Por Antonio Luís M. C. Costa* - Opera Mundi
Nove meses após o início da Primavera Árabe, a falta de respostas convincentes às reivindicações, para não falar dos problemas de fundo que as geraram, começa a azedar o caldo. Onde ditadores caíram, na Tunísia, Egito e Líbia, regimes de transição mantêm figuras-chave do antigo regime no poder, adiam eleições, aliam-se a integristas islâmicos ou tudo isso ao mesmo tempo. Onde o conflito continua em aberto, como no Iêmen, no Bahrein e na Síria, as chances de uma saída democrática parece ainda menor. Em Israel, um movimento de “indignados” pressiona por reformas sociais, mas também se vê um recrudescimento do extremismo da direita política e religiosa e atentados a propriedades, mesquitas e túmulos de não judeus. Aonde isso leva?
Embora o Egito tenha marcado as eleições parlamentares para 28 de novembro, o governo militar adiou sine die a entrega do poder executivo e diz que pretende permanecer pelo menos até 2013. E agora moveu contra uma manifestação liderada por cristãos coptas, em 9 de outubro, a repressão mais violenta desde a queda de Hosni Mubarak. Houve pelo menos 550 feridos e 26 mortos, um massacre pior que o atentado contra uma igreja de Alexandria no réveillon de 2011, que hoje se sabe ter sido planejado pelo governo deposto.
Os fundamentalistas da Irmandade Muçulmana e do movimento salafista ganharam espaço, legalizaram seus partidos e esperam controlar o Parlamento e os clérigos muçulmanos são ouvidos pelo governo. Enquanto isso, os coptas, como os liberais laicos e o movimento sindical, protestam contra sua exclusão. A manifestação literalmente esmagada – 17 dos mortos foram triturados por tanques do Exército, que chegaram a subir na calçada para atropelá-los, enquanto outros foram abatidos a tiros – dirigia-se à sede da tevê estatal para protestar contra o incêndio e destruição de uma igreja cristã em Assuã e era majoritariamente de coptas, mas tinha a adesão de muçulmanos laicos e moderados, solidários com sua indignação.
Segundo o governador de Assuã, general Mustafa El-Sayed, os coptas usavam “ilegalmente” uma pensão como igreja (abertura de igrejas cristãs precisam de autorização governamental) e violaram os códigos de construção. Em 30 de setembro, quando jovens do povoado, - incitados por um clérigo -, destruíram a igreja com as próprias mãos, apenas “corrigiram” o erro dos coptas.
Mas, segundo o jornal Al-Ahram, o lugar era uma igreja desde sua construção, em 1949, e sua reconstrução e ampliação com essa mesma função foram autorizadas pelo Cairo em maio. Em setembro, quando muçulmanos vieram pela primeira vez alegar que a presença cristã era muito pequena para justificar uma igreja, os coptas – 250 numa vila de 18 mil habitantes – pediram proteção à polícia e aos militares que, em vez disso, ordenaram o congelamento da obra. Um acordo com os clérigos muçulmanos foi negociado, pelo qual os cristãos abriram mão de sinos, alto-falantes e crucifixos externos. Mesmo assim, um inspetor veio em seguida dizer que a construção era 4 metros mais alta do que o permitido e o “erro” tinha de ser corrigido em 15 dias, o que era impraticável. Então, 3 mil muçulmanos cercaram e destruíram a igreja, com o apoio do governo local e a indiferença do Cairo.
Testemunhas do massacre, inclusive muçulmanas, contaram que as mortes no Cairo nada tiveram a ver com “violência sectária” dos coptas, como propagou a tevê estatal ao convocar os muçulmanos a “proteger o Exército” quando os choques começaram. Extremistas muçulmanos se juntaram à violência contra a manifestação e soldados parecem ter acreditado que estavam sendo atacados por cristãos, mas foram claramente instigados pelo governo, ou por uma de suas facções.
O primeiro-ministro, Essam Sharif, pôs o cargo à disposição e o vice-primeiro-ministro e ministro da Fazenda, Hazem al Beblawi, renunciou em protesto contra a repressão, mas, quando o governo militar do marechal Mohamed Hussein Tantawi rejeitou sua renúncia, disse à Reuters: “Agora estou numa situação difícil, estou confuso”. Ou uma parte – talvez a principal – do governo militar quer se aliar aos partidos fundamentalistas para controlar as massas, fazendo dos coptas (e talvez dos liberais laicos) um bode expiatório ou quer incitar a luta sectária para justificar o cancelamento das eleições, a imposição da “lei e ordem” e uma ditadura militar por tempo indefinido. Ou ambas as coisas.
Na Tunísia, onde mais de cem partidos pretendem participar da eleição inicialmente marcada para 24 de julho e depois adiada para 23 de outubro, o primeiro nas pesquisas é o partido Nahda, “Renascença”, que originalmente se chamou “Ação Islâmica” e é tido como islamista moderado, seguido por três partidos laicos de centro-esquerda e pelo Partido Comunista.
