Por ocasião do Bicentenário do Congresso chileno
Valparaíso, 4 de julho de 2011.
Minhas amigas e meus amigos.
Boa tarde
Vir ao Chile para falar na celebração do Bicentenário de seu Congresso Nacional me enche de honra e de alegria.
Honra, pois considero que este convite, mais do que uma deferência especial à minha pessoa, é prova de amizade para com o povo brasileiro.
Alegria, porque é sempre muito bom voltar ao Chile, país admirável, que soube superar um cruel período de sua história e construir uma sólida democracia política.
Mas ao sentimento de alegria quero também associar o de gratidão. Não posso esquecer que, entre 1964 e 1973, o Chile foi para milhares de brasileiros e brasileiras — muitos dos quais viriam a integrar o meu Governo — o “asilo contra a opressão” mencionado em seu hino nacional.
Mas não vim aqui falar-lhes de nossos passados. Por certo, não podemos esquecê-los, sobretudo para que jamais se repitam .
Quero, hoje, compartilhar com as senhoras e os senhores e, por vosso intermédio, com o povo chileno, algumas reflexões sobre o presente e o futuro de nossa América do Sul.
Quero expressar minha esperança quanto ao papel que nossa região poderá desempenhar neste complexo mundo em que nos é dado viver.
Há cerca de duas décadas, superamos os principais obstáculos à reconquista da democracia política. Mas, gradativamente, foi crescendo a consciência de que a democracia política — absolutamente necessária — não era suficiente para afastar em definitivo as ameaças autoritárias.
Era fundamental avançar também na construção de uma democracia econômica e social, enfrentando outros desafios, como os da pobreza e da desigualdade.
Lembro que, nas décadas de 80 e 90 do século 20, supostos “consensos”, dos quais a imensa maioria de homens e mulheres de nossa região não participou, definiram caminhos ilusórios para enfrentar as crises econômicas que nos golpeavam, agravando o quadro de miséria e de exclusão de muitos de nossos países.
De forma arrogante, tecnocratas prescreveram receitas para combater o nosso desequilíbrio macroeconômico, que aparecia sob a forma de inflação, crise fiscal do Estado, endividamento externo.
As fórmulas eram aparentemente simples: redução do papel do Estado, por meio de privatizações generalizadas; cortes drásticos no gasto público, o que conduziu ao desmantelamento do pouco de bem-estar social que possuíamos; desregulamentação financeira e das relações trabalhistas; medidas contrárias à reforma agrária; inserção subordinada na economia mundial. Isso para citar apenas os itens mais perversos desse suposto consenso.
Esse receituário não nos devolveu o sonhado equilíbrio macroeconômico. Ao contrário, agravou nossa crise financeira, colocou nossos países em uma situação social mais grave ainda e feriu nossa soberania em nome de uma “globalização” assimétrica e excludente que nos relegava a meros objetos das decisões de terceiros.
Minhas amigas e meus amigos,
A intensa participação popular na vida de nossos países é o diferencial que explica este novo período que estamos vivendo.
Os inimigos do processo de desenvolvimento econômico baseado na inclusão social trataram de qualificá-lo como um novo “populismo”. O que, aliás, sempre fazem quando as classes populares passam a ter um papel central em nossas incipientes democracias.
É evidente que vivemos experiências políticas muito diferenciadas em nossa região. Cada país tem sua história própria, suas especificidades econômicas, sociais e étnicas, sua trajetória institucional, sua cultura política. E isso está longe de constituir um problema. Na verdade, é uma de nossas maiores riquezas.
Mas se olharmos de perto todas essas experiências vamos descobrir — na sua diversidade — alguns aspectos comuns.
Em primeiro lugar, está a emergência de uma nova política econômica, centrada em políticas de distribuição de renda e de inclusão social, que são a base da aceleração do crescimento e garantem continuidade a esse ciclo expansionista.
