Os ditados do império
O presidente dos Estados Unidos lançou novo edito imperial, dirigido aos líderes dos países árabes, sobretudo a Assad, da Síria: cedam, ou caiam fora. Há que se reconhecer, no poder norte-americano, essa franqueza brutal. Não há paises soberanos no mundo, mas simples províncias do grande império. Não percebem os policy makers de Washington que as situações envelhecem. No caso de sua postura diante do que ocorre nos paises árabes, é patente a incapacidade de ver as coisas com clareza. O pronunciamento de Bin Laden, divulgado depois de sua morte, por iniciativa da Al-Qaeda - em que a rebelião iniciada na Tunísia é aprovada - pode até ser falsa, mas a sua divulgação revela, claramente, que não é exatamente a democracia “made in United States” o desejo que anima os rebeldes dos países islâmicos.
O que está em discussão é a enorme disparidade entre os privilegiados e os pobres. Essa rebelião, que se espalha hoje por vários paises não islâmicos, não leva em conta a natureza ideológica ou teológica dos regimes contestados, mas a sua incapacidade de resolver os problemas cotidianos das pessoas. Tanto nos paises muçulmanos de hoje, quanto nos que se identificam como cristãos, xintoístas, budistas, ou animistas, o que se contesta é o domínio dos ricos. Esses opressores internos participam da exploração dos recursos naturais e do trabalho de seus povos. Por detrás se encontra o sistema financeiro internacional, com ladrões que comandam os escritórios de Wall Street, da Place de la Bourse, da City, das bolsas de valores de Frankfurt, Tóquio, Hong Kong, Xangai – e outros lugares.
O pronunciamento de Obama é ambíguo. Por um lado, ameaça; pelo outro acena com o reconhecimento do Estado Palestino nas fronteiras estabelecidas em 1967 – já de si usurpadoras dos direitos dos seus ocupantes históricos. Um observador das incoerências do presidente norte-americano poderá ver no discurso a tentativa de engambelar os palestinos, com a promessa – vaga, diga-se de passagem – de usar o seu poderio a fim de impor a independência dos territórios ocupados por Israel, e, ao mesmo tempo, agradar ao governo teológico judaico com a perspectiva de submeter a Síria, e o Irã, únicos vizinhos com capacidade bélica de ameaçar Tel-Aviv, embora não sejam potências nucleares como Israel.
Não é provável que Obama obtenha de Israel qualquer compromisso em reconhecer o direito do povo palestino a um estado independente. Na realidade, os israelitas, mediante a poderosa influência que exercem na política interna nos Estados Unidos, impõem a Washington a posição que lhes interessa.
Talvez Obama, induzido à cegueira pela arrogância histórica de Washington, não tenha ainda percebido que os seus inimigos reais – os que se opõem à sua reeleição, e que corroem o futuro de seu país – não se encontram entre os islamitas, mas exatamente em seu próprio território e no território de seus vassalos e aliados, como a França e a Inglaterra. São os que usufruem da cruel desigualdade social que, só nos Estados Unidos, confere a um por cento da população quarenta por cento da riqueza interna. Nunca houve, naquele país – nem mesmo na véspera da Grande Depressão – injustiça social semelhante. Talvez conviesse, para a segurança da grande nação do Norte, e para a paz no mundo inteiro, que o governo norte-americano se dedicasse a eliminar a iniqüidade interna, em lugar de se meter a guardião do mundo.
Se assim os Estados Unidos agissem, estariam voltando ao compromisso dos fundadores da República, entre eles, Washington, que em seu discurso de despedida, conclamou seus pósteros a tratar de maneira equânime as nações estrangeiras, mantendo boas relações comercias com todas elas, mas se esquivando de meter-se em seus assuntos políticos, e – o que é principal – não odiando, nem amando nenhuma em particular. (Mauro Satayana)
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Os gays e a bíblia
É no mínimo surpreendente constatar as pressões sobre o Senado para evitar a lei que criminaliza a homofobia. Sofrem de amnésia os que insistem em segregar, discriminar, satanizar e condenar os casais homoafetivos. No tempo de Jesus, os segregados eram os pagãos, os doentes, os que exerciam determinadas atividades profissionais, como açougueiros e fiscais de renda. Com todos esses Jesus teve uma atitude inclusiva. Mais tarde, vitimizaram indígenas, negros, hereges e judeus. Hoje, homossexuais, muçulmanos e migrantes pobres (incluídas as “pessoas diferenciadas”...).
Relações entre pessoas do mesmo sexo ainda são ilegais em mais de 80 nações. Em alguns países islâmicos elas são punidas com castigos físicos ou pena de morte (Arábia Saudita, Irã, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Nigéria etc). No 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 2008, 27 países-membros da União Europeia assinaram resolução à ONU pela “despenalização universal da homossexualidade”.
A Igreja Católica deu um pequeno passo adiante ao incluir no seu catecismo a exigência de se evitar qualquer discriminação a homossexuais. No entanto, silenciam as autoridades eclesiásticas quando se trata de se pronunciar contra a homofobia. E, no entanto, se escutou sua discordância à decisão do STF ao aprovar o direito de união civil dos homoafetivos.
Ninguém escolhe ser homo ou heterossexual. A pessoa nasce assim. E, à luz do Evangelho, a Igreja não tem o direito de encarar ninguém como homo ou hetero, e sim como filho de Deus, chamado à comunhão com Ele e com o próximo, destinatário da graça divina.
São alarmantes os índices de agressões e assassinatos de homossexuais no Brasil. A urgência de uma lei contra a violência simbólica, que instaura procedimento social e fomenta a cultura da satanização.
A Igreja Católica já não condena homossexuais, mas impede que eles manifestem o seu amor por pessoas do mesmo sexo. Ora, todo amor não decorre de Deus? Não diz a Carta de João (I,7) que “quem ama conhece a Deus” (observe que João não diz que quem conhece a Deus ama...).
Por que fingir ignorar que o amor exige união e querer que essa união permaneça à margem da lei? No matrimônio são os noivos os verdadeiros ministros. E não o padre, como muitos imaginam. Pode a teologia negar a essencial sacramentalidade da união de duas pessoas que se amam, ainda que do mesmo sexo?
Ora, direis, ouvir a Bíblia! Sim, no contexto patriarcal em que foi escrita seria estranho aprovar o homossexualismo. Mas muitas passagens o subtendem, como o amor entre Davi por Jônatas (I Samuel 18), o centurião romano interessado na cura de seu servo (Lucas 7) e os “eunucos de nascença” (Mateus 19). E a tomar a Bíblia literalmente, teríamos que passar ao fio da espada todos que professam crenças diferentes da nossa e odiar pai e mãe para verdadeiramente seguir a Jesus.
Há que passar da hermenêutica singularizadora para a hermenêutica pluralizadora. Ontem, a Igreja Católica acusava os judeus de assassinos de Jesus; condenava ao limbo crianças mortas sem batismo; considerava legítima a escravidão;e censurava o empréstimo a juros. Por que excluir casais homoafetivos de direitos civis e religiosos?
Pecado é aceitar os mecanismos de exclusão e selecionar seres humanos por fatores biológicos, raciais, étnicos ou sexuais. Todos são filhos amados por Deus. Todos têm como vocação essencial amar e ser amados. A lei é feita para a pessoa, insiste Jesus, e não a pessoa para a lei. (Frei Betto)
Relações entre pessoas do mesmo sexo ainda são ilegais em mais de 80 nações. Em alguns países islâmicos elas são punidas com castigos físicos ou pena de morte (Arábia Saudita, Irã, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Nigéria etc). No 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 2008, 27 países-membros da União Europeia assinaram resolução à ONU pela “despenalização universal da homossexualidade”.
A Igreja Católica deu um pequeno passo adiante ao incluir no seu catecismo a exigência de se evitar qualquer discriminação a homossexuais. No entanto, silenciam as autoridades eclesiásticas quando se trata de se pronunciar contra a homofobia. E, no entanto, se escutou sua discordância à decisão do STF ao aprovar o direito de união civil dos homoafetivos.
Ninguém escolhe ser homo ou heterossexual. A pessoa nasce assim. E, à luz do Evangelho, a Igreja não tem o direito de encarar ninguém como homo ou hetero, e sim como filho de Deus, chamado à comunhão com Ele e com o próximo, destinatário da graça divina.
São alarmantes os índices de agressões e assassinatos de homossexuais no Brasil. A urgência de uma lei contra a violência simbólica, que instaura procedimento social e fomenta a cultura da satanização.
A Igreja Católica já não condena homossexuais, mas impede que eles manifestem o seu amor por pessoas do mesmo sexo. Ora, todo amor não decorre de Deus? Não diz a Carta de João (I,7) que “quem ama conhece a Deus” (observe que João não diz que quem conhece a Deus ama...).
Por que fingir ignorar que o amor exige união e querer que essa união permaneça à margem da lei? No matrimônio são os noivos os verdadeiros ministros. E não o padre, como muitos imaginam. Pode a teologia negar a essencial sacramentalidade da união de duas pessoas que se amam, ainda que do mesmo sexo?
Ora, direis, ouvir a Bíblia! Sim, no contexto patriarcal em que foi escrita seria estranho aprovar o homossexualismo. Mas muitas passagens o subtendem, como o amor entre Davi por Jônatas (I Samuel 18), o centurião romano interessado na cura de seu servo (Lucas 7) e os “eunucos de nascença” (Mateus 19). E a tomar a Bíblia literalmente, teríamos que passar ao fio da espada todos que professam crenças diferentes da nossa e odiar pai e mãe para verdadeiramente seguir a Jesus.
Há que passar da hermenêutica singularizadora para a hermenêutica pluralizadora. Ontem, a Igreja Católica acusava os judeus de assassinos de Jesus; condenava ao limbo crianças mortas sem batismo; considerava legítima a escravidão;e censurava o empréstimo a juros. Por que excluir casais homoafetivos de direitos civis e religiosos?
Pecado é aceitar os mecanismos de exclusão e selecionar seres humanos por fatores biológicos, raciais, étnicos ou sexuais. Todos são filhos amados por Deus. Todos têm como vocação essencial amar e ser amados. A lei é feita para a pessoa, insiste Jesus, e não a pessoa para a lei. (Frei Betto)
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Aborto. Em busca de uma solução conciliatória (Entrevista especial com Charles Curran)
"Se uma pessoa crê que uma vida humana inocente está sendo tirada, ela tem todo direito de trabalhar por uma legislação para impedir isso”, ressalta Charles Curran na entrevista que concedeu à IHU On-Line por email. Antes de responder às questões, Curran apontou que é importante reconhecer que aqui não se está tratando da moralidade do aborto, mas que seu texto "aceita o ensinamento do magistério hierárquico da Igreja Católica de que o abordo direto é sempre errado” e, assim, tratou apenas dos aspectos jurídicos do aborto. "Muitos católicos e outros indivíduos estão firmemente convencidos de que o aborto direto sempre implica o ato de tirar diretamente a vida de uma pessoa humana inocente. Contudo, o ensinamento oficial reconhece que esse poderia não ser o caso, mas que o aborto direto ainda é sempre moralmente errado”, afirmou.
Pe. Charles Curran é um teólogo moral norte-americano. Atualmente, é professor da Southern Methodist University, em Dallas – EUA. Em 1968, quando lecionava na Catholic University of America, entrou em desacordo com o Vaticano e com o Papa Paulo VI em relação à encíclica Humanae Vitae. Em 1986, após um processo judicial, Curran foi expulso da universidade e o Vaticano o destituiu de suas credenciais como teólogo católico.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que a questão do aborto recebe tanto destaque no debate católico e também na sociedade?
Pe. Charles Curran – Em meu próprio país, os Estados Unidos, e na maioria dos outros países do mundo, as mudanças ocorridas na legislação sobre o aborto só aconteceram nos últimos 50 anos. Antes disso, o aborto era, de modo geral, ilegal. Assim, em termos comparativos, a legalidade do aborto é uma questão nova e recente. Neste caso, é importante reconhecer a complexidade do ensino existente do magistério hierárquico da Igreja Católica. Este ensino reconhece a possibilidade legítima da dúvida especulativa a respeito de quando a alma humana é infundida no corpo ou quando a vida humana verdadeiramente individual começa. Tomás de Aquino, a maior figura da tradição teológica católica, sustentava a posição da animação tardia – a alma é infundida 40 dias após a concepção nos homens e 80 a 90 dias após a concepção nas mulheres. Esta ainda é uma tradição especulativa legítima na Igreja Católica. Entretanto, na prática, tem-se de dar o benefício da dúvida ao fato de que a alma já está infundida e de que estamos lidando com uma pessoa humana.
Muitos católicos e outros indivíduos estão firmemente convencidos de que o aborto direto sempre implica o ato de tirar diretamente a vida de uma pessoa humana inocente. Contudo, o ensinamento oficial reconhece que esse poderia não ser o caso, mas que o aborto direto ainda é sempre moralmente errado. Uma questão que implica o ato de tirar a vida humana ou que poderia implicar o ato de tirar uma vida humana inocente obviamente faz dela uma questão muito significativa com que se defrontam os indivíduos e a sociedade. De acordo com cifras que gozam de aceitação geral, atualmente mais de 1 milhão de abortos ocorrem anualmente nos Estados Unidos.
Em sua decisão no processo Roe versus Wade, de 1973, a Suprema Corte americana determinou que não poderia haver leis contra o aborto no primeiro trimestre da gravidez; no segundo trimestre, leis só seriam permitidas se elas beneficiassem a mãe; somente no terceiro trimestre as leis poderiam restringir o aborto, exceto no caso em que a vida e a saúde da mãe estivessem em jogo. Não há dúvida de que o envolvimento primordial dos bispos católicos americanos na vida pública durante a última parte do século XX e a primeira década do século XXI enfocou a legislação sobre o aborto. Essa questão muitas vezes aflora no discurso político quando há uma eleição presidencial.
Os bispos americanos também se manifestaram sobre assuntos referentes à economia e à guerra, mas esses assuntos não apareceram tão consistentemente no discurso público em meu país. O próprio fato de que tem havido uma grande divisão entre os grupos chamados pro-life [literalmente, pró-vida, isto é, pelo direito da criança não-nascida à vida, contra o aborto induzido] e pro-choice [literalmente, pró-escolha, isto é, a favor do direito ou da liberdade da mulher de escolher em matéria de aborto] nos Estados Unidos só continuou a manter o foco no aborto.
Muitos católicos e outros indivíduos estão firmemente convencidos de que o aborto direto sempre implica o ato de tirar diretamente a vida de uma pessoa humana inocente. Contudo, o ensinamento oficial reconhece que esse poderia não ser o caso, mas que o aborto direto ainda é sempre moralmente errado. Uma questão que implica o ato de tirar a vida humana ou que poderia implicar o ato de tirar uma vida humana inocente obviamente faz dela uma questão muito significativa com que se defrontam os indivíduos e a sociedade. De acordo com cifras que gozam de aceitação geral, atualmente mais de 1 milhão de abortos ocorrem anualmente nos Estados Unidos.
Em sua decisão no processo Roe versus Wade, de 1973, a Suprema Corte americana determinou que não poderia haver leis contra o aborto no primeiro trimestre da gravidez; no segundo trimestre, leis só seriam permitidas se elas beneficiassem a mãe; somente no terceiro trimestre as leis poderiam restringir o aborto, exceto no caso em que a vida e a saúde da mãe estivessem em jogo. Não há dúvida de que o envolvimento primordial dos bispos católicos americanos na vida pública durante a última parte do século XX e a primeira década do século XXI enfocou a legislação sobre o aborto. Essa questão muitas vezes aflora no discurso político quando há uma eleição presidencial.
Os bispos americanos também se manifestaram sobre assuntos referentes à economia e à guerra, mas esses assuntos não apareceram tão consistentemente no discurso público em meu país. O próprio fato de que tem havido uma grande divisão entre os grupos chamados pro-life [literalmente, pró-vida, isto é, pelo direito da criança não-nascida à vida, contra o aborto induzido] e pro-choice [literalmente, pró-escolha, isto é, a favor do direito ou da liberdade da mulher de escolher em matéria de aborto] nos Estados Unidos só continuou a manter o foco no aborto.
IHU On-Line – Em sua opinião, como a Igreja deveria promover uma ampla defesa da vida e dignidade humana?
Pe. Charles Curran – A ampla defesa da vida e dignidade humana implica dois aspectos. O primeiro aspecto reconhece que a vida e dignidade humana abrangem muitas questões afins. Tem de haver uma ética coerente da vida que reconheça essas questões em todos os âmbitos, como, por exemplo, aborto, violência, guerra, injustiça, tortura, pena de morte e toda questão que, em última análise, afete a dignidade e a vida dos seres humanos. A partir da compreensão católica, a dignidade da vida humana não provém do que uma pessoa faça ou realize, mas do dom gracioso da criação por parte de Deus. Em decorrência disso, todos os seres humanos têm igual dignidade e igual direito à vida. O segundo aspecto diz respeito às formas pelas quais a Igreja tenta promover essa ampla defesa da vida humana. Obviamente, o papel primordial da Igreja neste sentido é o de mestra, tanto em relação a seus próprios membros quanto em relação à própria sociedade em termos mais amplos.
A Igreja, através de suas muitas e diferentes agências ou organizações, também oferece ajuda aos pobres, a pessoas em necessidade e a mulheres confrontadas com a questão do aborto. A Igreja, assim, procura influenciar não só indivíduos, mas também o ambiente e o ethos cultural. Trabalhar em prol de políticas públicas e da legislação também é uma forma significativa de proteger a vida e dignidade humana. Entretanto, há muitas outras formas pelas quais a Igreja deveria promover sua compreensão da vida e dignidade humana. E, quando o assunto é a legislação, ela também tem de reconhecer a existência de diferenças dentro de uma sociedade pluralista e tem de reconhecer o que é viável e possível.
A Igreja, através de suas muitas e diferentes agências ou organizações, também oferece ajuda aos pobres, a pessoas em necessidade e a mulheres confrontadas com a questão do aborto. A Igreja, assim, procura influenciar não só indivíduos, mas também o ambiente e o ethos cultural. Trabalhar em prol de políticas públicas e da legislação também é uma forma significativa de proteger a vida e dignidade humana. Entretanto, há muitas outras formas pelas quais a Igreja deveria promover sua compreensão da vida e dignidade humana. E, quando o assunto é a legislação, ela também tem de reconhecer a existência de diferenças dentro de uma sociedade pluralista e tem de reconhecer o que é viável e possível.
IHU On-Line – Como o senhor analisa a atitude pública para com a legislação sobre o aborto que se verificou nos Estados Unidos e nas recentes eleições no Brasil, onde até o Papa Bento XVI interveio?
Pe. Charles Curran – Se uma pessoa crê que uma vida humana inocente está sendo tirada, ela tem todo direito de trabalhar por uma legislação para impedir isso. Numa sociedade pluralista, algumas pessoas creem que a vida humana verdadeiramente individual está presente desde o momento da concepção, seja por causa de sua compreensão religiosa, compreensão médica ou suas próprias razões e intuição. Especialmente do ponto de vista da Igreja: a Igreja não deveria ser relegada apenas à esfera privada, mas tem um direito de trabalhar por uma legislação e política pública que proteja e promova a vida e dignidade humana. Entretanto, neste caso ainda permanece a pergunta sobre se há espaço, ou não, para várias abordagens diferentes para com a legislação sobre o aborto dentro da Igreja Católica.
IHU On-Line – O senhor analisa criticamente a questão do aborto usando ideias de Tomás de Aquino e Sto. Agostinho. Como elas se relacionam com a questão?
Pe. Charles Curran – Deve-se reconhecer que há uma diferença enorme entre moralidade e legalidade. Nem tudo que é moralmente errado deveria ser legalmente proibido. Nós reconhecemos que mentir é moralmente errado, mas não há lei contra o ato de mentir. Contudo, acho que praticamente toda sociedade tem uma lei contra o perjúrio ou falso testemunho, porque, por sua própria natureza, esta é uma realidade pública que afeta as pessoas e a sociedade em geral. Agostinho, por exemplo, tolerava a existência da prostituição e não exigiu uma lei contra ela. Ao comentar sobre isso, Tomás de Aquino salientou que os seres humanos não são perfeitos e que a legislação humana deveria suprimir os males mais graves, dos quais a maioria das pessoas consegue se abster, e especialmente aqueles que prejudicam outras pessoas. Aqui temos um reconhecimento muito claro da diferença entre moralidade e legalidade e até do fato de que a lei poderia tolerar o que consideramos moralmente errado.
IHU On-Line – Na esfera civil, qual deveria ser a postura da Igreja para com a lei e liberdade civil em relação ao aborto e outras questões bioéticas?
Pe. Charles Curran – Creio que a melhor compreensão do papel da lei civil na tradição católica vem justamente do ensino da Declaração sobre Liberdade Religiosa do Vaticano II. O princípio básico de uma sociedade democrática e livre é que a liberdade da pessoa seja respeitada tanto quanto possível e só seja restringida quando e na medida em que isto for necessário. A sociedade, entretanto, tem o direito de se proteger contra abusos. O critério que determina a intervenção apropriada da lei coerciva é a ordem pública, que tem um conteúdo tríplice: uma ordem de justiça, de paz pública e de moralidade pública. Assim, por exemplo, se uma religião exige o sacrifício de crianças, penso que a sociedade tem um direito de impedir isso. Além disso, numa sociedade pluralista a lei precisa ser executável e viável. Em qualquer conjunto dado de circunstâncias, é possível aprovar uma lei em meio à diversidade existente dentro de uma sociedade?
IHU On-Line – Como tudo isso se relaciona com o aborto e com a existência de diferentes posições, como pro-life, pro-choice ou pro-abortion?
Pe. Charles Curran – No atual contexto histórico dos Estados Unidos, a questão principal diz respeito a se é possível (viável), ou não, aprovar uma lei contra o aborto. O país está seriamente dividido em torno desta questão. Apesar de um partido político ter incluído a proposta pro-life em seu programa partidário, fundamentalmente não houve mudança significativa em relação à decisão tomada no caso Roe versus Wade pela Corte Suprema em 1973. Muitas pessoas que adotam a posição pro-life afirmam que devem continuar a exercer seu papel de educar e trabalhar no sentido de tornar o aborto ilegal e que talvez no futuro isso venha a ser possível. Para elas, o aborto é um assunto tão importante que farão tudo que puderam para convencer as pessoas nos Estados Unidos de que a lei deveria ser mudada. Outras pessoas que também adotam a posição pro-life chegaram à conclusão de que não há possibilidade de mudar a lei americana. Há necessidade de se chegar a alguma espécie de solução conciliatória ou meio-termo porque jamais será possível tornar todos os abortos fora da lei.
Os próprios bispos americanos aceitaram esta posição no início da década de 1980 quando apoiaram, no Congresso, uma emenda que remeteria a questão do aborto a cada um dos estados e ao Congresso para que eles a decidissem. Alguns apoiadores da posição pro-life criticaram os bispos americanos porque, ao permitir que os estados e o Congresso legislassem sobre o aborto, em muitos casos eles permitiriam abortos de uma forma semelhante àquela permitida pela sentença sobre Roe versus Wade. Os bispos, entretanto, sustentaram que, mediante esta abordagem, eles ao menos ajudariam a reduzir o número de abortos. Recentemente, alguns católicos pro-life sustentaram que uma posição verdadeiramente pro-choice certamente diminuirá o número de abortos.
As mulheres pobres fazem três vezes mais abortos do que outras mulheres. Contudo, se a posição pro-choice for verdadeiramente pro-choice e der às mulheres que querem levar sua gravidez a termo a necessária ajuda médica, financeira e psicológica para fazer isso, o número de abortos se tornará menor. Essas pessoas até esperam que haja um acordo mais amplo na sociedade americana sobre uma posição que é verdadeiramente pro-choice, possibilitando que as mulheres optem contra o aborto, mesmo que sejam pobres e estejam em dificuldades financeiras.
Portanto, na verdade há um pluralismo entre os católicos americanos atualmente em relação à melhor solução para a legislação sobre o aborto, mesmo que se aceite o ensinamento moral católico de que o aborto direto é sempre errado.
Os próprios bispos americanos aceitaram esta posição no início da década de 1980 quando apoiaram, no Congresso, uma emenda que remeteria a questão do aborto a cada um dos estados e ao Congresso para que eles a decidissem. Alguns apoiadores da posição pro-life criticaram os bispos americanos porque, ao permitir que os estados e o Congresso legislassem sobre o aborto, em muitos casos eles permitiriam abortos de uma forma semelhante àquela permitida pela sentença sobre Roe versus Wade. Os bispos, entretanto, sustentaram que, mediante esta abordagem, eles ao menos ajudariam a reduzir o número de abortos. Recentemente, alguns católicos pro-life sustentaram que uma posição verdadeiramente pro-choice certamente diminuirá o número de abortos.
As mulheres pobres fazem três vezes mais abortos do que outras mulheres. Contudo, se a posição pro-choice for verdadeiramente pro-choice e der às mulheres que querem levar sua gravidez a termo a necessária ajuda médica, financeira e psicológica para fazer isso, o número de abortos se tornará menor. Essas pessoas até esperam que haja um acordo mais amplo na sociedade americana sobre uma posição que é verdadeiramente pro-choice, possibilitando que as mulheres optem contra o aborto, mesmo que sejam pobres e estejam em dificuldades financeiras.
Portanto, na verdade há um pluralismo entre os católicos americanos atualmente em relação à melhor solução para a legislação sobre o aborto, mesmo que se aceite o ensinamento moral católico de que o aborto direto é sempre errado.
IHU On-Line – O que o senhor diria sobre o conceito de mal intrínseco e sobre o fato de que o aborto é um mal intrínseco?
Pe. Charles Curran – Antes de mais nada, o ensino moral do magistério hierárquico não diz que o aborto é intrinsecamente mau. Esse ensino admite que possa haver situações de conflito e diz, por conseguinte, que o aborto indireto pode ser permitido se houver uma razão proporcional. Só o aborto direto, de acordo com esse ensino, é intrinsecamente mau. Além disso, o conceito de mal intrínseco se aplica a atos que são sempre errados, mas não se aplica de modo algum no ordenamento jurídico. O ensino moral católico reconhece que o adultério é intrinsecamente mau, mas não há mobilização dos bispos católicos americanos para promover leis contra o adultério.
A questão do mal intrínseco aflorou no debate sobre a legislação a respeito de aborto porque os bispos americanos disseram que isto diferencia o aborto de outras questões de políticas públicas como a paz, a guerra e a economia. Nessas questões, há espaço para juízos prudenciais. E, no caso de juízos prudenciais, pessoas que têm em comum a mesma fé católica básica e o ensinamento a ela correspondente poderiam discordar sobre qual a melhor forma de abordar essas questões. Mas, no caso do aborto, não há espaço para juízos prudenciais porque o aborto é intrinsecamente mau. Mas quando o que está em pauta é a legislação sobre o aborto, certamente há espaço para juízos prudenciais, como os próprios bispos americanos reconheceram anteriormente. Assim, visto que há juízos prudenciais, as pessoas que aceitam o ensino moral do magistério hierárquico de que o aborto direto é sempre errado podem chegar – e de fato chegam – a conclusões diferentes sobre qual é a melhor política jurídica viável nos tempos atuais.
Muitas das pessoas que reconhecem a impossibilidade de aprovar uma lei declarando ilegais todos os abortos ressaltam que a maioria dos americanos provavelmente não aceitariam uma lei que criminalize o aborto e que venha a punir a mulher que faça um aborto. Ora, se o perpetrador não é punido, então por que ter uma lei? Portanto, numa sociedade democrática e pluralista, à luz do fato de que o benefício da dúvida deveria ser sempre dado à liberdade da pessoa e do argumento de que aprovar uma lei contra todo aborto não é viável hoje em dia nas circunstâncias vigentes neste país, alguns católicos que defendem a posição moral do magistério hierárquico sustentam que a melhor solução jurídica é uma abordagem que seja realmente pro-choice [literalmente, pró-escolha, isto é, a favor do direito ou da liberdade da mulher de escolher em matéria de aborto] dando à mulher grávida tudo o que for necessário para fazer uma opção em uma direção ou em outra. (IHU – UNISINOS)
A questão do mal intrínseco aflorou no debate sobre a legislação a respeito de aborto porque os bispos americanos disseram que isto diferencia o aborto de outras questões de políticas públicas como a paz, a guerra e a economia. Nessas questões, há espaço para juízos prudenciais. E, no caso de juízos prudenciais, pessoas que têm em comum a mesma fé católica básica e o ensinamento a ela correspondente poderiam discordar sobre qual a melhor forma de abordar essas questões. Mas, no caso do aborto, não há espaço para juízos prudenciais porque o aborto é intrinsecamente mau. Mas quando o que está em pauta é a legislação sobre o aborto, certamente há espaço para juízos prudenciais, como os próprios bispos americanos reconheceram anteriormente. Assim, visto que há juízos prudenciais, as pessoas que aceitam o ensino moral do magistério hierárquico de que o aborto direto é sempre errado podem chegar – e de fato chegam – a conclusões diferentes sobre qual é a melhor política jurídica viável nos tempos atuais.
Muitas das pessoas que reconhecem a impossibilidade de aprovar uma lei declarando ilegais todos os abortos ressaltam que a maioria dos americanos provavelmente não aceitariam uma lei que criminalize o aborto e que venha a punir a mulher que faça um aborto. Ora, se o perpetrador não é punido, então por que ter uma lei? Portanto, numa sociedade democrática e pluralista, à luz do fato de que o benefício da dúvida deveria ser sempre dado à liberdade da pessoa e do argumento de que aprovar uma lei contra todo aborto não é viável hoje em dia nas circunstâncias vigentes neste país, alguns católicos que defendem a posição moral do magistério hierárquico sustentam que a melhor solução jurídica é uma abordagem que seja realmente pro-choice [literalmente, pró-escolha, isto é, a favor do direito ou da liberdade da mulher de escolher em matéria de aborto] dando à mulher grávida tudo o que for necessário para fazer uma opção em uma direção ou em outra. (IHU – UNISINOS)
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Obama e Osama: um jogo de sete erros
Um dos problemas da atual humanidade, vista pela atuação das personalidades que fazem a sua história, é que esses protagonistas ainda agem como trogloditas morais, ainda que um esteja na Casa Branca e outro num cortiço ou numa caverna nas montanhas do Afeganistão. De vez em quando, a humanidade produz nomes como os de Buda, Cristo, Gandhi, Helena Blavatski e Dalai Lama. No ordinário dos séculos, porém, os modelitos são da estirpe de Bush e Bin Laden e suas respectivas maneiras de fazer as coisas. Nunca uma dicotomia representaria tanto esses dois pathos, essa denominação grega que tanto origina paixão quanto patologia. Obama e Osama.
A operação para acabar com “Jerônimo” enseja uma pergunta que fiz em sala de aula para alunos de Ética na Comunicação: os americanos eliminaram, mataram ou assassinaram Bin Laden? Na contramão, já havia desde 11 de setembro de 2001, uma pergunta: Bin Laden era terrorista, bandido ou santo guerreiro? Isto porque há sempre alternativas semânticas a gosto. Dependendo do pólo de leitura, as torres gêmeas caíram por ação de pilotos-terroristas ou por mártires-de-Alá.
Demais esperar que a humanidade caminhe pelos passos dos seus expoentes que vieram a esta face planetária para pregar a solução não-violenta dos conflitos. E nesse particular, tudo indica que estamos, no presente, à mercê de dois pólos belicistas. De um lado, a índole imperial-interventora norte-americana, radicalmente unilateral, ou seja, quase espessa ao diálogo intercultural. De outro, um radicalismo que beira a cegueira, aquele precisamente em que a solução para o infiel é tão simplesmente o seu extermínio.
Quando do 11 de setembro, escrevi sobre dois modos de difundir discursos, eloquência. De um lado, o bombardeio diário e secular de todo e qualquer meio receptor de informações por meio de notícias literalmente sob o modo ocidental, colonialista e imperial de ver o mundo. De outro, séculos de impossibilidade retórica explodiram de uma vez só sobre a maior concentração de escritórios-emissores de valores interpretativos da Terra.
Agora, momento de pontuar uma espécie de jogo de sete erros em torno do desaparecimento físico de Osama Bin Laden. Mero exame de como uma índole vingativa e violenta expressou para o mundo a sua linguagem, mas também a sua arrogância. E, como violência não gera outra contraparte que não seja violência, o que esperar de agora em diante, senão o desencadeamento de novos recalques e de novas reações?
Primeiro erro. A invasão do espaço aéreo e territorial paquistanês, o que na Lei de Talião, ou seja, do olho pelo olho, abre para qualquer um o ‘direito’ de invadir o espaço aéreo e territorial norte-americano, apesar de que sempre restará a pergunta: mas quem o fez, primeiramente? Inútil, no entanto, em matéria de violência querer identificar e legitimar tal gênese.
Segundo erro. Tentar legitimar a tortura em Guantanamo, informando para o mundo que foi graças a violações de direitos humanos que foi possível trilhar a trilha dos caminhos que levariam ao esconderijo de Bin Laden. Nada justifica a tortura, nem mesmo a justificativa moral mais comum, já utilizada pelo nazismo, de que para se chegar a um ‘bem’ é legítimo ‘sacrificar’ uns tantos (milhões, no caso). Trata-se da chamada “ética utilitarista”, pela qual os fins justificam os meios. Nada justifica a tortura. Nem o argumento de que o terror é moralmente anômico. Acabar com Guatanamo era uma das promessas de campanha de Barack.
Terceiro erro. Façam o que eu digo, mas eu mesmo não o fiz. Esta sentença se agregará para sempre ao caráter de Barack Obama. Uma decepção, pregar direitos humanos e ritos jurídicos, mas não levar Bin Laden, vivo, ao Tribunal Internacional de Haia, que é o lugar apropriado para os criminosos de guerra, para os genocidas e assemelhados. Bin Laden foi executado sem qualquer rito legal que se aplica a um mero bêbado de rua nos Estados Unidos: “Você tem o direito de ficar calado; você tem o direito a um advogado...”.
Quarto erro. Não divulgar as imagens de Bin Laden morto porque seriam extremamente chocantes e poderiam suscitar reações indignadas. Incrível tal justificativa! O país que é a Meca da pornografia tem pruridos de divulgar a cena de um cadáver, abatido pelo herói como o clichê do bandido dos filmes de bang-bang, pelas suas vilanias. Prevalecerá, portanto, a imagem mística e mítica do rosto de um devotado e carismático milenarista.
Quinto erro. Aonde estiver o terror iremos capturá-lo, demore o que demorar. Esta afirmação, tanto de Obama quanto de Hillary, seria hilária se não fosse trágica. O terror é como o demônio, que tem propriedade legionária. Não é um só, é multidão; não está em nenhum lugar e está em todos. É penetrar no reino das sombras para atirar em vultos. Quem vive de procurar o Mal não encontra o Bem e nem menos o pratica. E ainda há os riscos dos equívocos, como o assassinato do brasileiro Jean Charles, imobilizado e vítima de oito tiros, um inocente. A despeito da Al Qaeda, o mundo tem repudiado cada vez mais o terror e seus métodos. Não seriam os EUA e atitudes como as de Obama e Hillary realimentadores do terror?
Sexto erro. A “inteligência” norte-americana já sabia do esconderijo de Bin Laden há meses. Vendeu a justificativa de que o segredo foi guardado e represado para evitar vazamentos. Mas não seria por oportunismo eleitoreiro? Coincidência: a baixa popularidade de Obama e a necessidade de reabilitá-lo como candidato à reeleição. Outro detalhe? Os órgãos secretos norte-americanos trabalham em cooperação com outros, como a Scotland Yard, por exemplo. Desta vez, nem os ingleses foram dignos de partilhar a estratégia?
Sétimo erro. Imperialismo. Parecia algo do passado. De um passado pré-globalização. Washington se reafirma como uma nova Roma. E com a arrogância de que pode deletar tudo e quem quer que seja, tal como Roma uma vez emitiu a sentença Delenda Cartago, ou seja, Cartago deve ser eliminada [do mapa]. A retórica de Obama e Hillary soaram como um recado focado não exclusivamente para Al Qaeda, mas como uma trombeta universal. A história prova que todos os impérios vieram abaixo depois do seu zênite. Num mundo que se acreditava ter avançado em termos de mentalidade, o mundo que já alcança os paradigmas de interdisciplinaridade, da intersubjetividade e do diálogo intercultural e interreligioso, os clarins da guerra tornitroando desde a America podem ser ouvidos de duas maneiras: uma alvíssara ou uma ameaça. Você escolhe.
Por último, cabe observar que a instituição devedora de uma leitura crítica dos fatos, ou seja, a imprensa, encontra-se mundialmente colonizada pelos encampamentos ideológicos atávicos e pela hegemonia mercadológica. Há muito que as agências noticiosas – três, especialmente (Reuters, a Associated Press e a France Presse) difundem pelo planeta unidimensionalmente uma cosmovisão ocidental, capitalista e mercantil. Paralelamente, a retórica publicitária se encarrega de espalhar pelo mundo os modos de consumo e seus ‘modelos’ anunciantes. E, sobretudo, a indústria cultural se encarrega de passar, via cinema de massa, os paradigmas de mocinho e bandido. Barack Obama ou Homem-Aranha? (Luiz Martins da Silva – Mídia e Política)
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Fabrício Augusto de Oliveira |
O economista fala sobre inflação e impostos, temas que preocupam os brasileiros, seja qual for sua renda, e aponta caminhos para ações do governo. |
Fabrício Augusto de Oliveira é doutor em economia pela Universidade Estadual de Campinas, onde foi professor até 1998. Também lecionou na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, na Universidade Federal de Minas Gerais e na Universidade Federal do Espírito Santo e foi secretário adjunto-geral da Secretaria da Fazenda de Minas Gerais no governo Itamar Franco, em 1999. Publicou vários livros sobre economia brasileira e finanças públicas. É também autor de vários artigos publicados em revistas nacionais e internacionais dessas áreas. Nesta entrevista, o atual professor da Escola de Governo da Fundação João Pinheiro, de Belo Horizonte (MG), e consultor na área de economia do setor público para órgãos nacionais e internacionais, expõe suas impressões sobre o processo inflacionário que volta a preocupar o governo e cidadãos brasileiros, que ainda trazem na memória o período de hiperinflação da década de 1980. Ele comenta também como a política fiscal adotada no Brasil atinge os diferentes setores e classes sociais, comparando-a com a de outros países que têm características semelhantes às do Brasil.
ComCiência – No início do mês, o ministro da Fazenda Guido Mantega anunciou que o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) poderá encostar em 6,5% em 2011, mas que não passará disso. Esse é o teto da meta fixada para 2011. É um bom índice para um país que pretende crescer, que quer aumentar o volume de exportações e que compete com outros países emergentes no mercado externo?
Fabrício Augusto de Oliveira – Tudo indica que a preocupação do governo parece ter se deslocado do problema do câmbio, que continua sério, para o da inflação, que ainda vem se mantendo numa trajetória de crescimento. O temor de que ela continue nessa marcha não é infundado, pois são várias as forças que têm pressionado o nível de preços: o aquecimento do consumo, devido à expansão do emprego, da renda e do crédito; a elevação dos preços das commodities no mercado internacional; e, entre outras causas, o intenso fluxo de capitais externos, que termina ampliando o crédito e elevando os preços dos ativos da economia. Isso, num contexto de insuficiente expansão da capacidade de oferta, de manutenção das taxas internas de juros em níveis estratosféricos e de precárias condições da infraestrutura econômica, que ampliam consideravelmente o custo-país. Este, principalmente, prejudica a competitividade da produção nacional no mercado externo e as exportações brasileiras. Um índice de inflação de 6,5% no ano é temerário porque, no limite superior do centro da meta de 4,5% fixada para 2011, ele se torna bem mais sensível a saltos para patamares mais elevados, no caso de alguma dessas variáveis fugir de controle, ao mesmo tempo em que fortalece o poder das empresas de reajustarem seus preços, repondo e justificando as demandas por reindexação dos contratos e salários da economia.
ComCiência – É importante essa priorização em manter a inflação sob controle?
Oliveira – Quando elevada, a inflação desorganiza a economia, dificulta o cálculo empresarial dos custos e dos investimentos, penaliza os trabalhadores de renda fixa, que não conseguem proteger seus rendimentos da corrosão inflacionária, prejudica o abastecimento e mantém em estado de permanente sobressalto a população, pelas incertezas que passam a predominar sobre o futuro do país e também pelo temor do desemprego, do desabastecimento e da ação dos especuladores, que encontram a avenida pavimentada para se movimentarem com liberdade. Foi essa a situação vivida pelo Brasil na década de 1980 e até o lançamento do Plano Real, em 1994, com o qual se conseguiu extirpar o câncer inflacionário da economia. Num ambiente de estabilidade monetária, que representa uma condição necessária – embora não suficiente – para o crescimento sustentado, recupera-se o horizonte do cálculo empresarial para a realização dos investimentos, reorganiza-se a atividade produtiva e de abastecimento e protege-se o salário dos trabalhadores, essencial para manter fortalecida a demanda agregada, ao mesmo tempo em que se inibe a ação dos especuladores. Por isso, a estabilidade deve ser vista como um bem público essencial para a economia e a sociedade, sendo de responsabilidade do governo garantir sua manutenção.
ComCiência – Os indicadores variam de um estado para outro, além da variação de um índice para outro. Pelo IPCA, medido pelo IBGE, por exemplo, em março, Fortaleza apresentou o índice mais alto: 1,49%, enquanto Salvador apresentou 0,33%. A média para o país foi de 0,79%. A que se deve uma diferença tão grande? Que produtos têm sido responsáveis pelo aumento dos índices de inflação no país?
Oliveira – O índice de inflação é obtido por meio do cálculo da média dos níveis de preços dos produtos e serviços da economia, de acordo com critérios estabelecidos de sua representatividade na cesta de consumo da população. Assim como ela é diferente para grupos etários, grupos de renda e até mesmo para os indivíduos, já que essas “cestas” costumam ser distintas, o mesmo ocorre espacialmente, especialmente em países marcados por grandes heterogeneidades econômicas regionais, como é o caso do Brasil, que apresenta grande diversidade entre as estruturas produtivas, salariais, de renda, consumo e de investimentos de suas regiões, muitas fortemente dependentes de importações de outros estados/regiões para atenderem a demanda interna, que termina também onerada pelos custos de transportes. Existem, além disso, os fatores sazonais, climáticos e conjunturais que terminam afetando, de forma diferenciada, a inflação em cada uma dessas regiões. As pressões sobre os preços têm vindo de todos os lados. São pressões da demanda, devido ao aumento do emprego, da renda, do crédito, que eleva os preços dos produtos (notadamente alimentos) e dos serviços consumidos (especialmente devido ao crescimento da classe média), de custos (preços de commodities, juros, infraestrutura precária etc.) e também dos ativos da economia. Diante disso, a apreciação do câmbio tem ajudado a compensar essas pressões, amortecendo seus efeitos, embora tal fato esteja, gradativamente, recolocando a economia brasileira novamente numa perigosa trajetória de vulnerabilidade externa.
ComCiência – O Índice Nacional de Expectativa do Consumidor, da Confederação Nacional da Indústria, apresentou uma queda de 2,2% na comparação com o mês de março e encontra-se 0,5% abaixo do registrado em abril de 2010. A principal piora foi sobre a expectativa de inflação (os entrevistados temem um novo período de hiperinflação). A inflação apontada no último mês, no entanto, não cresceu nessa proporção. De onde vem essa sensação de aumento exagerado?
Oliveira – Essa sensação é um indicativo de que a “memória inflacionária” ainda continua presente no coração e na mente da população brasileira, apesar de decorridos 17 anos do lançamento do Plano Real, com o qual praticamente se pôs cobro ao imposto inflacionário. Pelo menos da população que vivenciou os anos 1980 e primeiros anos da década de 1990, quando o país viu-se permanentemente ameaçado pela instauração de um processo hiperinflacionário. O que é compreensível, dadas as consequências econômicas e sociais que este tende a provocar: desorganização da produção, do abastecimento, da intermediação financeira, desemprego, esgarçamento do tecido social e assim por diante. É isso que explica essa sensação exagerada sobre o aumento de preços que vem ocorrendo, como se se duvidasse da capacidade do Estado de contê-la. Sempre que a inflação começa a dar mostras de aceleração, a primeira preocupação que vem à mente do brasileiro é sobre a possibilidade de retorno daquela situação, que, tudo indica, deve-se, a todo custo, evitar. Por isso, a estabilidade monetária passou a ser vista, de fato, como um bem público essencial para a sociedade. E cabe ao Estado preservá-la, para que o futuro continue a ser visto com mais otimismo pelos cidadãos.
ComCiência – Como a política fiscal pode colaborar no combate às pressões inflacionárias e que setores ou mesmo classes socioeconômicas são os mais prejudicados pela inflação alta?
Oliveira – Não são significativos os espaços da política fiscal, na atualidade, para atuar tanto no combate à inflação como no estímulo ao crescimento econômico, já que os orçamentos públicos se encontram excessivamente engessados, oferecendo pouco raio de manobra para o governo viabilizar esses objetivos. Mas, apesar de pequenos, eles existem. Do lado dos gastos, o governo poderia, apesar do enrijecimento existente, estabelecer limites de expansão, em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) e à própria carga tributária, para os gastos correntes, liberando mais recursos para os investimentos em infraestrutura econômica, o que contribuiria para diminuir ou remover os gargalos que existem nessa área e reduzir o custo-país, com rebatimentos importantes sobre a inflação e sobre a competitividade da produção nacional. Do lado das receitas, seria necessário ousar – o que o governo tem evitado –, realizar uma reforma tributária mais abrangente que, entre outras mudanças, tivesse como objetivo desonerar a produção e os investimentos dos elevados impostos que sobre eles incidem na atualidade, o que teria impactos também positivos sobre a competitividade e a inflação. Isso poderia exigir, diante da manutenção da política de austeridade fiscal, uma mudança do atual modelo econômico, que continua priorizando os interesses do capital financeiro, o qual, como os demais, deveria também ser incluído entre os que arcam com o ônus da tributação. O fato, como dito anteriormente, é que a (alta) inflação, que na verdade nada mais é que um imposto que incide sobre a população em geral, termina prejudicando mais os setores que não dispõem de mecanismos para se protegerem dos efeitos deletérios por ela provocados sobre seus rendimentos, caso dos trabalhadores assalariados, enquanto os demais setores conseguem se colocar sob o guarda-chuva das aplicações financeiras, de preços e contratos reajustáveis e assim por diante. Por isso, a inflação pode ser vista como um imposto de grande perversidade social.
ComCiência – O brasileiro paga muitos impostos, em comparação a outros países, ou, pelo fato de haver vários impostos indiretos, a nossa percepção sobre impostos é distorcida?
Oliveira – Não há a menor dúvida de que a carga tributária brasileira é muito elevada: representando cerca de 35% do PIB, ocupa tranquilamente a primeira posição entre os países emergentes, e ganha, com folga, de muitas economias desenvolvidas, como os Estados Unidos e o Japão, para ficar com apenas dois bons exemplos. Mas há três problemas adicionais que não podem ser ignorados: primeiro, além de elevada, a carga tributária brasileira é altamente onerosa, pois o Estado não compensa ou ressarce a população pela cobrança de impostos com uma oferta adequada de serviços, como ocorre nos países em que é forte o welfare state, fazendo com essa seja duplamente penalizada; segundo, além de onerosa, a carga tributária é muito mal distribuída, lançando o maior ônus da tributação sobre os ombros mais fracos, ao cobrar mais impostos de quem tem menor renda e vice-versa, tornando-a, como consequência, uma antípoda tanto do ponto de vista social como do próprio crescimento econômico, dado o estreitamento do mercado interno que provoca; por fim, não bastasse isso, a predominância dos impostos indiretos em sua estrutura (o que podemos chamar de impostos “invisíveis”) dificulta a percepção da população sobre a cobrança dos impostos feitos pelo Estado e enfraquece a formação de uma “consciência tributária” que poderia conduzir ao fortalecimento das relações entre Estado e cidadão. (Por Simone Pallone – ComCiência)
ComCiência – No início do mês, o ministro da Fazenda Guido Mantega anunciou que o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) poderá encostar em 6,5% em 2011, mas que não passará disso. Esse é o teto da meta fixada para 2011. É um bom índice para um país que pretende crescer, que quer aumentar o volume de exportações e que compete com outros países emergentes no mercado externo?
Fabrício Augusto de Oliveira – Tudo indica que a preocupação do governo parece ter se deslocado do problema do câmbio, que continua sério, para o da inflação, que ainda vem se mantendo numa trajetória de crescimento. O temor de que ela continue nessa marcha não é infundado, pois são várias as forças que têm pressionado o nível de preços: o aquecimento do consumo, devido à expansão do emprego, da renda e do crédito; a elevação dos preços das commodities no mercado internacional; e, entre outras causas, o intenso fluxo de capitais externos, que termina ampliando o crédito e elevando os preços dos ativos da economia. Isso, num contexto de insuficiente expansão da capacidade de oferta, de manutenção das taxas internas de juros em níveis estratosféricos e de precárias condições da infraestrutura econômica, que ampliam consideravelmente o custo-país. Este, principalmente, prejudica a competitividade da produção nacional no mercado externo e as exportações brasileiras. Um índice de inflação de 6,5% no ano é temerário porque, no limite superior do centro da meta de 4,5% fixada para 2011, ele se torna bem mais sensível a saltos para patamares mais elevados, no caso de alguma dessas variáveis fugir de controle, ao mesmo tempo em que fortalece o poder das empresas de reajustarem seus preços, repondo e justificando as demandas por reindexação dos contratos e salários da economia.
ComCiência – É importante essa priorização em manter a inflação sob controle?
Oliveira – Quando elevada, a inflação desorganiza a economia, dificulta o cálculo empresarial dos custos e dos investimentos, penaliza os trabalhadores de renda fixa, que não conseguem proteger seus rendimentos da corrosão inflacionária, prejudica o abastecimento e mantém em estado de permanente sobressalto a população, pelas incertezas que passam a predominar sobre o futuro do país e também pelo temor do desemprego, do desabastecimento e da ação dos especuladores, que encontram a avenida pavimentada para se movimentarem com liberdade. Foi essa a situação vivida pelo Brasil na década de 1980 e até o lançamento do Plano Real, em 1994, com o qual se conseguiu extirpar o câncer inflacionário da economia. Num ambiente de estabilidade monetária, que representa uma condição necessária – embora não suficiente – para o crescimento sustentado, recupera-se o horizonte do cálculo empresarial para a realização dos investimentos, reorganiza-se a atividade produtiva e de abastecimento e protege-se o salário dos trabalhadores, essencial para manter fortalecida a demanda agregada, ao mesmo tempo em que se inibe a ação dos especuladores. Por isso, a estabilidade deve ser vista como um bem público essencial para a economia e a sociedade, sendo de responsabilidade do governo garantir sua manutenção.
ComCiência – Os indicadores variam de um estado para outro, além da variação de um índice para outro. Pelo IPCA, medido pelo IBGE, por exemplo, em março, Fortaleza apresentou o índice mais alto: 1,49%, enquanto Salvador apresentou 0,33%. A média para o país foi de 0,79%. A que se deve uma diferença tão grande? Que produtos têm sido responsáveis pelo aumento dos índices de inflação no país?
Oliveira – O índice de inflação é obtido por meio do cálculo da média dos níveis de preços dos produtos e serviços da economia, de acordo com critérios estabelecidos de sua representatividade na cesta de consumo da população. Assim como ela é diferente para grupos etários, grupos de renda e até mesmo para os indivíduos, já que essas “cestas” costumam ser distintas, o mesmo ocorre espacialmente, especialmente em países marcados por grandes heterogeneidades econômicas regionais, como é o caso do Brasil, que apresenta grande diversidade entre as estruturas produtivas, salariais, de renda, consumo e de investimentos de suas regiões, muitas fortemente dependentes de importações de outros estados/regiões para atenderem a demanda interna, que termina também onerada pelos custos de transportes. Existem, além disso, os fatores sazonais, climáticos e conjunturais que terminam afetando, de forma diferenciada, a inflação em cada uma dessas regiões. As pressões sobre os preços têm vindo de todos os lados. São pressões da demanda, devido ao aumento do emprego, da renda, do crédito, que eleva os preços dos produtos (notadamente alimentos) e dos serviços consumidos (especialmente devido ao crescimento da classe média), de custos (preços de commodities, juros, infraestrutura precária etc.) e também dos ativos da economia. Diante disso, a apreciação do câmbio tem ajudado a compensar essas pressões, amortecendo seus efeitos, embora tal fato esteja, gradativamente, recolocando a economia brasileira novamente numa perigosa trajetória de vulnerabilidade externa.
ComCiência – O Índice Nacional de Expectativa do Consumidor, da Confederação Nacional da Indústria, apresentou uma queda de 2,2% na comparação com o mês de março e encontra-se 0,5% abaixo do registrado em abril de 2010. A principal piora foi sobre a expectativa de inflação (os entrevistados temem um novo período de hiperinflação). A inflação apontada no último mês, no entanto, não cresceu nessa proporção. De onde vem essa sensação de aumento exagerado?
Oliveira – Essa sensação é um indicativo de que a “memória inflacionária” ainda continua presente no coração e na mente da população brasileira, apesar de decorridos 17 anos do lançamento do Plano Real, com o qual praticamente se pôs cobro ao imposto inflacionário. Pelo menos da população que vivenciou os anos 1980 e primeiros anos da década de 1990, quando o país viu-se permanentemente ameaçado pela instauração de um processo hiperinflacionário. O que é compreensível, dadas as consequências econômicas e sociais que este tende a provocar: desorganização da produção, do abastecimento, da intermediação financeira, desemprego, esgarçamento do tecido social e assim por diante. É isso que explica essa sensação exagerada sobre o aumento de preços que vem ocorrendo, como se se duvidasse da capacidade do Estado de contê-la. Sempre que a inflação começa a dar mostras de aceleração, a primeira preocupação que vem à mente do brasileiro é sobre a possibilidade de retorno daquela situação, que, tudo indica, deve-se, a todo custo, evitar. Por isso, a estabilidade monetária passou a ser vista, de fato, como um bem público essencial para a sociedade. E cabe ao Estado preservá-la, para que o futuro continue a ser visto com mais otimismo pelos cidadãos.
ComCiência – Como a política fiscal pode colaborar no combate às pressões inflacionárias e que setores ou mesmo classes socioeconômicas são os mais prejudicados pela inflação alta?
Oliveira – Não são significativos os espaços da política fiscal, na atualidade, para atuar tanto no combate à inflação como no estímulo ao crescimento econômico, já que os orçamentos públicos se encontram excessivamente engessados, oferecendo pouco raio de manobra para o governo viabilizar esses objetivos. Mas, apesar de pequenos, eles existem. Do lado dos gastos, o governo poderia, apesar do enrijecimento existente, estabelecer limites de expansão, em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) e à própria carga tributária, para os gastos correntes, liberando mais recursos para os investimentos em infraestrutura econômica, o que contribuiria para diminuir ou remover os gargalos que existem nessa área e reduzir o custo-país, com rebatimentos importantes sobre a inflação e sobre a competitividade da produção nacional. Do lado das receitas, seria necessário ousar – o que o governo tem evitado –, realizar uma reforma tributária mais abrangente que, entre outras mudanças, tivesse como objetivo desonerar a produção e os investimentos dos elevados impostos que sobre eles incidem na atualidade, o que teria impactos também positivos sobre a competitividade e a inflação. Isso poderia exigir, diante da manutenção da política de austeridade fiscal, uma mudança do atual modelo econômico, que continua priorizando os interesses do capital financeiro, o qual, como os demais, deveria também ser incluído entre os que arcam com o ônus da tributação. O fato, como dito anteriormente, é que a (alta) inflação, que na verdade nada mais é que um imposto que incide sobre a população em geral, termina prejudicando mais os setores que não dispõem de mecanismos para se protegerem dos efeitos deletérios por ela provocados sobre seus rendimentos, caso dos trabalhadores assalariados, enquanto os demais setores conseguem se colocar sob o guarda-chuva das aplicações financeiras, de preços e contratos reajustáveis e assim por diante. Por isso, a inflação pode ser vista como um imposto de grande perversidade social.
ComCiência – O brasileiro paga muitos impostos, em comparação a outros países, ou, pelo fato de haver vários impostos indiretos, a nossa percepção sobre impostos é distorcida?
Oliveira – Não há a menor dúvida de que a carga tributária brasileira é muito elevada: representando cerca de 35% do PIB, ocupa tranquilamente a primeira posição entre os países emergentes, e ganha, com folga, de muitas economias desenvolvidas, como os Estados Unidos e o Japão, para ficar com apenas dois bons exemplos. Mas há três problemas adicionais que não podem ser ignorados: primeiro, além de elevada, a carga tributária brasileira é altamente onerosa, pois o Estado não compensa ou ressarce a população pela cobrança de impostos com uma oferta adequada de serviços, como ocorre nos países em que é forte o welfare state, fazendo com essa seja duplamente penalizada; segundo, além de onerosa, a carga tributária é muito mal distribuída, lançando o maior ônus da tributação sobre os ombros mais fracos, ao cobrar mais impostos de quem tem menor renda e vice-versa, tornando-a, como consequência, uma antípoda tanto do ponto de vista social como do próprio crescimento econômico, dado o estreitamento do mercado interno que provoca; por fim, não bastasse isso, a predominância dos impostos indiretos em sua estrutura (o que podemos chamar de impostos “invisíveis”) dificulta a percepção da população sobre a cobrança dos impostos feitos pelo Estado e enfraquece a formação de uma “consciência tributária” que poderia conduzir ao fortalecimento das relações entre Estado e cidadão. (Por Simone Pallone – ComCiência)
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O fim do Consenso de Washington e a mudança dos cursos de economia
Nos cursos de Economia de Universidades como La Plata, Córdoba, Rosario e Buenos Aires ainda se ensinam e se continua aprendendo que a Argentina deveria especializar-se na produção de matérias-primas e importar bens manufaturados, que é imperativo privatizar as empresas públicas e flexibilizar o mercado de trabalho. A análise é da equipe de Economia Política do Centro de Estudos para a Mudança Social e de integrantes do Agrupamento Unidade de Graduados de Economia (UNLP) em artigo para o Página/12.
A formação dos cursos de Economia nas universidades públicas em nosso país exige um debate. Qual tem sido o itinerário das licenciaturas na Economia nos últimos 35 anos? Por que tem sido assim? As coisas mudaram nos últimos dez anos? Irão mudar? Como se sabe, o plano da ditadura civil-militar, instaurado desde 1976 na Argentina abrangeu um vasto leque de objetivos entre os quais se destacam: a destruição da organização operária, a instauração de um modelo econômico liberal rentista e financeiro que abandonou a proteção social e o desaparecimento dos atores políticos que colocavam em questionamento a ordem vigente.