Mas os fundamentalistas também estão presentes nesse que é tido como um dos países árabes mais ocidentalizados. Na sexta-feira 7 de outubro, a tevê privada Nessma os enfureceu ao transmitir a animação Persépolis, da iraniana Marjana Satrapi – no qual ela questiona a revolução iraniana e chega a discutir com o próprio Alá – e um debate sobre o fundamentalismo. Salafistas saíram armados de paus e facas nas ruas da Tunísia e 300 deles tentaram incendiar a sede da emissora, sendo contidos pela polícia. Após dois dias de protestos, o presidente da emissora, Nabil Karoui, pediu desculpas por transmitir o filme “blasfemo”, que já tinha sido exibido nos cinemas, sem incidentes, durante a ditadura de Zine el-Abidine Ben Ali.
Na Líbia, é notório que os fundamentalistas são uma parte importante na coalizão que derrubou Kaddafi. Seu líder militar, Abdel Hakim Belhaj, veio do Grupo Islâmico Combatente Líbio, organização ligada à Al-Qaeda. Em 2004, foi capturado e torturado pela CIA e entregue a Kaddafi, em cuja prisão ficou até o ano passado. Sami al-Saadi, outro líder da mesma organização, abriu processo contra o governo britânico, cujos espiões o entregaram ao regime recém-deposto no mesmo ano. O novo prefeito de Trípoli, Abdel al-Rajazk Abu Hajar, é membro da Irmandade Muçulmana. Um judeu que visitou a Líbia após a queda de Kaddafi contou ao jornal israelense Haaretz que a hostilidade contra judeus e sinagogas cresceu após a queda do ditador, acusado por pessoas ligadas ao novo regime de ter “sangue judeu”. O racismo também veio à tona, com perseguição e prisão arbitrária de negros que, líbios ou imigrantes, eram bem tratados e favorecidos pelas políticas pan-africanas de Kaddafi.
Na Síria, apesar da repressão que, segundo as Nações Unidas, já matou 2,9 mil manifestantes e dissidentes, muitos setores apoiam o regime de Bashar al-Assad. A Irmandade Muçulmana é o foco da oposição, principalmente em Hama, onde promove insurreições praticamente desde o início do regime baathista, em 1963. O autodenominado Conselho Nacional Sírio, formado em agosto para articular as oposições, tem participação de minorias religiosas e é presidido por um intelectual democrata, Burhan Ghalioun, mas qual será o seu papel se Assad realmente cair? Não necessariamente maior que os do Movimento 6 de Abril, da Associação Nacional para a Mudança e de Mohamed ElBaradei, que pareciam representar o movimento egípcio em seus primeiros dias, mas hoje pouco influem nos rumos do país.
Em recente reportagem na Síria, Guga Chacra, de O Estado de S. Paulo, ouviu líderes cristãos dizerem que temem a queda da ditadura. A Síria recebeu mais de 1 milhão de refugiados do Iraque, metade dos quais é de cristãos expulsos pelo fundamentalismo sunita e xiita que teve rédea solta depois que os EUA derrubaram o laicismo baathista de Saddam Hussein. Dois milhões de cristãos sírios temem ter o mesmo destino.
Circula na Síria a tese, alimentada pela mídia governista, segundo a qual o Ocidente, a Arábia Saudita e Israel planejam expulsar as minorias cristãs do Oriente Médio. Formulada dessa maneira, é uma teoria da conspiração absurda, mas a inquietação que a gerou tem razão de ser. No Iraque e na Arábia Saudita, os EUA aceitaram a parceria com os fundamentalistas como um mal menor que lhe permitem reter interesses estratégicos. Talvez até o governo israelense pense assim, pois decidiu um acordo de troca de prisioneiros que prestigia o fundamentalista Hamas no exato momento em que a laica OLP tem seu grande momento ao buscar o reconhecimento da Palestina na ONU.
Por décadas, as massas encontraram no Islã tradicional os laços de proteção e solidariedade que lhe permitiram sobreviver à pobreza, um espaço de organização e protesto contra os abusos autoritários e um foco de afirmação contra as humilhações cotidianas. Neste momento, qualquer coisa que possa passar por democracia na região terá de dar mais voz a essas maiorias e mais poder aos seus representantes.
Isso é diferente, porém, de um regime autoritário que, para fugir da democracia real, promove ativamente a fanatização das massas e a perseguição das minorias étnicas e religiosas (ou mesmo dos muçulmanos laicos) em nome da maioria. Assim faziam os fascismos europeus e talvez pretendam fazer, hoje, os novos regimes líbio e egípcio – principalmente esse último, que lida com um país superpovoado e uma economia frágil. Como escreveu Walter Benjamin, todo fascismo é indício de uma revolução fracassada.
*Antonio Luiz M.C.Costa é editor de internacional de Carta Capital e também escreve sobre ciência e ficção científica.
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