Claudia Korol
Editora de América Libre, jornalista da Rádio Nacional da Argentina, coordenadora do programa de rádio Espejos Todavía, em FM La Tribu
Adital
Tradução: ADITAL
Estamos em um julgamento ético às transnacionais. É um julgamento às empresas que concentram os máximos lucros acumulados pelo capital nos últimos séculos à custa de repressões, genocídios, ecocídio, destruição e saqueio. Queremos denunciá-las nesse julgamento popular. E queremos denunciar a linguagem criada a partir do poder, para lutar com cada uma de suas palavras.
O capitalismo patriarcal e racista no qual vivemos engatilha uma rajada de palavras transgênicas. Palavras cujo sentido morre no mesmo momento em que são pronunciadas; porém, ao fazê-lo, envenenam a linguagem até torná-la um instrumento contra nós mesmos.
Por isso, habitamos uma linguagem envenenada e envenenadora, tanto quanto o glifosato utilizado na produção de soja, ou como o cianureto, da mineração a céu aberto.
Com palavras transgênicas, descrevemos o mundo transnacionalizado do capital.
A linguagem envenenada é a linguagem do poder.
Com seu vocabulário, feito de poucas palavras que são disparadas desde os grandes meios de comunicação, das academias, dos governos e dos parlamentos, construímos esse breve dicionário.
Eles chamam desenvolvimento à destruição e ao saqueio dos povos e da natureza.
Chamam civilização ao sistema capitalista, patriarcal, racista, baseado na exploração dos/as trabalhadores/as pela burguesia; dos povos recolonizados pelos países imperialistas e pelas corporações transnacionais, na violenta dominação dos povos invadidos pela bárbara cultura dos vencedores; na opressão das mulheres e das dissidências sexuais; pelos homens beneficiários da cultura androcêntrica.
Chamam progresso à negociação da identidade e da história dos povos e à implantação de uma cultura hegemônica, que tem como sujeito central ao homem branco, burguês, proprietário, heterossexual, ocidental e cristão.
Chamam democracia ao modelo político de dominação criado para garantir a governabilidade desse sistema de morte e que garante a liberdade para o capital e a escravidão de todas/os as/os excluídas/os.
Chamam comunicação à saturação de nossa subjetividade com valores alienadores que nos mantêm incomunicados; e chamam informação à multiplicação de dados que encobrem a realidade que vivemos e sofremos.
Chamam segurança à criminalização da pobreza, justificando a judicialização do protesto, a militarização dos territórios onde as populações resistem ao saqueio, ao gatilho fácil contra os jovens, ao isolamento de homens e mulheres, crianças e adolescentes pobres em cárceres e lugares de encerro, nos quais seus direitos humanos são, cotidianamente, violados.
Chamam terroristas aos que combatem esse sistema de morte; e chamam justiçaàs leis e às pessoas que os reprimem.
A linguagem envenenada, encobridora e alienadora do poder burguês, patriarcal, racista, nomeia como "provida”aos fundamentalistas religiosos da inquisição atual, que negam o direito das mulheres a decidir sobre nossos corpos, sobre nossas vidas...; condenando milhares de mulheres à morte, em abortos clandestinos.
Nesse jargão envenenado, chamam crimes passionais aos atos brutais de violência contra as mulheres. À condenação das mulheres como escravas do lar, chamam amor. À organização patriarcal de base chamam família. E à ideologia dos vencedores chamam cultura universal.
Há uma dose suplementar de linguagem envenenada, destinada especialmente a mutilar as sementes a cultura rebelde. É a linguagem biodegradável da posmodernidade. Uma linguagem que diz que, depois do fim da história, "estamos de volta”. Porém, "estamos de volta”, aggiornados/as, pasteurizados/as, reciclados/as.
A linguagem posmodernizada, biodegradável colocou no liquidificador as palavras carregadas de sentidos e de atos que nomeiam à revolução, ao socialismo, ao feminismo, às batalhas anticolonialistas e anti-imperialistas, à legitimidade da violência popular frente à violência do poder. Identificar a linguagem envenenada e a linguagem desmobilizadora da posmodernidade é uma tarefa artesanal de autodefesa de massas, que necessitamos realizar a partir de nossos próprios territórios.
Quanto dessa linguagem do poder é disparada a partir de nossas próprias filas? Quanto já tragamos desse veneno; e continuamos a tragar nesses anos? Quanto já cuspimos para cima?
Recuperar a linguagem subversiva e recriá-la sem perder sua densidade nem seu poder de fogo é parte da batalha atual de ideias.
Há 10 anos, nos dias 19 e 20 de dezembro, defender a rebeldia daquelas jornadas é uma das tarefas emancipatórias frente aos discursos carregados de ‘sem sentido’, que dispararão projéteis carregados de cepticismo; repetidos para desmobilizar; para tentar convencer-nos de que o legado dessa rebelião é "o governo que soubemos realizar”..., financiado pela expansão da soja e da mineração a céu aberto.
Há 10 anos, nos dias 19 e 20 de dezembro, necessitamos recuperar e recriar uma linguagem que vá além, inclusive, da rebelião, para dar corpo a um sujeito social que exercite o poder popular.
Uma linguagem que nomeie atos; que multiplique exemplos permanentes. Como chamar a solidariedade com os nomes de Pocho Lepratti, de Darío Santillán, de Mariano Ferreyra, de Carlos Fuentealba, de Julio López, de Silvia Suppo.
Palavras com corpo. Palavras férteis, que continuam crescendo e multiplicando sementes com sua semeadura.
Uma linguagem que torne visíveis as vidas, as histórias, a presença de todas/ as/os negadas/os pelo poder dos vencedores. Uma linguagem com rostos, com mãos, com pele, com desejo, com alegria e dor. Uma linguagem com sentido.
Uma linguagem que expresse nosso amor e nosso ódio como trama de uma subjetividade de combate, de largo alento, que não se detenha ante a primeira pedra do caminho que nos é oferecida por àqueles que fazem da cooptação uma arma predileta para a domesticação e para a neutralização dos movimentos populares, transformando aos militantes em funcionários do poder.
Uma linguagem que conjugue, com coragem, o NÓS coletivo e plural da luta e da criação popular em uma chave na qual, de verdade, os gestos de unidade imprescindível recuperem força para derrotá-los e à sua linguagem de morte.
Na semana em que recordamos ao Che, quero fazê-lo como ‘compa’ que soube colocar o seu corpo e a sua vida em cada palavra. O ‘compa’ que pensou o marxismo como a linguagem da América Latina e com o rosto e os sonhos de todas as rebeliões. Que riu dos dogmas e das oligarquias. O comunicador que ensinou que devemos comunicar somente a palavra verdadeira. Junto com ele, recordamos a todas/os as/os lutadoras/res que falaram com suas vidas e, por isso, não puderam ser calados com suas mortes.
Linguagem de corpos rebelados; do desejo que se torna ato; da esperança que não espera; da insurgência do coração; da subversiva maneira de andar neste mundo, com o sonho na mão e a alegria como caminho.
4 de outubro / 2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário