ser ouvido. Ele precisa ficar do lado dela nessas horas, nesses momentos delicados. Lula o povo entende mais.
E ele voltará à presidência?
Lógico. Acho que, se ele quiser, volta. Ele é muito estimado.
Quando o senhor vai voltar a Brasília?
Eu vou. Não tenho data marcada ainda não. Quando for preciso, eu vou. Quero voltar lá.
Sua obra da Torre Digital está parada. O que acha disso?
Pois é. Parece que faltou dinheiro. Ainda estou com esperança neste governo, mas as coisas custam a andar. A torre estava entusiasmando o povo. Monumento assim marcando a cidade. Mas... na época de JK, as coisas eram diferentes. Naquela época, era muito bom porque tinha Israel Pinheiro. Lidei com ele. Era um sujeito honesto, corajoso, entusiasmado, era um companheiro indispensável. Sempre satisfeito, sempre sorrindo. Sempre contente. Isso transmite a mesma coisa. Por mais que o barco vá caminhar. Quando desce o pessimismo e a coisa escurece, fica pesado. A vida já é tão injusta. Ficar sem andar é uma m.... Não ando há um tempinho, mas tô firme, tô pelejando.
O senhor ainda tem medo de avião?
Eu detesto avião. Um dia estava almoçando com JK e ele disse: olha vamos sobrevoar de helicóptero, se você não vier, mando te prender. Eu fui no helicóptero com ele. Mas era horrível quando parava. Quando andava, tudo bem, estava no jogo. Mas esse desastre que houve no caminho para a França, tinha um alemão que tinha vindo me pedir um projeto. Ele veio e ficou aqui uns dois dias, um sujeito esportivo, alegre, contente, jovem. Pegou o avião e entrou pelo cano. Não vou dar bobeira. Avião é uma incerteza. Eu já andei muito de avião. Fui à Europa, com a Vera. Não me queixo. Vera viu. Fico quietinho. Não faço cena, mas detesto. A mecânica pode falhar.
E as recordações de Juscelino? Qual e a lembrança mais forte?
Eu me lembro um dia em que estava sentado com ele e telefonaram da polícia me chamando. Ele disse que não poderia me deixar ir porque precisava de mim em Brasília. Foi engraçado, porque eu estava sentado com ele, quando telefonaram. Passaram-se 15 dias e eu tive de prestar declarações. A vida é complicada.
O senhor gostou do que viu em Brasília quando esteve lá da última vez?
Brasília caminha bem. O governador que saiu era muito bom e esse agora deve ser também.
Mas Brasília já começa a ter problemas, como de trânsito...
Isso é inevitável. Passei um tempo em Paris e o problema do trânsito era muito sério. Tiraram os carros das ruas e melhorou. Se uma família abastada tem cinco carros, não dá, não. Vai ser preciso repensar seriamente a questão do transporte público.
Do Rio o senhor gosta muito mais, não é?
Adoro o Rio. Não saio daqui para nada.
Mas também com essa vista do seu escritório...
É fantástica. O mar é uma inspiração constante.
O senhor gosta de música?
Gosto muito. Eu tocava um pouco de violão e até toquei com o Jobim. Gosto do Wando, do Jorge Aragão. Outro dia fiz um samba. Querem ouvir o samba? Fiz no hospital. Fiz de brincadeira. A letra é política. A vida é um samba-enredo, né?
Fonte: Ana Maria Campos / Ana Dubeux - Correio Braziliense / Diários Associados Press
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Por uma Escola Nacional de Economia Solidária
Animado e estimulado pela extraordinária reunião do Conselho Gestor do CFES Amazônia, realizada em Belém nestes 20 e 21 de maio corrente, partilho a seguir a reflexão-proposição sobre a idéia da articulação dos CFES enquanto uma "Escola” Nacional de Economia Solidária. Claramente inspirada nas brilhantes contribuições que recebemos na reunião a partir das falas de Armando, Valmor, Rosana, Farid, Márcia, Gercina, Henrique, Sonale, Meire, Monique e Rosevany.
Antes de mais nada, esclareço já que, neste momento, não estamos propondo a criação de qualquer nova estrutura, mas que antes, pensemos na organização de uma nova instituição no seio do movimento social por uma Economia Solidária. Enfatizo que, portanto, nossa idéia de "Escola” não se limita a um mecanismo pedagógico apenas, mas à articulação de um processo de formação de uma nova cultura na perspectiva de uma nova sociedade em suas diversas e múltiplas componentes entre as quais destaco a política e a economia. Nesta perspectiva, se impõe a percepção de que entendemos a construção da "Escola” como estratégia sinérgica a tudo o que construímos até aqui, a partir "de dentro” e "de baixo”.
Também confesso, que as reflexões que seguem, estão fortemente influenciadas pela percepção conjuntural de que estamos vivendo em nosso movimento, uma fase de supervalorização da disputa por espaço no governo, o que tem enfraquecido o esforço de elaborarmos e efetivarmos estratégias autônomas de construção da Economia Solidária como prática livremente adotada por parcelas cada vez maiores da sociedade. De onde, entendo, deve estar a fonte de nossa força política e econômica, inclusive para conquistarmos, na esfera estatal, a importância que queremos merecer. Ou seja, nossa elaboração tenta equalizar os investimentos que devemos fazer nas diversas esferas de construção da hegemonia da Economia Solidária como expressão cultural-sócio-político-econômica, tal como concebido no campo da teoria gramsciana do Estado Ampliado, a que me filio.
Entrando no assunto. Antes de tratarmos de "Escola”, precisamos tratar de "Educação”. Nesta perspectiva, simplificadamente, partimos da concepção de que Educação é um conjunto de processos didático-pedagógicos articulados de maneira racional e estratégica, em múltiplos fazeres sociais, para formar os indivíduos em seus contextos sócio-culturais para prepará-los ao cotidiano de uma Sociedade projetada, na qualidade de sujeitos, para reproduzi-la.
Portanto, Educação é uma ação pensada estrategicamente, política e tecnicamente, com uma intencionalidade desenhada a partir de um determinado Projeto de Sociedade. Projeto de Sociedade que assim passa a ter em um projeto educacional adequado, um dos processos de sua própria construção como fato sócio-histórico, em paralelo a processos culturais como o econômico e o político, principalmente.
De trás pra frente então, metodologicamente podemos dizer que é o Projeto de Sociedade, ou as referências da Sociedade que queremos construir, que informa o perfil de indivíduo que precisa ser formado para realizá-lo socialmente, sustentá-lo, desenvolvê-lo e reproduzi-lo nas futuras gerações – quero dizer que, por exemplo, uma Sociedade Solidária ou Socialista só se efetivará quando o perfil da prática social dos indivíduos for majoritariamente solidária ou socialista.
Por sua vez, este perfil projetado, solidário ou socialista, passa a ser o objetivo de um projeto educacional específico. A distância entre o perfil cultural médio dos indivíduos da Sociedade atual, majoritariamente capitalista, e o perfil desejado ou projetado, precisa ser percorrido por uma estratégia formativa, ou Projeto Pedagógico. Dado o caráter intencionado e estratégico deste processo é que este projeto tem sido designado como Político Pedagógico.
Destaco, enfaticamente, que o primeiro grande esforço coletivo que temos à frente, na perspectiva de elaboração de um Projeto Político Pedagógico –tal como o CFES Amazônia se propõe, é a elevação do grau de elaboração das referências da Sociedade que queremos ter no futuro, a que queremos e estamos construindo, enfim o nosso Projeto de Sociedade, enquanto movimento por uma Economia Solidária, ou seja, a Sociedade Solidária ou Socialista– a debater.
Este esforço, de caráter ideológico, deve obviamente tomar como ponto de partida os Princípios da Economia Solidária, já elaborados pelo esforço coletivo expresso pelo FBES. No entanto, entendemos que já é possível avançar algo mais na especificação dos valores que queremos ver impressos na subjetividade e nas práticas cotidianas dos que se propõem abraçar o Projeto de uma Sociedade Solidária. Com isso, estaríamos trabalhando a composição de um horizonte moral a partir do qual seria possível estabelecer parâmetros éticos claros para a conduta dos indivíduos em seus meios sociais, fazendo do comportamento no dia-a-dia, de cada um de nós, um potente exemplo capaz de propagar e promover novas adesões ao nosso movimento. Precisamos desenvolver já o Código de Ética do movimento por uma Economia Solidária, em parte latente nos Princípios da Ecosol, consenso no FBES.
Um Código de Ética da Economia Solidária, ao mesmo tempo em que desenha o perfil do indivíduo-cidadão/ã-militante necessário à transição da Sociedade Capitalista à Sociedade Solidária, já serviria de primeiro parâmetro pedagógico, como "perfil do egresso” da nossa "Escola”, além de poder servir de cartilha mediadora das relações cotidianas no seio do próprio movimento, não como instrumento de imposição mas de reflexão para livre adoção, ou não, mas expressa e consciente, tanto na dimensão de cada indivíduo quanto na dos coletivos que formamos.
Chegando ao perfil, já teremos andado o bastante para começar a desenvolver estratégias pedagógicas que poderiam, proponho, ser inspiradas pelos 4 saberes, ou pilares da educação, elaborado originalmente pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI da UNESCO, coordenada por Jacques Delors, - cujo relatório foi publicado como livro, "Educação:Um Tesouro a Descobrir", em 1999 – mas que pode ser adaptado conforme se fizer necessário.
Em síntese, o relatório propõe como pilares da educação o desenvolvimento das faculdades humanas a partir de 4 saberes ou aprendizados: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos, aprender a ser.
-Saber Conhecer significa: aprender a aprender, fazer com que cada um desenvolva a capacidade de ler o mundo e, com autonomia, interpretá-lo e decidir o que fazer. Uma capacidade fundamental para fazer de todo e qualquer lugar, as 24hs do dia, a verdadeira sala de aula.
-Saber Fazer significa: adquirir competências que tornem a pessoa apta a enfrentar numerosas situações e a trabalhar em equipe para resolver os problemas de seu coletivo e sua comunidade. Capaz de encontrar soluções fruto do seu próprio contexto social, produto do desenvolvimento do ensino teórico alternado com o trabalho e demais experiências práticas, mediado pela reflexão.
-Saber Conviver significa:aprender a viver juntos, somando mais do que subtraindo, desenvolvendo a compreensão do outro e a percepção das interdependências humanas, realizar projetos coletivos, encontrar soluções positivas diante de conflitos, valorizando profundamente, a diversidade, o pluralismo, a compreensão mútua, a compaixão mútua, a solidariedade e a paz.
- Saber Ser significa: estar à altura de agir com cada vez maior capacidade de autonomia e responsabilidade, de discernimento e clareza de seus objetivos e finalidades a partir de seus valores subjetivos, desenvolvendo permanentemente a disciplina, o raciocínio crítico, o respeito ao outro/a e à natureza. Desenvolvendo, também permanentemente, a humildade de conhecer e confessar suas próprias limitações pessoais, técnicas e emocionais, para daí desenvolver a aptidão para comunicar-se, partilhar, mediar e construir consensos.
Precisamos enfim de uma "Escola” que desenvolva em nós a capacidade de sermos solidários em toda complexidade e profundidade que isto exige. Entrelaçando estratégias coletivas de comunicação institucional, de atendimento dos "clientes” da Economia Solidária, de sinergia operacional entre os projetos, de desenvolvimento de competências políticas, técnicas e gerenciais, desenvolvendo as competências e as habilidades necessárias ao gigantesco desafio que abraçamos.
Ou seja, precisamos de uma "Escola" sem paredes que nos reeduque a partir da reflexão e da prática do dia-a-dia, onde reproduzimos os valores que, de fato, acreditamos. Que seja a expressão formal de nosso pacto com o futuro, com a construção de uma Sociedade Solidária, com indivíduos e coletivos capazes de introduzir já, e para um número cada vez maior de pessoas, práticas político-econômicas que acumulem valores, aprendizados, legitimidade e estruturas capazes de fazer da solidariedade o paradigma central de uma Sociedade que se revoluciona.
Bem, se esta provocação prosperar, seria muito interessante escrevermos coletivamente, em rede, nesta rede, os fundamentos da nossa Escola Nacional de Economia Solidária.
Um abraço solidário do tamanho da Amazônia para vocês!
Grato
Fonte: Prof. Arroyo - Adital
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A luta por Honduras
Zelaya voltou. Em uma gigantesca festa do povo, da resistência, o caudilho hondurenho regressou ao seu país, encerrando uma etapa do processo que se iniciou com seu exílio forçado, deixando interrogações sobre o rumo político que se abre a partir dos acordos de "reconciliação”, realizado entre Juan Manuel Santos, Hugo Chávez, Porfirio Lobo e o próprio Mel Zelaya.
Nesses momentos, a alegria se torna festa; a massiva mobilização de rua coloca por terra alguns argumentos esgrimidos pelos setores da resistência que falavam do esgotamento das possibilidades da luta de rua e promoviam um desenlace preferencialmente eleitoral diante da crise de governabilidade política e do apuro da administração norte-americana para que se diversifiquem as fontes de financiamento da economia hondurenha.
No novo contexto, é possível e necessário o relançamento da proposta da Assembleia Constituinte dirigida à Refundação de Honduras -rodeada e atiçada pela mobilização de massas, como sustentam os grupos que apostam em uma saída "refundacional” da crise-, de modo que termine com a institucionalidade golpista e ponha em marcha um processo profundo de mudanças. Trata-se de retomar a direção que havia sido iniciada antes do golpe de Estado, varrendo de vez com os enquistamentos do poder oligárquico que possibilitaram o golpe de Estado e a restauração dos interesses norte-americanos e da burguesia subordinada aos mesmos.
Qualquer das organizações políticas, tanto a predominantemente "eleitoralista” quanto a "refundacional”, deveriam aprofundar o questionamento de um dos conceitos com os quais se habilitou o retorno de Zelaya: a chamada "reconciliação”.
Todas as "transições” de ditaduras a processos "democráticos” na América Latina incluíram distintos modelos de pactos, a maioria inspirados no "Pacto da Moncloa” espanhol. Os níveis de compromisso com as ditaduras assinadas por esses pactos foram diferentes de acordo com a relação de forças nos quais se realizaram e também com o tipo de posicionamento das forças que hegemonizavam os processos de democratização dos respectivos países.
Em Honduras, um elemento de novidade é que o pacto nasce fundamentalmente desde fora, pela mediação de dois governos que representam diferentes posições no contexto latino-americano. Não é difícil advertir a mão, o cérebro e a política dos Estados Unidos nas manobras de "reconciliação” do governo colombiano, custódia e operador da política norte-americana na região(1). Mais difícil é compreender a decisão do presidente da Venezuela de atender ao chamado de Santos, operador da política norte-americana de "normalização” da América Central nos termos dos processos de "integração” promovidos a partir da Iniciativa Mérida, e de seus planos subrregionais, como a Iniciativa de Segurança Regional para a América Central (Carsi, por sua sigla em inglês), abrindo o caminho, apressadamente, para o ingresso de Honduras à OEA, sem que se avance no conjunto dos pontos propostos no acordo –salvo o do regresso de Mel Zelaya-.
É lamentável que, inclusive setores da resistência, acordem avançar em uma transformação do cenário político "de fora para dentro”, já que a aceitação do regime golpista de Lobo na OEA leva a uma "normalização institucional” que não toca as estruturas do regime nem os interesses daqueles que, graças ao golpe de Estado, recuperaram seus privilégios. Ao mesmo tempo, mediatiza uma demanda irrenunciável, como a do castigo aos culpados pelo golpe e pelos crimes que foram e continuam sendo executados desde o dia 28 de junho.
Em muitos países latino-americanos foi difícil romper a armadilha das "reconciliações” feitas de cima para baixo. Em alguns casos, os "acordos das transições” continuam sendo uma camisa de força que custa romper. A impunidade é uma dimensão fundante das políticas coloniais, das democracias "com segurança”, dos regimes "representativos” do capitalismo subordinado às potências imperiais. Os crimes cometidos há mais de 500 anos pelos que conquistaram, saquearam, mataram os nossos povos e os nossos territórios sempre contaram com cumplicidades das oligarquias crioulas e nessas mesmas pegadas encontram-se as políticas de impunidade frente às ditaduras recentes.
Hoje, apoiando-se na enorme mobilização do povo, a Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP) tem a oportunidade de romper com as armadilhas desse tipo de transições. Tirar a camisa de força da "reconciliação” significa não pactuar com o esquecimento, com a desmemoria, e avançar em um processo de transformações políticas, sociais, econômicas, democráticas em profundidade e de acordo aos interesses do povo; criando um novo território de disputa de sentidos e de projetos, onde as/os assassinadas/os de todos os tempos tenham seu lugar. Onde os responsáveis pelos crimes contra o povo sejam julgados. Onde a consciência social popular não admita como possibilidade de reconciliação com o terrorismo de Estado e seus executores.
A lição que o processo argentino de luta contra a ditadura e contra a impunidade nos dá é que o caminho do julgamento e do castigo aos criminosos de lesa humanidade não consiste somente em ameaça à democracia, como apregoaram muitos setores da burguesia liberal e da oligarquia crioula –revestidas de caudilhos da democracia-; ao contrário, permitem que os grupos recalcitrantes que promovem o militarismo e a desestabilização golpista se coloquem na defensiva.
Na atual situação de Honduras, trata-se agora de resolver se a enorme legitimidade ganha pela Resistência, que sustentou com enorme coragem as políticas de desafio ao golpe de Estado desde o primeiro dia, se projetará em toda sua potencialidade na criação de um cenário de transformação social, ou se ficará hipotecada nas velhas tramoias politiqueiras de um regime que, com o golpe de Estado, mostrou seus limites e seus sinais de esgotamento.
Seria lamentável mediatizar a legitimidade dessa mobilização e dessa força popular na restauração de uma institucionalidade que foi rechaçada desde o coração do povo, que exige uma nova Constituição e novas regras de representação e de organização da vida política, social, econômica, cultural.
Esse é o momento de tomar decisão entre um rumo e outro. E essa tomada de decisão interessa a todos os povos, especialmente aos latino-americanos. Nessa conjuntura, Honduras continua sendo a batalha de um povo que acompanhamos solidariamente, nas contraditórias perspectivas que se dirimem entre refundar a esperança ou restabelecer uma institucionalidade e governabilidade que, em nome da democracia, alienem o poder do povo. Nessa disputa, valorizamos os posicionamentos de setores populares que têm estado presentes em todos os lugares da mobilização(2), com as bandeiras altas de uma resistência que não se reconcilia com o poder e fecha os caminhos da impunidade. Sua criatividade, coerência e coragem fazem parte de uma "pedagogia do exemplo” que nos ensinam –como em outra conjuntura histórica fizeram as Mães da Praça de Maio, na Argentina-, que "a única luta que se perde é a que se abandona”.
Buenos Aires, 29 de maio de 2011.
Fonte: Claúdia Korol - Adital
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Otimistas & pessimistas – o destino de Bruzundanga
Após a queda do Muro, no limiar dos anos de 1990, os arautos da pós-modernidade apregoaram, sem nenhum pudor, o “fim da História” e de todas as grandes ‘narrativas lineares’. Era o fim da luta de classes, prognosticavam eles; as macrorrevoluções não teriam mais espaço em um planeta neoliberalmente globalizado e as aspirações dos indivíduos seriam reguladas pela mão invisível do onisciente mercado, o novo fetiche divino do imaginário social. Instaurava-se, em suma, uma “nova era” de microtransformações subjetivas e fragmentárias: as questões de gênero e o debate ambiental, por exemplo, estariam situadas em uma “zona neutra” político-ideológica, dissociadas por completo dos imbróglios do capital. Os partidos foram abaixo e as ONGs irromperam na cena pública, empenhadas em amortecer tensões que, apesar das profecias contrárias, continuariam a eclodir em escala crescente em todos os hemisférios, à medida que se aprofundava a falência do paradigma neoliberal nos países que haviam subscrito os “contos da carochinha” (Livre comércio! Livre circulação de capitais! ...) do Consenso de Washington.
A América Latina foi a primeira região a proclamar que o rei estava nu. O colapso do México, que se viu convertido em um imenso pátio das montadoras ianques e livre pasto dos narcotraficantes, foi uma dura lição para os povos do subcontinente. A arrogância das elites criollas logo seria contestada pelos movimentos sociais, propiciando a emersão na cena pública de nomes como Chávez, Morales e outros líderes historicamente vinculados à causa anti-imperialista. Nesse ínterim, nossa distraída Bruzundanga também se arejou com alguns ventos que sopravam ao sul do Rio Grande, ainda que, como sói ocorrer por estas bandas, tudo tenha transcorrido em ritmo de “paz & amor”, tão a gosto dos netos de Brás Cubas e Macunaíma, ou seja, na maciota e com aquele ‘jeitinho’ tropical.
A ausência de uma ruptura radical em nossa história (a nova ordem é sempre uma versão requentada do velho pacto oligárquico firmado entre os monopólios e o latifúndio) enseja malabarismos fantásticos na política tupiniquim. Ainda assim, surgem novidades na tela. Por certo, é muito mais fácil avançar na “microfísica” do poder: agora mesmo, o reconhecimento da união estável homossexual pelo STF gerou enorme bulha nos currais do atraso, incapazes de compreender a dinâmica de uma sociedade tutelada pelo mercado e pelo credo da mídia liberal. De certa forma, a histeria dos Bolsonaros, pastores, padres e outros fundamentalistas presta-nos um favor, evidenciando aos pessimistas que é possível, sim, promover mudanças nestas plagas, mesmo que, por ora, elas estejam restritas ao plano dos costumes.
Já os pessimistas têm motivos de sobra para crer que, em meio ao longo refluxo do movimento social (salvo a briosa resistência do MST e outras organizações), há mais pedras do que se desejaria no caminho das mudanças. De fato, enquanto espocam os fogos do crescimento econômico, o festival de maracutaias segue a todo vapor na província e a desfaçatez dos oligarcas e novos-ricos só é equiparável à impunidade de que gozam em suas jogadas mirabolantes. A farra da Copa 2014 não para: orçamentos bilionários erguem e destroem estádios, vias e quejandos, desalojando milhares de pessoas sob mínima indenização; Ricardo Teixeira & Cia. tornam a protagonizar escândalos internacionais de corrupção, mas são tratados como lordes nos salões de Brasília.
Ai de quem reclamar... Os defensores públicos que denunciaram os abusos da empresa de Eike Batista em Santa Cruz (RJ) têm sofrido duras represálias das ‘autoridades’ locais. Contudo, não há como reprimir a nova “Revolta da Vacina” que essa laia há de gerar em breve. Com a Educação e a Saúde relegadas a último plano no estado, a tchurma de Sérgio Cabral, Eduardo Paes e sua “base aliada” logo terá de se mexer. As greves dos bombeiros salva-vidas e dos 5 mil professores de Caxias são apenas um prenúncio... Otimistas e pessimistas, a História de Bruzundanga mal saiu do prólogo – mas o destino dos protagonistas dependerá muito de nossa intervenção nessa grande narrativa nada linear.
Fonte: Luiz Ricardo Leitão - Brasil de Fato
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Nuvens negras no horizonte
Já se delineiam duas sérias ameaças em nível global, que podem indicar um primeiro desdobramento da crise financeira originada nos Estados Unidos em 2008. É a situação crítica da questão fiscal dos Estados Unidos e Grécia. Os holofotes agora estão na Grécia, mas não levará tempo para se dirigirem aos EUA. Face a esse quadro, o melhor para o Brasil é apostar as fichas da saúde econômica e financeira naquilo em que somos bons: alto potencial de mercado interno inexplorado. Assim, é bom repensar as políticas do pé no freio, que podem fragilizar o País aos trancos que poderão vir de fora. O artigo é de Amir Khair.
Ainda não se passaram três anos e já se delineiam duas sérias ameaças em nível global, que podem indicar um primeiro desdobramento da crise financeira originada nos Estados Unidos em 2008. É a situação crítica da questão fiscal dos Estados Unidos e Grécia. Os holofotes agora estão na Grécia, mas não levará tempo para se dirigirem aos EUA.
Vale recordar. Na primeira tentativa de sair do buraco, a Grécia acertou com o FMI que sua economia deveria encolher 4% em 2010, 2,6% em 2011 e o desemprego, de 9,4% em 2009, subiria para 14,8% em 2012. Esse o custo da redução do déficit fiscal de 13,6% do PIB em 2009, para 8,1% em 2010 e 6,5% em 2012. Mesmo assim, sua dívida se estabilizaria em 150% do PIB! Mas em 2010 em vez de conseguir a meta de déficit de 8,1%, obteve 10,5%, o que acendeu a luz vermelha.
Os holofotes agora estão na questão fiscal da Grécia, que precisará de um novo empréstimo em 2012. Com um crescimento mais baixo que o esperado, a tendência é o agravamento fiscal e a necessidade de mais empréstimos que, se vierem, trarão sérias dificuldades de satisfazer as condições impostas pelo FMI, com impacto social crescente e sério risco político ao governo.
A aposta dos “salvadores” (Banco Central Europeu – BCE, países da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional – FMI) ao concederem o primeiro socorro era de que uma profunda restrição fiscal, com rebaixamento de salários, demissões no setor público e freada no crescimento econômico, seria capaz de gerar os excedentes para honrar as parcelas dos empréstimos, que tiveram prazos mais alongados.
Esse aperto fiscal deveria ser imposto à população e as reações foram imediatas com paralisações e manifestações de massa, que na ocasião poderia inviabilizar as negociações em curso. Mas o governo grego conseguiu vencer o primeiro round e aprovou as duras exigências dos financiadores, mas com importante condição: a dívida teria que ser integralmente paga, sem nenhum prejuízo aos credores.
Esse socorro financeiro implica em dois problemas fiscais, de solução quase impossível, pois crescem as despesas com o serviço da dívida pelo forte aumento do endividamento e cai a arrecadação pela redução da atividade econômica e pelo aumento da inadimplência dos contribuintes, ou seja, forma-se um “sanduíche” fiscal.
Os credores, no entanto, partiram da premissa de que a redução das despesas públicas seria suficiente para superar esses dois problemas. Não foi o que aconteceu e nem acontecerá. Assim, seria necessário reduzir o valor a ser pago no serviço da dívida, ou seja, seu deságio, com perda para os credores.
Mas, o deságio não bastaria para solucionar o problema, pois os desequilíbrios macroeconômicos já existentes tornam necessários outros esforços para viabilizar o equilíbrio de suas contas internas e externas. Atualmente ocorre déficit na balança comercial de 4% do PIB, maior déficit comercial entre os países da região do euro. Se esse déficit persistir, terá de captar o volume total em instituições de crédito estrangeiras, mesmo se os déficits orçamentários pós-inadimplência puderem ser financiados com captações domésticas.
A simples ameaça do deságio na Grécia precipitou a elevação dos riscos das dívidas de Portugal e Espanha. Portugal foi o primeiro a pedir socorro e já está seguindo o mesmo caminho grego. Tomou em maio recursos do FMI e da União Europeia de US$ 110 bilhões, que representa 47% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. O último pacote de auxílio do FMI ao Brasil, em 1998 foi de US$ 40 bilhões ou 4,7% do PIB. Assim, esse socorro a Portugal foi, em termos de tamanho de sua economia, 10 vezes maior do que o nosso.
Para situar a gravidade do problema que ronda a Europa, o pacote da Grécia de US$ 156 bilhões foi também de 47% do PIB e o da Irlanda de US$ 120 bilhões, 52,9% do PIB, segundo matéria publicada no jornal Estado de São Paulo (22/maio).
Esses socorros foram também sem deságio nas dívidas e será apenas questão de tempo para evidenciar a falta de visão dos “salvadores” e o agravamento da inevitável deterioração fiscal nesses países.
Não tem como escapar do deságio das dívidas. Esse deságio, por sua vez, poderá trazer novos desdobramentos na rede financeira europeia já fragilizada pela crise iniciada nos Estados Unidos com as hipotecas de alto risco (subprime) e por a nu os títulos podres em posse do BCE ao socorrer o sistema bancário da Irlanda, Grécia, Espanha entre outros países.
A nova tentativa de socorro à Grécia continuará tentando preservar os credores, alongando mais a dívida, sem reestruturá-la, com nova injeção de empréstimos, e o calote será inevitável e maior mais a frente. É uma exigência do BCE para tentar empurrar com a barriga os títulos podres em seu poder cujo montante é desconhecido.
O mesmo poderá ocorrer com Portugal, mais à frente à Espanha e, em seguida a Itália, países de maior expressão econômica na zona do euro. Poderá ser essa a sequência dos PIIGS. É claro que isso atingirá o sistema bancário das economias mais sólidas como França e Alemanha, agravando a crise européia com repercussões em outros países fora da área. Como existe forte relação entre os sistemas financeiros de Europa e Estados Unidos, esse país certamente será afetado.
EUA – Em 16/5, os Estados Unidos atingiram o teto de US$ 14,294 trilhões da dívida pública e o Departamento do Tesouro planeja anunciar que vai parar de emitir e reinvestir títulos do governo em certos fundos de pensão públicos, parte de uma série de medidas para adiar a moratória até 2/8. Essas medidas do Tesouro visam ganhar tempo para a Casa Branca e líderes do Congresso chegarem a um acordo de redução do déficit, para atingir número suficiente de congressistas a votar o aumento da dívida.
A disputa política entre republicanos e democratas pode fornecer o combustível necessário para começar a por em dúvida a capacidade do país honrar o pagamento aos credores, que estão espalhados por todo o mundo, especialmente países que acumularam fortes reservas ligadas ao dólar, como China, Japão, Alemanha e o Brasil. Para agravar esse quadro o déficit fiscal previsto ao final deste ano pode atingir US$ 1,7 trilhões ou 11% do Produto Nacional Bruto (PNB).
A tentativa de ativar a economia via elevação da liquidez é outro motivo de preocupação. De 2004 a 2008 a base monetária girava em torno de US$ 0,8 trilhão e a disparada sem cessar a partir de 2009 a elevou para US$ 2,4 trilhões. Apesar disso, os empréstimos bancários ficaram estabilizados desde o final de 2008 em US$ 9 trilhões, evidenciando o deslocamento dessa elevação da liquidez para fora dos EUA.
É possível que as agências de classificação de risco, que dormiram no ponto na crise de 2008/2009, não tenham o mesmo comportamento agora. Alguns sinais já apontam nessa direção. O primeiro foi dado pela Standard & Poor’s que rebaixou de ‘estável’ para ‘negativa’ a perspectiva de rating de crédito soberano de longo prazo dos Estados Unidos. Com isso sinalizou que poderá piorar a nota da dívida americana. As razões apontadas para a decisão foram o persistente déficit orçamentário e o elevado endividamento do país.
De acordo com a agência, mesmo após dois anos após a eclosão da crise financeira que abalou o mercado de hipotecas dos EUA, o governo do presidente Barack Obama dá sinais de que não chegou num acordo sobre como reverter a deterioração fiscal por que passa o país atualmente, nem aponta soluções para as pressões fiscais de longo prazo.
O dólar já vem de longo processo de perda de valor perante outras moedas e commodities, e isso expressa a doença que se abate lentamente sobre a economia americana. As análises sobre as perspectivas deste país oscilam a cada dia ao sabor de dados sobre pedidos de desemprego, construção de novas moradias, produção industrial, inflação, etc. Fato é que a reação aos fortes estímulos dados desde 2008 produziram efeitos pífios e os déficits fiscais passaram de 3% do PNB em 2008 e poderão atingir 11% neste ano, e a dívida sobe de forma ameaçadora, indicando claros riscos em seu pagamento.
Para agravar esse quadro a elevação dos preços do petróleo e outras commodities subtraem o poder aquisitivo dos americanos, com reflexos negativos sobre o consumo que representa 70% do PIB do país. Isso afeta o crescimento econômico, a arrecadação e eleva o déficit fiscal.
Parecem esgotados os instrumentos monetários para tirar o país da crise. A forte injeção de dólares feita pelo Fed (banco central americano) e os juros negativos não conseguiram estimular o consumo. É incerto se terminará em junho a escalada da injeção de US$ 600 bilhões. Essa elevação da liquidez já dá sinais de problemas com a inflação, que começam a aparecer no front de preocupações do Fed. E nada mais potente para retirar o poder aquisitivo do americano do que a inflação.
A forma que seria possível para romper com esse agravamento é a ampliação das exportações e contenção das importações, para gerar empregos suficientes para tirar da letargia o mercado interno. Mas não é isso que vem ocorrendo no nível necessário, pois a disputa no mercado internacional cresceu fortemente como consequência da crise de 2008.
Face a esse quadro, o melhor para o Brasil é apostar as fichas da saúde econômica e financeira naquilo em que somos bons: alto potencial de mercado interno inexplorado. Assim, é bom repensar as políticas do pé no freio, que podem fragilizar o País aos trancos que poderão vir de fora. (Amir Khair - Correio do Brasil
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Uma história esquecida no Marco Zero de Nova York
Tão preocupados estavam na Casa Branca em perseguir Bin Laden, cujos numerosos parentes foram os únicos autorizados - entre dezenas de milhares que pediam o mesmo - a embarcar no único avião que deixou os Estados Unidos no dia seguinte ao 11 de Setembro, que na confusão tanto o presidente quanto o prefeito de Nova York se "esqueceram" de indenizar os bombeiros, paramédicos, socorristas e diaristas que trabalharam durante dias e semanas recuperando cadáveres e removendo escombros das Torres Gêmeas, imersos em uma nuvem tóxica que danificou irreparavelmente seus organismos, especialmente seus pulmões.
Mas esta é, como diria o inesquecível Howard Zinn, "a outra história" dos Estados Unidos, a das vítimas, dos oprimidos, dos pobres, dos marginais. Essa história não se conta e foi Zinn quem fez um trabalho extraordinário ao contá-la em um livro que tem precisamente este nome e deveria ser lido por todos os interessados em conhecer como é o "capitalismo realmente existente", e não as historinhas criadas em Hollywood que nos pintam uma visão idealizada dos Estados Unidos.
O assunto vem à tona porque uma pesquisa realizada pela Yeshiva University, da cidade de Nova York, cujas conclusões foram publicadas pelo prestigiado New England Journal of Medicine em abril do ano passado, constatou a existência de 13.954 afetados pela inalação de gases tóxicos durante seus trabalhos nas ruínas das Torres Gêmeas. Os pesquisadores declararam em diversas fontes que tal cifra subestima o número real de vítimas afetadas pelos árduos trabalhos de resgate e limpeza: calcula-se que outros 2.000 não foram registrados, seja porque morreram em consequência do envenenamento sofrido nessas tarefas ou de complicações de outras enfermidades, ou porque eram indocumentados que temiam que, ao se apresentar aos pesquisadores, a odiada "migra", a polícia de imigração dos Estados Unidos, os descobrisse e deportasse.
Nada disso foi mencionado por Barack Obama na demagógica visita feita ao Marco Zero na quinta-feira, 5 de maio, assim que foi confirmado o assassinato de Osama bin Laden. O presidente falou dos que colaboraram com heroísmo e abnegação com as tarefas de resgate e limpeza, mas não disse uma palavra sobre o escandaloso desprezo e ingratidão com que foram (mal)tratados esses trabalhadores, material de refugo em qualquer economia capitalista e muito mais nos Estados Unidos. Segundo o correspondente da BBC em Nova York, no início de 2008 - ou seja, quase sete anos depois do atentado -, apenas seis (isso mesmo: seis) das pouco mais de 10 mil ações impetradas por trabalhadores pelos graves transtornos causados a sua saúde haviam resultado em algum tipo de compensação por parte das autoridades norte-americanas.
Justiça burguesa, como dizem. Ou refutação prática do discurso sobre os direitos humanos, a liberdade e a justiça com que Washington permanentemente oculta seus maiores tropeços. Que credibilidade pode ter alguém que se comporta como um governante desalmado em relação a seu próprio povo, que generosamente se envolveu em um trabalho insalubre apenas para, depois da tarefa, ver ignoradas suas justas reclamações? Como era de se esperar, os protestos e pressões das vítimas continuaram e, em abril de 2010, quase nove anos depois da tragédia, chegou-se a um primeiro acordo pelo qual os trabalhadores, em uma ação coletiva - o que a legislação norte-americana qualifica como class action -, poderiam receber (dez anos depois do evento!) 657,5 milhões de dólares de indenização, à razão de cerca de 65.000 dólares por pessoa.
Certamente poderá haver algumas exceções onde, com base em uma revisão a cargo de um juiz - em um processo invariavelmente longo e custoso -, alguns dos prejudicados poderão obter uma compensação maior. Mas por enquanto a cifra é esta.
Nem é preciso esclarecer que, com esta soma, os afetados dificilmente poderão pagar as despesas médicas acumuladas ao longo de tantos anos de total abandono por parte dos cruzados da liberdade e da justiça instalados na Casa Branca; é óbvio que os desafortunados que precisarem de um tratamento mais complexo ficarão no meio do caminho e terão de se arranjar como puderem.
Nos Estados Unidos, a saúde é apenas mais uma mercadoria e, como lembrava Alfredo Zitarrosa em sua Doña Soledad, "você pode morrer, isso é questão de saúde, mas não queira saber quanto custa um caixão". Basta levar em conta que uma simples operação de apendicite em Nova York pode facilmente custar 30 mil dólares e o quadro ficará claro.
Ah, ia me esquecendo: os honorários dos estudos de advogados envolvidos nesta longa, penosa e humilhante batalha judicial dos socorristas já superam os 200 milhões de dólares; ou seja, quase um terço do que será entregue aos trabalhadores já foi abocanhado pelos "penetras" que lucram com a desgraça. Eles não precisaram esperar. Conclusão: Washington pode invadir países, torturar, assassinar, promover golpes de Estado e entrar em guerras sem autorização do Congresso, mas a Casa Branca mostra-se impotente para fazer justiça e compensar adequadamente a legião anônima daqueles que arriscaram a vida e a saúde no Marco Zero, sob o pretexto de que o Congresso não autorizaria tais gastos.
Claro que, se o assunto é organizar um resgate de bancos e financeiras, o Capitólio e a Casa Branca, sempre sensíveis aos interesses das classes dominantes, tomam a decisão em questão de dias, e os CEOs do cassino financiero recuperam sem demora seus milionários salários em dólares. Por outro lado, os que assumiram a humana tarefa do resgate e da limpeza do desastre das Torres Gêmeas são humilhados com uma espera de quase dez anos e uma compensação ridícula, levando-se em conta os prejuzídos causados e o tempo necessário para sua indenização. Esta infâmia é a "outra história" dos Estados Unidos, à qual, segundo Zinn, devemos prestar a máxima atenção, porque revela a imoralidade inerente e incorrigível do capitalismo e a necessidade de acabar com ele o mais rápido possível, antes que, como vem dizendo Fidel, esse sistema acabe com a humanidade. (Atilio Bóron - Rebelión)
Mas esta é, como diria o inesquecível Howard Zinn, "a outra história" dos Estados Unidos, a das vítimas, dos oprimidos, dos pobres, dos marginais. Essa história não se conta e foi Zinn quem fez um trabalho extraordinário ao contá-la em um livro que tem precisamente este nome e deveria ser lido por todos os interessados em conhecer como é o "capitalismo realmente existente", e não as historinhas criadas em Hollywood que nos pintam uma visão idealizada dos Estados Unidos.
O assunto vem à tona porque uma pesquisa realizada pela Yeshiva University, da cidade de Nova York, cujas conclusões foram publicadas pelo prestigiado New England Journal of Medicine em abril do ano passado, constatou a existência de 13.954 afetados pela inalação de gases tóxicos durante seus trabalhos nas ruínas das Torres Gêmeas. Os pesquisadores declararam em diversas fontes que tal cifra subestima o número real de vítimas afetadas pelos árduos trabalhos de resgate e limpeza: calcula-se que outros 2.000 não foram registrados, seja porque morreram em consequência do envenenamento sofrido nessas tarefas ou de complicações de outras enfermidades, ou porque eram indocumentados que temiam que, ao se apresentar aos pesquisadores, a odiada "migra", a polícia de imigração dos Estados Unidos, os descobrisse e deportasse.
Nada disso foi mencionado por Barack Obama na demagógica visita feita ao Marco Zero na quinta-feira, 5 de maio, assim que foi confirmado o assassinato de Osama bin Laden. O presidente falou dos que colaboraram com heroísmo e abnegação com as tarefas de resgate e limpeza, mas não disse uma palavra sobre o escandaloso desprezo e ingratidão com que foram (mal)tratados esses trabalhadores, material de refugo em qualquer economia capitalista e muito mais nos Estados Unidos. Segundo o correspondente da BBC em Nova York, no início de 2008 - ou seja, quase sete anos depois do atentado -, apenas seis (isso mesmo: seis) das pouco mais de 10 mil ações impetradas por trabalhadores pelos graves transtornos causados a sua saúde haviam resultado em algum tipo de compensação por parte das autoridades norte-americanas.
Justiça burguesa, como dizem. Ou refutação prática do discurso sobre os direitos humanos, a liberdade e a justiça com que Washington permanentemente oculta seus maiores tropeços. Que credibilidade pode ter alguém que se comporta como um governante desalmado em relação a seu próprio povo, que generosamente se envolveu em um trabalho insalubre apenas para, depois da tarefa, ver ignoradas suas justas reclamações? Como era de se esperar, os protestos e pressões das vítimas continuaram e, em abril de 2010, quase nove anos depois da tragédia, chegou-se a um primeiro acordo pelo qual os trabalhadores, em uma ação coletiva - o que a legislação norte-americana qualifica como class action -, poderiam receber (dez anos depois do evento!) 657,5 milhões de dólares de indenização, à razão de cerca de 65.000 dólares por pessoa.
Certamente poderá haver algumas exceções onde, com base em uma revisão a cargo de um juiz - em um processo invariavelmente longo e custoso -, alguns dos prejudicados poderão obter uma compensação maior. Mas por enquanto a cifra é esta.
Nem é preciso esclarecer que, com esta soma, os afetados dificilmente poderão pagar as despesas médicas acumuladas ao longo de tantos anos de total abandono por parte dos cruzados da liberdade e da justiça instalados na Casa Branca; é óbvio que os desafortunados que precisarem de um tratamento mais complexo ficarão no meio do caminho e terão de se arranjar como puderem.
Nos Estados Unidos, a saúde é apenas mais uma mercadoria e, como lembrava Alfredo Zitarrosa em sua Doña Soledad, "você pode morrer, isso é questão de saúde, mas não queira saber quanto custa um caixão". Basta levar em conta que uma simples operação de apendicite em Nova York pode facilmente custar 30 mil dólares e o quadro ficará claro.
Ah, ia me esquecendo: os honorários dos estudos de advogados envolvidos nesta longa, penosa e humilhante batalha judicial dos socorristas já superam os 200 milhões de dólares; ou seja, quase um terço do que será entregue aos trabalhadores já foi abocanhado pelos "penetras" que lucram com a desgraça. Eles não precisaram esperar. Conclusão: Washington pode invadir países, torturar, assassinar, promover golpes de Estado e entrar em guerras sem autorização do Congresso, mas a Casa Branca mostra-se impotente para fazer justiça e compensar adequadamente a legião anônima daqueles que arriscaram a vida e a saúde no Marco Zero, sob o pretexto de que o Congresso não autorizaria tais gastos.
Claro que, se o assunto é organizar um resgate de bancos e financeiras, o Capitólio e a Casa Branca, sempre sensíveis aos interesses das classes dominantes, tomam a decisão em questão de dias, e os CEOs do cassino financiero recuperam sem demora seus milionários salários em dólares. Por outro lado, os que assumiram a humana tarefa do resgate e da limpeza do desastre das Torres Gêmeas são humilhados com uma espera de quase dez anos e uma compensação ridícula, levando-se em conta os prejuzídos causados e o tempo necessário para sua indenização. Esta infâmia é a "outra história" dos Estados Unidos, à qual, segundo Zinn, devemos prestar a máxima atenção, porque revela a imoralidade inerente e incorrigível do capitalismo e a necessidade de acabar com ele o mais rápido possível, antes que, como vem dizendo Fidel, esse sistema acabe com a humanidade. (Atilio Bóron - Rebelión)
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O socialismo, o campo e a cidade
Semana passada este portal reproduziu vídeo acerca do desenvolvimento impressionante de uma vila rural chinesa sob o título de “o verdadeiro socialismo rural chinês”. O nome da matéria deveria chamar menos atenção do que seu conteúdo. Aproveito o ensejo para desenvolver algo sobre este assunto que não se encerra no desenvolvimento do “campo” em si, mas principalmente em sua transmutação em cidade propriamente dita.
Colocar aspas neste dito conceito de “socialismo rural” é um passo muito interessante na medida em que o socialismo deve ser visto sob o limiar do processo de urbanização, do desenvolvimento da divisão social do trabalho e da especialização. As cidades são o produto mais acabado deste processo de longo prazo. O processo de industrialização nada mais é do que a transferência às cidades de inúmeras atividades outrora incumbidas ao seio da fazenda. Produção de roupas, sapatos, pequenas máquinas e bugigangas para o uso diário passou a cargo dos artesãos. A Revolução Industrial coloca sob outro patamar esse processo, transformando o artesanato (departamento 1 “artesanal”) em base para uma indústria leve (departamento 2 da economia).
