Ciranda
Central de Notícias dos Direitos da Infância e da Adolescência
Adital
Estudo sobre violência propõe mudanças no Código Penal
Objetivo é o reconhecimento de abusos físicos e psicológicos que afetam crianças e adolescentes principalmente no ambiente familiar
Com a proposta de lançar um olhar rigoroso sobre o Código Penal e o Código de Processo Penal brasileiros, o DEDICA, um grupo interdisciplinar de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, de Curitiba-PR, investigou a legislação penal durante quatro anos.
O objetivo era entender por que, diante de sérias violências causadas a meninas e meninos - mas que nem sempre deixam marcas físicas - os agressores não eram responsabilizados. Para além da penalização, o grupo estava interessado em mostrar à sociedade a ausência de uma lei que protegesse efetivamente a população infantojuvenil dos abusos ocorridos principalmente em âmbito familiar.
Pautados por esse propósito, apresentaram ao Senado em maio deste ano, a proposta de alteração nos artigos 92, 100, 121, 129-A, 136 e 226 da legislação. O texto agora passa por adequações técnicas na Casa para em breve ser protocolado como Projeto de Lei de autoria da senadora Gleisi Hoffmann (PT/PR). Em entrevista ao Portal Direitos da Criança, a coordenadora do DEDICA, a médica pediatra Luci Pfeiffer, explica como as mudanças podem afetar a infância e adolescência brasileiras.
Ciranda - O que motivou o Estudo?
Luci Pfeiffer - Fiz parte da organização da rede de proteção em Curitiba, em 1998, onde começamos a elaborar uma ficha de notificação. Era voluntária pela Sociedade de Pediatria. Você tinha o caso de crianças e adolescentes diagnosticado, via as marcas e fraturas, ou percebia o histórico do abuso psicológico, que muitas vezes é mais severo que o abuso físico. Não ter marcas não significa que a agressão é pouca. Muitas vezes a agressão psicológica é destruidora, acaba com a personalidade da criança em formação.
Então começamos a nos questionar o que acontecia, se a gente tinha um diagnóstico, mas chegava lá no IML e o laudo era inconclusivo ou negativo, como é até hoje em todo o Brasil, onde isso acontece em 80% dos casos quando se trata de criança e adolescente.
Ciranda - E porque isso acontece?
Luci Pfeiffer - O IML se baseia no Código Penal. A lei brasileira foi escrita em 1940. A Síndrome da Criança Espancada foi levada a um congresso internacional de saúde em 1983. Quando se fez o Código Penal, não se pensava em criança espancada e violência. O artigo 136 fala de maus-tratos, mas só é crime se o responsável deixar de dar o mínimo e o indispensável, se exagerar nos castigos ou submeter a trabalho excessivo, o que não tem nada a ver com a criança. Será que nossa criança só merece o mínimo e necessário?
No artigo 129, que descreve lesões corporais, não há nada relacionado a criança. Tanto que é considerado gravíssimo se perder membro, ficar incapacitado para o trabalho, levar à aceleração de parto. Aí começamos a entender que o erro não era o Instituto Médico Legal em si, embora ele tenha uma estrutura que poderia ter evoluído com o tempo (no mínimo se preocupar em ouvir a vítima, em fazer um diagnóstico do abuso psicológico e da negligência, que não são preocupações atuais). Então esbarrávamos no diagnóstico final e consequentemente no processo de proteção, porque se eu tenho um laudo negativo ou inconclusivo, o juiz não tem instrumento para proteger a criança, não apenas para dar uma pena, mas para conter aquele agressor.
Ciranda - Em quais aspectos o Código Penal chamou mais atenção durante o estudo?
Luci Pfeiffeir - Existem itens que são absurdos. O artigo 100 diz que, quando o crime é contra uma criança, ela tem que ter uma representação. Por exemplo, alguém espancou uma criança (mais de 80 % dos casos o autor é o pai ou a mãe e em mais de 90% isso acontece dentro de casa). É preciso que um dos responsáveis faça a denúncia e leve o processo à frente através de um advogado, que vai manter a acusação. Claro que nenhum pai ou mãe que agride vai pagar o advogado para a sua própria condenação. Na mudança que propomos para o artigo 100, tem um parágrafo especial que, quando se trata de criança e adolescente, a continuidade do processo é público e incondicionado, ou seja, não vai depender de contratação de advogado particular.
Ciranda - Porque o DEDICA propõe a mudança dentro do Código Penal do termo "lesão corporal” para "lesões à saúde”?
Luci Pfeiffer - O artigo 129 fala da "lesão corporal”. Não se pensa em nenhum tempo na lesão psicológica. Um dos maiores avanços que vamos ter, quando as propostas de alteração forem aprovadas, é o reconhecimento da lesão psicológica à criança ou ao adolescente, porque isso pode fabricar na infância psicóticos e outros doentes mentais. O Código de 1940 ignora isso. Temos o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA que fala sobre violação de direitos, mas ele não define o que é uma violência leve, grave ou gravíssima, e que penalidade vai ter, tanto que ele institui, para quando existe violência doméstica, uma penalidade de dois salários mínimos, como se a criança valesse tão pouco.
Ciranda - Existe o argumentação de que não seria mais fácil mudar o ECA ao invés do Código Penal?
Luci Pfeiffer - Essa foi a primeira pergunta que nos fizeram no Senado quando apresentamos a proposta. Infelizmente o ECA até hoje não é uma disciplina nos cursos de Direito, ele é opcional. Os acadêmicos de Direito no Brasil só vão ter aula sobre o Estatuto se quiserem e buscarem. Além disso é o Código que define o que é a lesão corporal. Quando aconteceu a mudança na lei sobre violência sexual, ela foi feita no Código e não no Estatuto. Então o ECA tem que ser uma matéria obrigatória nas nossas faculdades, é um absurdo que isso ainda não aconteça.
Ciranda - De modo prático, qual a conseqüência de uma lei que ignora as violências específicas contra crianças e adolescentes?
Luci Pfeiffer - As crianças estão totalmente desprotegidas. O laudo do IML é positivo nos casos muito graves, por exemplo, em casos de morte, tortura, abuso sexual com estupro. Fora disso, não. E vai depender da sensibilidade do perito, da dedicação do profissional da saúde em fazer o relatório e insistir no diagnóstico, do Conselho Tutelar em brigar por essa proteção, do juiz em ter esse conhecimento mais abrangente. Mas a maior parte das vezes, em que o abuso psicológico pode levar a destruir toda a estrutura de personalidade da criança, não se chega a medidas sérias de proteção. Na situação de abuso físico que não deixam marcas, mas são uma evidência de tortura, também não chegam a medidas de proteção. A consequência disso é que, a criança evolui, e começa a apresentar sintomas, como dificuldade de aprendizado, doenças de difícil tratamento, atitude de agressividade. De vítima, ela passa a ser ré. Hoje temos uma porcentagem muito grande de crianças medicalizadas, tomando medicação anti-psicótica e anti-depressiva, com diagnósticos da psiquiatria para sintomas de sofrimento pela violência, que não são diagnosticados ou levados em conta.
Ciranda - A soma de uma cultura do castigo físico intra-familiar com um Código Penal desatualizado replica gerações...
Luci Pfeiffer - ...cada vez mais violentas. Não adianta qualquer campanha política que queira diminuir a violência urbana e social. Isso precisa começar na formação dos indivíduos. Eu não tenho um agressor à toa. Se quero diminuir a violência, tenho que deixar de formar indivíduos violentos nas suas várias formas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário