sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Os caminhos e os impasses do (ex-)camarada Gorby

Neste último artigo da série sobre a unidade alemã, Flávio Aguiar comenta que as pressões internas e externas sobre o governo soviético eram enormes. Ronald Reagan e João Paulo II seguiam uma campanha de desestabilização da URSS. Na frente interna, a economia ia mal e o Exército Vermelho perdia prestígio e poder político.

A reunificação alemã, processo realizado entre novembro de 1989 (queda do muro de Berlim) e outubro de 1990, se tornou realidade durante o período em que Mikhail Gorbachev era o premiê soviético.

A propósito, na Alemanha esse processo não se chama de reunificação (Wiedervereinigung). O nome mais aceito, inclusive oficialmente, é o de Deutschland Einheit, Unidade da Alemanha. Também se fala sobre “die Wende”, nome mais controverso, que quer dizer “a reviravolta”, em inglês, “the turning point”.

As pressões internas e externas sobre o governo soviético eram enormes. Ronald Reagan e o Papa João Paulo II seguiam uma campanha concertada de desestabilização da URSS. Na frente interna, a economia ia mal e o Exército Vermelho perdia prestígio e poder político com a derrota e a retirada no Afeganistão (processo que levou os Estados Unidos a ajudarem seu depois arqui-inimigo Osama Bin Laden). Há teorias que afirmam ter sido o Exército Vermelho o responsável pela manutenção do regime comunista na União Soviética, desde seu legendário comando por Leon Trotsky.

Quando ele entrou em crise, o regime também entrou, já que o Partido Comunista e a KGB estavam ocupadas por verdadeiras burocracias corporativas (como aliás, mais tarde veio a se comprovar, com a derrubada de Gorbachev em 1991 e, muito depois, a ascensão vertiginosa do ex-camarada Putin), repressivas e inoperantes desde um ponto de vista de esquerda. A própria crise econômica e de abastecimento que a União Soviética foi mergulhando solapou o chão do Exército Vermelho, cuja manutenção era custosa e exigente, diante da escalada militar promovida pelo Ocidente.

No meio desse torvelinho vivido pela URSS e pelas demais “repúblicas” comunistas (vamos reconhecer que de espírito republicano elas não tinham muito), deu-se o processo que levou à unidade alemã. Essa unidade foi, de fato, uma anexação da Alemanha Oriental pela Ocidental, inclusive do ponto de vista legal. A Alemanha unificada continuou parte da OTAN, por exemplo, coisa que antes só a Ocidental era.

A Alemanha Oriental era vista como a “prima rica” dos países do Leste europeu. Entretanto essa fama se desvaneceu nos anos que antecederam a queda do muro de Berlim. A moeda oriental não tinha mais curso internacional, havia crises de abastecimento como na URSS, e a máquina de controle repressivo da polícia política, a Stasi, crescera absurdamente.

Porém a crise vivida na URSS e o estremecimento do bloco soviético, com as frinchas e rupturas que vieram, aceleraram o processo de desestruturação da Alemanha Oriental. Manifestações contínuas, a partir de Leipzig, exigiam o fim do tolhimento à liberdade de expressão e, sobretudo, da liberdade de ir e vir entre as duas Alemanhas. Quando a Hungria abriu suas fronteiras com a Áustria, uma torrente de alemães orientais se precipitou para Budapeste, de Budapeste para Viena e de lá para a Alemanha Ocidental.

O exército e a polícia da Alemanha Oriental tomaram, aparentemente por conta própria, a decisão de não abrir fogo contra as multidões que protestavam, embora as reprimissem com confrontos e prisões. Nesse quadro algo confuso, ocorreu a confusão maior, que levou diretamente à queda do muro em 9 de novembro de 1989.

Nesse dia o governo comunista anunciou algo como “o estudo da viabilidade de conceder vistos de passagem do lado oriental para o ocidental de modo mais rápido e sumário”. No processo de boca-a-boca com que a notícia se espalhou, isso virou “o fim dos vistos de passagem”. Uma multidão se concentrou junto ao portão de Brandemburgo e outros pontos, exigindo a passagem. Logo o que fora uma represa transformou-se numa inundação: o muro caía, e se tornava inevitável a reunificação.

O então chanceler Helmut Kohl, da Alemanha Ocidental, agiu com notável habilidade no caso (logo ele, que era tido como um político tosco, motivo de piadas como o nosso antigo ditador Costa e Silva). Aceitou todas as imposições que as potências do Ocidente levantavam, e neutralizou temores a Leste quando admitiu não reclamar os territórios poloneses que tinham sido “germanizados” durante o regime nazista.

É claro que se colocou a questão da retirada das tropas que ocupavam Berlim e a Alemanha. Ao contrário do que se esperava, Gorbachev (que no Ocidente era conhecido como “Gorby”) facilitou tudo. Não só acabou aceitando, embora a contragosto, que a Alemanha permanecesse na OTAN, como deixou para os alemães o cálculo de quanto pagariam de indenização à agonizante URSS, não apresentando qualquer fatura de antemão.

De onde partiram as resistências? Ora, como sempre, do Ocidente, em particular da Grã-Bretanha e da França. O presidente da França, François Mitterand, acabou reconhecendo a inevitabilidade da reunificação. Mas a Dama de Ferro, Margareth Thatcher, não reconheceu, mas teve de engolir essa inevitabilidade.

Tornou-se famosa sua hostil observação em Estrasburgo, num encontro internacional a que estava presente o próprio Helmut Kohl: “We defeated the Germans twice. And now they are back!”. “Nós derrotamos os alemães duas vezes. E agora eles estão de volta!”.

Nos Estados Unidos as resistências eram menores, e foram neutralizadas pelo temor de que um impedimento das ações do conservador Kohl favorecesse o líder de esquerda do SPD, Oskar Lafontaine (hoje na Linke), crítico da OTAN, na disputa de poder. A premência de manter a Alemanha na OTAN prevaleceu, assim como para a França prevaleceu o ponto de vista de que a união seria aceitável desde que o “novo” país se mantivesse comprometido com a construção da União Européia.

A Grã-Bretanha de Thatcher continuou temendo que esse movimento levasse a França a se aproximar da Alemanha, coisa que acabou acontecendo de fato. Mas algum tempo depois Thatcher e seus temores caíram do governo, arrastados também por uma crise econômica. Aplainado o terreno, a reunificação, ou união, como se quiser, se deu, fechando o caminho aberto pela “reviravolta”.

Esses acontecimentos confirmaram as visões (neste particular) tanto do camarada Koba, aliás Josef Stalin, quanto do camarada Krushchev. Para o primeiro, era melhor ter uma Alemanha unificada mas neutra, do que um permanente conflito/atrito entre os dois lados de um país dividido e ocupado. Para o segundo, segundo frase também famosa sua, a Guerra Fria seria decidida em Berlim.

Simbolicamente, pelo menos, ela de fato o foi, embora as ações da Guerra Fria se desse com amplitude mundial. É que em Berlim os dois lados do confronto estavam face a face, como vitrinas que se mediam. Acabaram vencendo as mais brilhosas e sedutoras.

O resto, em todo caso, não é silêncio. É debate, felizmente.

* Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.

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