As unidades acadêmicas não foram exceção nisso tudo: muitos professores foram expulsos, perseguidos, assassinados ou desaparecidos, enquanto o currículo foi violentamente alterado. A outrora licenciatura em Economia Política deixou lugar à Economia, seco assim.
Desde então, os currículos foram adaptando-se ao projeto neoliberal e eliminando progressivamente as disciplinas de caráter social e buscando a identificação da Economia como ciência exata. Simultaneamente, se foram suprimindo as escolas de pensamento críticas à visão neoliberal. Separou-se o estudo do pensamento econômico do resto das matérias “práticas”, tais como comércio, desenvolvimento e macroeconomia; desta forma, as frutíferas discussões de toda a história do pensamento econômico se reduziram ao reduto do pensamento heterodoxo como sendo a “verdadeira economia” – as questões práticas passaram a serem estudas exclusivamente a partir do enfoque neoclássico.
Nos anos 90, o programa neoliberal apoiado por um governo constitucional exigiu na academia o aprofundamento da ortodoxia econômica. Foram dez anos de conversibilidade, e, não coincidentemente, uma década de receitas vindas de Washington. Para aumentar o emprego, mercado de trabalho flexível; para melhorar a eficiência dos serviços públicos, privatização da maior parte das empresas estatais; para apoiar a paridade 1-1 se gerou endividamento e dependência do FMI que para emprestar dinheiro exigia que se cumprisse redução dos gastos públicos e redução dos salários e pensões, etc. Estas medidas respondiam ao enfoque que nossas universidades públicas se encarregavam de ensinar e difundir, dissociando seus nefastos efeitos sociais das insuficiências teóricas da teoria dominante (neoclássica).
O ano de 2001 marcou uma reviravolta. Depois de 25 anos, as políticas de ajuste entraram em colapso na Argentina. A esse enredo adicione-se entre 2008-2009, a maior crise do mundo capitalista desde os anos 30 do século passado. Paradoxalmente, a ortodoxia carece de um corpus teórico relevante e consistente para explicar a crise, uma vez que se presume que os mercados são o equilíbrio. O que eles poderiam dizer desses modelos em nosso país, um dos laboratórios mais bem sucedidos em matéria de crise ao longo de seus 200 anos?
O que deveríamos esperar em matéria acadêmica nos últimos dez anos?
Caída em desgraça a partir da crise, a teoria neoclássica apresentou “fichamentos” para abordagens alternativas em vários países do mundo e na América Latina em particular. No entanto, os Planos de Estudo dos cursos de Economia nas universidades do país (com exceção dos cursos que surgiram em algumas universidades da província de Buenos Aires, como por exemplo, a General Sarmiento), continuaram com a visão neoclássica tradicional instaurada a sangue e fogo pela ditadura e reforçadas pelo Consenso de Washington.
Os cursos de Economia de universidades como La Plata, Córdoba, Rosario e Buenos Aires ainda se ensinam e se continua aprendendo que a Argentina deveria "especializar" na produção de matérias-primas e importar bens manufaturados, que é imperativo privatizar as empresas públicas e flexibilizar o "mercado de trabalho. Soa insólito.
Atualmente, a Faculdade de Economia da Universidade Nacional de La Plata está prestes a mudar seus currículos, incluindo a sua licenciatura em Economia. A proposta é reduzir o número de matérias (35-32), em face de matérias optativas quase todas de conteúdo social (História do Pensamento Econômico, História da América Latina) e garantindo a permanência de disciplinas neoclássicas por definição (a chamada “Teoria dos Jogos” e todas as sucessivas microeconomia por conseguinte). Como se observa, espera-se intensificar a formação neoclássica entendida como a "economia real" em detrimento das visões de muitas das outras escolas de pensamento (o keynesianismo, o marxismo, a regulação, o estruturalismo, etc).
A crise internacional e as catástrofes sociais causadas pelas políticas neoliberais em países como Argentina e, mais recentemente, a Grécia e a Espanha, obrigam que este reduto acadêmico mesmo que vinculado aos preceitos que foram o furor há 15 anos que mude. Tanto por reparação histórica, como por necessidade de formar profissionais que incorporem diferentes visões de mundo e da economia política, a licenciatura em Economia deve renunciar à doutrina dogmática e avançar em uma formação que responda às necessidades da sua sociedade. (Centro de Estudos para a Mudança social)
As unidades acadêmicas não foram exceção nisso tudo: muitos professores foram expulsos, perseguidos, assassinados ou desaparecidos, enquanto o currículo foi violentamente alterado. A outrora licenciatura em Economia Política deixou lugar à Economia, seco assim.
Desde então, os currículos foram adaptando-se ao projeto neoliberal e eliminando progressivamente as disciplinas de caráter social e buscando a identificação da Economia como ciência exata. Simultaneamente, se foram suprimindo as escolas de pensamento críticas à visão neoliberal. Separou-se o estudo do pensamento econômico do resto das matérias “práticas”, tais como comércio, desenvolvimento e macroeconomia; desta forma, as frutíferas discussões de toda a história do pensamento econômico se reduziram ao reduto do pensamento heterodoxo como sendo a “verdadeira economia” – as questões práticas passaram a serem estudas exclusivamente a partir do enfoque neoclássico.
Nos anos 90, o programa neoliberal apoiado por um governo constitucional exigiu na academia o aprofundamento da ortodoxia econômica. Foram dez anos de conversibilidade, e, não coincidentemente, uma década de receitas vindas de Washington. Para aumentar o emprego, mercado de trabalho flexível; para melhorar a eficiência dos serviços públicos, privatização da maior parte das empresas estatais; para apoiar a paridade 1-1 se gerou endividamento e dependência do FMI que para emprestar dinheiro exigia que se cumprisse redução dos gastos públicos e redução dos salários e pensões, etc. Estas medidas respondiam ao enfoque que nossas universidades públicas se encarregavam de ensinar e difundir, dissociando seus nefastos efeitos sociais das insuficiências teóricas da teoria dominante (neoclássica).
O ano de 2001 marcou uma reviravolta. Depois de 25 anos, as políticas de ajuste entraram em colapso na Argentina. A esse enredo adicione-se entre 2008-2009, a maior crise do mundo capitalista desde os anos 30 do século passado. Paradoxalmente, a ortodoxia carece de um corpus teórico relevante e consistente para explicar a crise, uma vez que se presume que os mercados são o equilíbrio. O que eles poderiam dizer desses modelos em nosso país, um dos laboratórios mais bem sucedidos em matéria de crise ao longo de seus 200 anos?
O que deveríamos esperar em matéria acadêmica nos últimos dez anos?
Caída em desgraça a partir da crise, a teoria neoclássica apresentou “fichamentos” para abordagens alternativas em vários países do mundo e na América Latina em particular. No entanto, os Planos de Estudo dos cursos de Economia nas universidades do país (com exceção dos cursos que surgiram em algumas universidades da província de Buenos Aires, como por exemplo, a General Sarmiento), continuaram com a visão neoclássica tradicional instaurada a sangue e fogo pela ditadura e reforçadas pelo Consenso de Washington.
Os cursos de Economia de universidades como La Plata, Córdoba, Rosario e Buenos Aires ainda se ensinam e se continua aprendendo que a Argentina deveria "especializar" na produção de matérias-primas e importar bens manufaturados, que é imperativo privatizar as empresas públicas e flexibilizar o "mercado de trabalho. Soa insólito.
Atualmente, a Faculdade de Economia da Universidade Nacional de La Plata está prestes a mudar seus currículos, incluindo a sua licenciatura em Economia. A proposta é reduzir o número de matérias (35-32), em face de matérias optativas quase todas de conteúdo social (História do Pensamento Econômico, História da América Latina) e garantindo a permanência de disciplinas neoclássicas por definição (a chamada “Teoria dos Jogos” e todas as sucessivas microeconomia por conseguinte). Como se observa, espera-se intensificar a formação neoclássica entendida como a "economia real" em detrimento das visões de muitas das outras escolas de pensamento (o keynesianismo, o marxismo, a regulação, o estruturalismo, etc).
A crise internacional e as catástrofes sociais causadas pelas políticas neoliberais em países como Argentina e, mais recentemente, a Grécia e a Espanha, obrigam que este reduto acadêmico mesmo que vinculado aos preceitos que foram o furor há 15 anos que mude. Tanto por reparação histórica, como por necessidade de formar profissionais que incorporem diferentes visões de mundo e da economia política, a licenciatura em Economia deve renunciar à doutrina dogmática e avançar em uma formação que responda às necessidades da sua sociedade. (Centro de Estudos para a Mudança social)
Org.: Genaldo de Melo
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