Fomos capazes de provar que a distribuição de renda via políticas públicas, os aumentos salariais acima da inflação, o financiamento da agricultura familiar, o crédito popular, entre outras iniciativas, eram elementos decisivos para dar sustentabilidade ao crescimento e, acima de tudo, a um verdadeiro desenvolvimento.
Derrubamos o mito de que tínhamos de escolher entre o mercado interno e o mercado externo, pois fomos capazes de expandir os dois.
Deixamos claro que a condução da economia não podia mais ficar nas mãos de tecnocratas insensíveis, mas deveria passar às mãos de homens e mulheres — competentes tecnicamente, por certo — com fortíssima sensibilidade social e profundo compromisso com os excluídos.
Essa inflexão exige um Estado mais presente, com maiores instrumentos de regulação econômica e de indução ao investimento produtivo, capaz de conviver harmonicamente com os mercados, sem, no entanto, estar subordinado a eles.
Essa mudança histórica resgatou a política e a democracia. Havia chegado finalmente a hora da política.
Contradições se explicitaram — e até mesmo conflitos políticos —, o que é perfeitamente natural na vida democrática.
Não há democracia sem conflitos e sem regras que permitam resolvê-los.
Não eram mais admissíveis situações em que todas as forças sociais e políticas seguissem as mesmas diretrizes, obrigadas a um ilusório consenso. Em que todos falassem a mesma linguagem e adotassem programas idênticos, submetidos que estavam aos mandamentos de um pensamento único.
Foram estas conquistas, que menciono de forma sintética, que nos permitiram não só avançar nos últimos anos, como suportar bravamente a grave crise que se abateu sobre a economia mundial a partir de setembro de 2008, quando ficaram evidentes as consequências nefastas da aventura que os grandes grupos financeiros mundiais tinham iniciado, ameaçando o presente e o futuro de bilhões de homens e mulheres nos cinco continentes.
Estávamos na América do Sul mais bem preparados para enfrentar a crise, e por isso conseguimos que ela chegasse mais tarde e mais fraca em nossa região, e fomos os primeiros a superar seus efeitos danosos.
Minhas amigas e meus amigos,
Se olharmos para o atual ambiente econômico mundial, veremos que persistem nuvens ameaçadoras no horizonte.
Constatamos, igualmente, que aqueles doutores que, no passado, nos deram lições para enfrentarmos nossas dificuldades econômicas são incapazes de encontrar soluções para as mazelas que afetam seus próprios países, hoje mergulhados na incerteza.
As nações desenvolvidas deixaram de ser o centro dinâmico da economia mundial, que hoje se transferiu para a metade sul do planeta.
A persistência da insensata especulação financeira e o não enfrentamento das principais contradições que abalam a economia mundial ameaçam levar as grandes potências a uma nova crise. Os riscos para todo o mundo são evidentes.
Os interesses dos banqueiros são preservados e, em alguns casos, ampliados, enquanto se descarrega o peso da crise sobre os ombros dos trabalhadores e do povo pobre.
Aumenta o desemprego nos países ricos. Multiplicam-se medidas contra os imigrantes, não raro com argumentos abertamente racistas.
No plano multilateral, verifica-se um esgotamento dos mecanismos de governança global. Resoluções das Nações Unidas são utilizadas indevidamente para justificar novas aventuras coloniais, como as que assistimos na África e no Oriente Médio.
Arrasta-se por décadas a resolução da questão palestina, que alimenta graves tensões mundiais.
O ritmo acelerado das transformações históricas nos últimos anos aponta para um mundo multipolar e reclama uma nova governança internacional.
Durante os meus oito anos de governo sempre defendi que o Brasil não deveria aspirar sozinho à condição de um polo neste novo mundo em formação. A presidenta Dilma Rousseff compartilha essa posição.
Queremos associar o destino do Brasil ao da América do Sul. Mas queremos transformar nossa região em um fator decisivo para a construção de um mundo multipolar de paz, democrático, desenvolvido, social e ambientalmente equilibrado.