O processo de “especialização” nada mais é do que a “especialização” da agricultura em atividades-fins, entre elas a produção de alimentos. As relações de troca entre campo e cidade é a própria essência do nascimento dos Estados Nacionais modernos. A industrialização remete ao campo máquinas, equipamentos, assim como fertilizantes e complementos químicos, daí a indústria química ser um dos elos da cadeia da 2ª Revolução Industrial. Henry Lefebvre (“O pensamento marxista e as cidades”, 1975), baseado em Engels, assinala que a gênese da cidade é ao mesmo tempo a origem do Estado, das classes sociais, da civilização, da separação trabalho braçal-trabalho intelectual, campo e cidade e indústria e agricultura.
Nada disso ocorre sem conflitos. Estudar desigualdades de renda, desigualdades regionais e todo tipo de desigualdade em uma determinada sociedade requer a compreender as raízes da mesma. E a raiz não se encontra na “injustiça” em si e sim na própria desigualdade entre campo e cidade. Essa “injustiça” não deverá ser reparada com a volta a patamares primitivos de produção.
A anatomia do macaco se compreende a partir do estudo da anatomia humana. Logo, “o que está encima ilumina o caminho dos de baixo”. Nada mais simples do que perceber que o futuro do campo são as cidades. E não seu contrário.
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Mas afinal de contas, o que vem a ser o socialismo? Será a grande expressão da luta “anticapitalista” contra a “desigualdade”, por uma “sociedade justa, igualitária”, “justiça social” e onde todos tenham “oportunidades iguais”? Seria o espelho do céu na Terra? Não acredito nessas coisas. Por essas bandeiras organizações como a Igreja Católica, os espíritas e mesmo organizações como a Al Qaeda e Jihad Islâmica as tem contemplado em seus programas. O “homem novo” não surge da mente do nada e sim de novas relações sociais resultantes da maximização das forças produtivas.
O ponto de partida da análise das tarefas da transição a uma sociedade de nível superior está na superação da divisão social do trabalho, na superação das diferenças entre campo e cidade, indústria e agricultura e entre trabalho manual e intelectual. Assim fica muito menos doloroso entender o fundamento principal da desigualdade e encetar um projeto de superação de determinadas situações que nos afligem no imediato. Afora a instalação de um poder que objetive a superação desta dita divisão social do trabalho, o desenvolvimento das forças produtivas, a industrialização e o aprofundamento das relações comerciais entre campo e cidade são os meios para este fim. Daí, para Lênin, o desenvolvimento sendo medido pela quantidade de pessoas que adentram na economia de mercado. E quando esse mercado – como expressão de um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas – não mais servir de parâmetro para o funcionamento do organismo social é sinal de que é algo a ser superado. Tudo tem seu prazo histórico de validade: o mercado, a propriedade privada e a lei do valor.
Qual o sentido da ânsia de Lênin e Deng Xiaoping, em seus tempos, em fazer progredir uma economia privada camponesa e criar um ambiente em que a realização individual dos mesmos pudesse contar com o apoio do Estado? Em economias destruídas por guerras, a recomposição de uma economia de tipo camponesa é o elo da própria reconstrução industrial nas cidades. Os camponeses florescem economicamente, depositam dinheiro no banco e esse mesmo banco será a base da modernização industrial sob intensa relação com os países capitalistas avançados. Forma mais genérica de internalização de novas tecnologias florescidas no mundo exterior. Industrialização das cidades é fator de modernização produtiva no campo que por sua vez faz com que pequenos produtores se transformem, também nas palavras de Lênin, em “granjeiros” via industrialização do campo, logo aproximação com o padrão de desenvolvimento previamente alcançado pelas cidades. Acredito que, no caso chinês, seria muito importante estudos sobre a “grande transição” entre uma agricultura de tipo “pequena produção mercantil” para outra caracterizada por uma grande massa de composição orgânica de capital. Além disso, é central perceber as conexões entre essa transição de dimensões estratégicas com um sofisticado e profundo sistema financeiro estatal e as novas formas de planejamento econômico advindas de novos paradigmas financeiros e tecnológicos germinados na China.
O que vemos no vídeo sobre o “socialismo rural chinês” nada mais é do que a realização deste projeto estratégico: zonas rurais mais se parecendo com cidades, camponeses acionistas de empresas rurais, e mobílias nas casas denunciando – positivamente – a existência de um sistema financeiro com capacidade de transformar sonhos de consumo outrora restritos a cidadãos urbanos em realidade no campo. O futuro do campo só pode ser a cidade!!!
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Sobre o Brasil. Dentro do que expus, é evidente a desconexão existente entre a centenária bandeira da “reforma agrária” e a realidade de um país que já conta com cerca de 85% de sua população vivendo nas cidades. Esta bandeira só sobrevive onde existem “acadêmicos” cujo objeto de estudo – e acumulação financeira – é a pobreza. No sentido da realização da “inclusão social”, a verdadeira e única possível “reforma agrária” só ocorrerá sob o marco da queda da taxa de juros e de um câmbio que fortaleça a produção industrial nacional. Um capitalismo financeiro brasileiro suportando o esforço do aprofundamento da industrialização substituiu – há muito tempo – a necessidade de uma reforma agrária distributiva e alicerce de uma já consumada revolução burguesa no Brasil.
E o fato de a terra ter-se transformado em ativo financeiro de imenso valor impossibilita a própria entrada do Estado Nacional neste mercado de terras para desapropriação. No atual quadro do desenvolvimento da agricultura brasileira, quem ameaça a existência do latifúndio não é mais a militância do MST e sim os interesses da própria grande produção agrícola. Quanto mais terras ociosas, maiores os custos de produção e, por conseguinte, acarreta em perda da competitividade internacional da agricultura brasileira.
O grande problema é o financiamento de uma urbanização que dê guarida aos anseios tanto de uma estratégia nacional de inserção externa, quanto de uma chamada “questão social”. Não tomar uma correta tomada da extensão do problema em pról de uma visão que sacraliza o “modo de vida camponês” e à crença da resistência ao capitalismo pela via do camponês que colhe o limão do pé leva a equívocos que separam o pequeno do grande produtor e cria conceitos equivocados como a dita “agricultura familiar”. A agricultura, e sua especialização, deve ser vista como parte do processo de desenvolvimento da divisão social do trabalho.
Não é a toa que toda a produção de Lênin sobre a questão agrária escrita entre 1893 e 1910 é devidamente censurada. Lênin não vivia de ilusões. Vejam o que ele tem a dizer em seu notável livro “Agricultura e Desenvolvimento nos Estados Unidos da América”. Não leiam antes de dormir. Alguns princípios que tanto cultivamos em nossa (religiosa) militância poderá ir por água abaixo... (Elias Jabbour - Grabois.org)
Organização: Genaldo de Melo
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