Temos todas as condições para exercer este papel. Dispomos do maior potencial energético do mundo e de amplas e diversificadas reservas minerais. Aqui está mais de um terço da água doce do planeta e uma extraordinária — e pouco aproveitada — biodiversidade.
Somos, e seremos cada vez mais, os maiores provedores mundiais de alimentos. Nossas indústrias têm crescido, se diversificado e se sofisticado tecnologicamente. Conscientes do crescente papel da educação hoje e para o futuro da humanidade, temos expandido nossas escolas e buscado melhorar sua qualidade.
Com uma população próxima aos 400 milhões de habitantes, beneficiados crescentemente por políticas sociais, nossa região se constitui hoje em um importante mercado de consumo capaz de dar sustentabilidade a nosso crescimento.
Temos relativa homogeneidade cultural e linguística. Nossa região vive sob a égide da democracia. Todos os governos da América do Sul são resultado de eleições livres, internacionalmente reconhecidas.
Não temos graves conflitos de fronteira, e os que residualmente persistem poderão ser solucionados diplomaticamente.
Não possuímos armas nucleares — nem queremos tê-las — e nossas políticas nacionais de defesa são de caráter dissuasivo.
Mas, para realizar esse potencial, temos de enfrentar e resolver muitos problemas.
Minhas amigas e meus amigos.
O atual ciclo de crescimento e de inclusão social não pode ser algo passageiro. Precisamos garantir sua continuidade por muitos e muitos anos. Isso coloca na ordem do dia um programa ousado de integração regional.
Um programa que una nossos países com estradas, ferrovias e pontes, garantindo livre e pronto acesso ao Pacífico e ao Atlântico.
Uma integração que resolva nossos déficits locais de energia de modo ambientalmente sustentável. Não é possível que uma região possuidora das maiores reservas mundiais de energia enfrente “apagões” em muitos países e que sua economia seja prejudicada pela fragilidade da matriz energética.
Se insisto no enfrentamento dessas questões de infraestrutura física e energética, é porque elas ocupam um lugar estratégico em qualquer projeto continuado e acelerado de desenvolvimento regional. É necessário vencer os gargalos que hoje ameaçam nosso crescimento.
O comércio e os investimentos intrarregionais são cada vez mais relevantes. Tornaram-se tão importantes quanto os fluxos que mantemos com os países do Norte.
Trata-se agora de incrementar essas trocas, multiplicando associações e parcerias empresariais que potencializem as economias sul-americanas, compartilhando, inclusive, etapas do processo industrial.
Há dez anos, quando os países da América do Sul viviam de costas uns para os outros, o Chile exportava para o Brasil cerca de 600 milhões de dólares. Em 2010, exportou 4,1 bilhões de dólares, 540% a mais do que em 2002. E a nossa balança comercial nunca foi tão equilibrada como agora.
A União das Nações Sul-Americanas — a Unasul — é um instrumento fundamental para a integração física, energética e produtiva, à qual se irão somando medidas de integração financeira.
Da mesma forma, temos de fortalecer nossa integração política. Uma integração respeitosa de nossas particularidades nacionais, que beneficie o conjunto dos povos do continente.
Essa integração é e será generosa, pois não é propriedade de nenhuma corrente política ou ideológica. Está aberta a todos os que acreditam que juntos seremos mais fortes e respeitados em um mundo cada vez mais desafiador.
O Chile nunca esteve longe do Brasil, apesar de não termos fronteiras comuns. Sempre estivemos muito próximos e podemos estreitar ainda mais a nossa parceria, tornando-a verdadeiramente estratégica.
A bela cordilheira dos Andes nunca foi uma barreira entre o Chile e outros países da região. Podemos escalá-la com os argumentos da razão e da solidariedade, seguindo o exemplo dos fundadores de nossa América do Sul, que há dois séculos plantaram o que hoje nos cabe cultivar e colher.
Muito obrigado.
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